À primeira vista a cena política brasileira atual defronta o observador com uma terra devastada, varrida por ódio e ressentimento, chão calcinado onde nada de bom poderia medrar. Tal percepção poderia levá-lo até a conjeturar se não estaria diante de um caso perdido, uma sociedade que perdeu o rumo, condenada à autoextinção, como no caso de culturas do México pré-hispânico e de tantas outras apenas conhecidas pelos vestígios arqueológicos que deixaram. Mas basta reorientar seu olhar para a vida cotidiana, fechar as páginas dos jornais e fazer ouvidos moucos aos noticiários das rádios e da TV, principalmente ignorar o que se vocifera nas redes sociais da internet, para que corrija sua avaliação, pois tudo ali segue no seu fluxo usual no mundo do trabalho e nas suas principais instituições. Fora de foco, portanto, desvios imprevistos de curso.
A falta de comunicação entre política e sociedade é marca crônica da modernização brasileira, filha de um processo autoritário, que se manteve por gerações, em que o Estado e suas agências dispuseram do poder discricionário de modelar uma sociedade à qual se recusou liberdade de movimentos. Quando se admitiu que seres subalternos tivessem o direito de se organizar em torno de seus interesses, tal direito foi condicionado por uma ação tutelar exercida pelo Estado, tal como na ordenação corporativa sindical criada na primeira era Vargas, mas que deixou à margem os trabalhadores do campo, então largamente majoritários na estrutura ocupacional do País.
Tirante o curto interregno dos felizes anos de meados de 1950 aos infaustos do pós-1964, momento em que as demandas por autonomia dos seres subalternos urbanos e rurais ganham força, o script das décadas seguintes de aceleração a ferro e fogo da modernização, levado a efeito pelo regime militar, tomou a sociedade como uma base passiva para a consolidação de um capitalismo autoritário, na esquecida conceituação de Otávio Velho no seu Capitalismo Autoritário e Campesinato. A sociedade foi transfigurada por uma ação que lhe veio de cima a partir de um plano de estado-maior, enquanto, na dimensão da política, era imobilizada coercitivamente.
A democratização do País, realizada num contexto de transição com o regime militar, se nos trouxe as liberdades civis e públicas e a Carta inovadora de 1988, com seus institutos de defesa de direitos, não se fez acompanhar de mudanças significativas nas relações entre o Estado e a sociedade, que ainda conservam as linhas mestras da nossa tradição de capitalismo autoritário. A democracia não importou em rupturas, inclusive no terreno da formulação de narrativas sobre os destinos do País. Exemplares da continuidade entre os dois momentos, o agronegócio – de indiscutível sucesso econômico –, cujas fundações, ao fim e ao cabo, se enraízam no monopólio da terra e nas políticas de favorecimento promovidas pelos projetos de colonização do hinterland do regime militar; e as ideologias nacional-desenvolvimentistas que nos acompanham, com ênfases diversas tanto à direita – casos dos regimes de 1937 e do recente regime militar – quanto à esquerda, desde os anos 1930.
Houve, decerto, formações partidárias originárias do processo de democratização que apresentaram alternativas a essa tradição, particularmente as nossas duas versões da social-democracia, o PT e o PSDB. Esta última, governo em dois mandatos presidenciais, mais aplicada em diminuir e controlar o papel do Estado na economia, tal como testemunhado por sua política de privatizações, do que orientada para a animação da sociedade civil e do estabelecimento de vínculos com a vida associativa.
O caso do PT é mais intrigante, uma vez que ele inicia sua trajetória numa aberta denúncia do capitalismo autoritário, de suas práticas e instituições, inclusive da CLT e do exclusivo agrário, voltado com energia para a valorização das instituições sociais e de defesa da sua autonomia diante do Estado, para, mais à frente, sucumbir aos cantos de sereia da tradição republicana autoritária. Nessa conversão, seu projeto de mudança não viria de baixo, da agregação de forças sociais mobilizadas em torno de reformas substantivas no terreno da democracia política, mas por cima.
Da primeira metade do primeiro governo Lula, em que subsistiam elementos de continuidade com a experiência de governo do PSDB, transita-se, sem que os fundamentos dessa mutação tenham sido justificados perante a sociedade, para a modelagem nacional-desenvolvimentista. Para suas relações com o Legislativo os mecanismos de cooptação do presidencialismo de coalizão bastariam, reforçados por um engenhoso e criminal sistema de extração de recursos de empresas públicas com que literalmente se passou a comprar apoio parlamentar. Por esse caminho turvo, bafejado por um partido com origem na esquerda, mais uma vez a modelagem do capitalismo autoritário encontrou formas de sustentação.
A política é refratária às linhas retas. Aqui, é sabido, ela prefere os caminhos em ziguezagues, como nesse do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, pois o alvo atingido de verdade é menos ela do que a natureza do nosso capitalismo autoritário, que inspirou suas práticas de governo e que estão, agora, com suas fontes de reprodução à morte.
A agonia a que ora somos submetidos provém da política tal como a conhecemos desde que ingressamos na modernidade, porque definitivamente nossa sociedade se tornou mais moderna que seu Estado e começa a demandar por mais espaço a fim de se auto-organizar. Os idos de junho de 2013, um levante da sociedade contra esse Estado que está aí, são a maior confirmação disso. O que nos falta é tentar acompanhar pela cabeça, pela reflexão, o caminho que já fizemos com os nossos pés, jogando ao mar esse entulho de ideias velhas que ainda povoam a cena como fantasmas de outro tempo.
(*) Fonte: O Estado de São Paulo (03/07/16)
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