Em fevereiro de 2005, Severino Cavalcanti, então deputado pelo PP de Pernambuco, foi eleito presidente da Câmara. Era um congressista inteiramente desconhecido, fora do radar mesmo de quem acompanhava profissionalmente a política. No primeiro turno de votação, recebeu apenas 124 votos contra 207 do candidato oficial do governo Lula. No segundo turno, venceu com 300 votos. O candidato do governo conseguiu receber menos votos no segundo turno do que tinha recebido no primeiro: 195. Na época, a derrota parecia poder ser inteiramente explicada pela divisão dentro do próprio PT, que apresentou um candidato oficial e teve outro dissidente, que recebeu 117 votos no primeiro turno de votação. Hoje, essa explicação se mostra insuficiente, especialmente quando analisada do ponto de vista da ascensão e queda de Eduardo Cunha.
Como no caso da eleição de Cunha à presidência da Câmara, em fevereiro de 2015, também a eleição de Cavalcanti foi uma derrota do governo, evento bastante raro. Foram ambas vitórias do que se costumava chamar de baixo clero. Em 2005, esse baixo clero teve o seu primeiro momento de "emergente", jargão criado ainda na década de 1990 que se estendeu pelos anos 2000. Com Cunha, ganhou upgrade e se tornou "centrão". Severino Cavalcanti durou pouco mais de sete meses no cargo. Renunciou depois do aparecimento de denúncias de que recebia propina de um prestador de serviços do restaurante da Câmara. Com Cunha, o baixo clero novamente emplacou um candidato que podia chamar de seu. Mas Cunha não durou nem dez meses mais que Cavalcanti no posto.
E, no entanto, as semelhanças não devem impedir de ver que Eduardo Cunha foi um Severino Cavalcanti modernizado, com visão estratégica. Em 2005, estava em seu primeiro mandato como deputado federal. Entre 2003 e 2005, o governo Lula adotou a tática de desviar das cúpulas partidárias e ir direto aos deputados para construir sua base. Essa tática levou basicamente a dois resultados. De um lado, o conflito com as cúpulas partidárias escalou a ponto de transbordar na denúncia do mensalão, não por acaso feita pelo então presidente do PTB, Roberto Jefferson. De outro lado, empoderou o baixo clero da Câmara, tendo como resultado mais saliente a eleição de Severino Cavalcanti.
A experiência daquela eleição para a presidência da Câmara permitiu a Cunha ver a brecha por onde iria depois se infiltrar. O poder do alto clero no controle do Congresso é o poder das cúpulas partidárias. No caso do PMDB, a cúpula partidária tinha deixado claro para Cunha naquele momento que, a depender dela, ele iria sempre pertencer ao baixo clero. A eleição de Severino Cavalcanti mostrou que o único caminho que lhe restava para subir seria contornando a cúpula de seu próprio partido, acumulando poder junto a deputados de outras siglas. Criando, enfim, a sua própria bancada.
Cunha se especializou em estratégias de financiamento de campanha e de migração partidária. Apresentava soluções que permitiam aos deputados sob sua proteção conseguir recursos e, ao mesmo tempo, ao perseguirem seus interesses mais imediatos, escapar o quanto possível de eventuais punições por parte das cúpulas partidárias. Mas Cunha ele mesmo nunca deixou o PMDB. Usou poder externo ao partido para conseguir vencer obstáculos dentro do partido e subir na hierarquia. Sabia que só o PMDB, como líder do cartel de venda de apoio parlamentar no Congresso, poderia lhe permitir chegar onde pretendia.
Mesmo depois de sua eleição para a presidência da Câmara, Cunha manteve ativa e organizada sua bancada particular, independentemente de fronteiras partidárias. Foi assim que se tornou o símbolo da autodefesa do sistema político contra a Lava-Jato. E, sobretudo, tornou-se o grande árbitro das disputas entre deputados e as cúpulas partidárias, procurando sempre soluções que penalizassem o menos possível o baixo clero. Usou seu poder para influir decisivamente na escolha dos próprios líderes partidários, inclusive.
O problema é que, a partir de meados de 2015, essa posição de árbitro entre cúpulas partidárias e deputados entrou em conflito com o objetivo de afastar Dilma Rousseff. As cúpulas partidárias já estavam suficientemente preocupadas com a maneira de operar de Cunha, que lhes tirava poder e autoridade. E o governo Dilma, tendo nas mãos os lotes e quinhões a distribuir, jogava a favor das cúpulas partidárias contra essa maneira de operar de Cunha.
Nesse momento, para se contrapor às investidas do governo Dilma, Cunha foi obrigado a se apoiar nas cúpulas partidárias para virar o jogo. Testemunha disso foi sua atividade frenética durante o período da chamada janela de migração partidária, terminado em março deste ano. Cunha se empenhou para aprovar essa Emenda Constitucional que permite a troca de partido nos 30 dias que antecedem o prazo final de filiação partidária para as eleições seguintes. A reconfiguração de forças depois desse período foi o sinal mais claro de que as cúpulas partidárias tinham retomado muito da autoridade antes danificada e que o destino do impeachment passaria necessariamente por elas. De fato, como mostrou Maria Cristina Fernandes em um texto no calor da hora da aprovação do impeachment na Câmara, foi a mão firme das cúpulas partidárias contra as dissensões e dissidências que conseguiu fazer valer a ordem unida dos 367 votos favoráveis. Eduardo Cunha gastou todo o crédito que tinha acumulado junto ao baixo clero para avalizar a autoridade e o poder das cúpulas partidárias e, com isso, alcançar o impeachment.
Assim nasceu o baixo centrão em torno do qual gravita hoje a eleição para a presidência da Câmara. Junto com ele vem uma disputa aberta e não resolvida entre cúpulas partidárias e parlamentares, especialmente de um baixo clero empoderado pela presidência de Eduardo Cunha. Sem um árbitro à vista capaz de substituir Cunha e mesmo sendo altos os riscos, o governo interino não terá outra saída senão escolher um dos dois lados. E, no entanto, é esse passo que, até o momento, Michel Temer hesita em dar.
(*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
Fonte: Valor Econômico (11/07/16)
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