sexta-feira, 15 de julho de 2016

Os estereótipos do impeachment (Sergio Fausto)

A fabulação petista de que teria havido um golpe branco de direita no Brasil ganhou asas na imprensa internacional. Não que a tese tenha sido acolhida por inteiro, mas o suficiente para deixar no exterior um ar de suspeição sobre a legitimidade do afastamento da presidente Dilma Rousseff. Parte disso se explica pela, digamos assim, competência comunicacional do PT e seus aliados. Parte, pela visão ainda estereotipada do Brasil mesmo nos melhores jornais do mundo.
É certo que, no caso concreto, os estereótipos estavam à disposição. De um lado, uma ex-presa política, torturada pelo regime militar, a primeira mulher a chegar à Presidência do Brasil, eleita por um partido “dos trabalhadores”, o mais importante construído “de baixo para cima” na História do País. De outro, “um bando de homens maus”, simbolizados pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que pôs o pedido de impeachment para andar e desempenhou papel importante na autorização para que sua instalação fosse aprovada pelos deputados, numa sessão folclórica incompatível com a gravidade do momento. Ao assumir, o vice-presidente nomeou um Ministério sem mulheres e só de brancos, alguns deles sabidamente encrencados na Lava Jato e que por isso duraram no posto menos de um mês.
Acresce que as bases jurídicas do impeachment são sólidas, mas podem parecer questiúnculas formais para quem não sabe aquilatar o que custou ao País erguer a Lei de Responsabilidade Fiscal e quão importante é preservá-la. Além disso, o chamado “crime de responsabilidade” não é de fácil compreensão nos países com regimes parlamentaristas e mesmo nos Estados Unidos, onde a legislação que rege o impeachment do presidente é distinta.
Verdade que, em seu noticiário, os principais jornais estrangeiros expuseram em geral com objetividade o tamanho do desastre econômico produzido pelo governo Dilma, o grau de envolvimento no escândalo da Petrobrás do PT e dos demais partidos que compuseram a aliança lulopetista, a peculiaridade de o governo Michel Temer ter nascido de dentro do seu predecessor, as divisões e ambiguidades das oposições, também elas alcançadas, em menor grau, pelos desdobramentos da Lava Jato.
É, porém, nos editoriais — a opinião oficial de um jornal — que transpareceu a incompreensão da delicada e complexa situação vivida pelo Brasil, quando não aflorou a tentação de ditar sentenças sobre a mais legítima solução para os impasses políticos do País, como se aqui não houvesse nem Constituição nem Suprema Corte.
Dois jornais admiráveis incorreram nesses erros. Em editorial de 12 de maio, o New York Times (NYT) reduziu as pedaladas fiscais a manobras corriqueiras feitas desde sempre e disse haver razões para suspeitar que o processo de impeachment contra a presidente Dilma se devesse à determinação da presidente de manter a Operação Lava Jato em andamento. Dois dias antes, o jornal El País, na sua edição em português, publicara editorial, com o título “Processo irregular”, acusando as oposições de transformar a má gestão do Orçamento em crime penal e afundar o País em “caos institucional”. Em 6 de junho, já com a presidente afastada, o NYT desafiou Michel Temer a promover uma lei pondo fim à suposta imunidade criminal de ministros e parlamentares em casos de corrupção para provar que não compactuaria com ela.
O primeiro editorial do jornal nova-iorquino comprou acriticamente uma tese esdrúxula vendida pelo petismo. O segundo faz uma afirmação sem fundamento nos fatos: não há imunidade de parlamentares e ministros em matéria criminal, e sim prerrogativa de foro, o que não isenta parlamentares e ministros de responsabilidade penal, mas os submete ao STF, como qualquer pessoa medianamente informada deveria saber.
Pode-se ser a favor ou contra a extensão da prerrogativa de foro a esses agentes públicos. Outra coisa é desconhecer sua existência. Tanto mais quando a ignorância do fato serve de base para definir critérios de julgamento moral de um presidente constitucional de outro país. No caso, o desconhecimento jurídico somou-se ao irrealismo político: não é possível ao mesmo tempo constatar a necessidade urgente de o presidente Temer conseguir aprovar no Congresso medidas que tirem o Brasil da pior crise de sua História e exigir-lhe que ponha fim à prerrogativa de foro.
A mesma ignorância sobre a legislação nacional é revelada pelo editorial do El País, ao não considerar que a Lei de Responsabilidade Fiscal tipifica como infração as “pedaladas fiscais”, ao desconhecer que a Lei do Impeachment e a Constituição federal preveem o afastamento do(a) presidente em caso de desrespeito às leis orçamentárias e ao confundir infração penal com crime de responsabilidade (pode haver este sem haver aquela, como o caso Collor o demonstra).
Como se não bastasse, o editorial do NYT de 6 de junho intitulou-se, em tradução livre, “Medalha de ouro da corrupção para o Brasil”, revelando cegueira para as profundas e positivas transformações em curso na esteira da Operação Lava Jato.
Não se trata de dizer que o Brasil não é para principiantes, pois estamos falando de dois dos melhores jornais do mundo. Muito menos de afirmar que o Brasil tem mistérios insondáveis que só a quem vive aqui é dado conhecer. Nada disso. Somos uma sociedade aberta e nos beneficiamos da avaliação constante que brasileiros e não brasileiros, vivendo aqui ou no exterior, façam a respeito do País, de sua cultura e de suas instituições.
Cabe apenas dizer que o Brasil é um país suficientemente complexo para exigir melhor esforço de compreensão do seu momento político. E democrático e desenvolvido o bastante para aconselhar uma dose maior de humildade antes de condenar o modo como vem encaminhando as soluções para os desafios da hora presente.
(*) Sergio Fausto é superintendente executivo do ifhc, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of public policy da Rice University, membro do Gacint-USP.


Fonte: O Estado de S. Paulo, 14 jul. 2016.

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