Não foi somente a vitória de Rodrigo Maia na Câmara ou as pesquisas que, na última semana, mostraram que mais da metade dos brasileiros mostram-se favoráveis à finalização do impedimento de Dilma Rousseff. Foi isso, e mais um pouco.
O governo interino de Michel Temer começou a soldar suas partes e já não é tão combatido como antes. A eleição do novo presidente da Câmara – nascida de uma articulação política não fisiológica – deu ao governo uma oportunidade para se mexer com maior desenvoltura no Congresso. A frente contra o “golpe” continua ativa, mas já não exibe a mesma força de antes. Buscou-se reforçá-lo com os slogans “Fora, Temer” e “não reconheço governo golpista”, que não animaram a vida política. Sem ter a seu favor análises realistas que dessem consistência e credibilidade à ideia mesma de “golpe”, o movimento foi-se curvando aos dados duros da política, à vida cotidiana e aos novos problemas da agenda nacional, que magnetizam as lideranças. Hoje, salvo melhor juízo, os slogans “antigolpe” servem mais como música de fundo para atos localizados de protesto e reivindicação.
O próprio PT já não se empenha tanto. Continua a denunciar o “golpe” mais por dever de ofício que por convicção. Chegou mesmo a apoiar a eleição de Rodrigo Maia, que até ontem seria um dos líderes da “conspiração golpista”.
É verdade, também, que não surgiu qualquer onda de entusiasmo ou apoio ao novo governo. A sociedade parece anestesiada, à espera de atos que a ajudem a se reposicionar e, eventualmente, a se repactuar com a política e os políticos. Os cidadãos olham para o Executivo e o Legislativo com tédio, decepção e desdém, como se se tratasse de um planeta distante, cujas ameaças criam mal-estar.
Seria estranho se fosse diferente. Não há, a rigor, motivos para comemoração: a democracia funciona, seus ritos e instituições têm sido respeitados, mas o sistema não se mostra ágil o suficiente para responder às demandas e expectativas da sociedade. Seu descompasso vem junto com a indiferença social, que se mantém ativas graças à convicção de muitos cidadãos de que a política se tornou exclusivamente coisa de políticos sem caráter. É um cenário desfavorável, ainda que não seja imutável.
O governo interino concentra-se em compor sua base parlamentar e recuperar a economia, valendo-se da ideia de trazer de volta a “confiança” entre os políticos e entre os agentes econômicos. Acredita que, com tal procedimento, terá como obter a aprovação do impedimento definitivo de Dilma e, a partir de então, reorganizar seus apoios, seu ministério e suas políticas. Se der errado, Dilma pode voltar e aí o caos será completo.
O governo continua com muitas arestas: ainda não se “arredondou”. Se passar pela prova final do impeachment, é provável que continue a flutuar como um polígono convexo irregular, condicionado pela dificuldade de coordenar uma sociedade sem eixo, pela carência de articuladores competentes no Congresso, pelas pressões do fisiologismo.
A própria recuperação da economia não é certa. A equipe econômica é competente, está sintonizada com o mercado e conhece os meandros das contas públicas, mas os ajustes anticrise por ela concebidos terão de ser discutidos e aprovados no âmbito político, onde os obstáculos são imensos. Há, além disso, a situação geral do país, suas desigualdades sociais, seus sistemas públicos e suas políticas pouco eficazes, seus déficits em termos de infraestrutura e de produtividade.
O governo, porém, confia no tamanho do mercado interno e na força da economia brasileira, no peso estratégico do país no mundo e na desarticulação das grandes maiorias. Tem até como usar a seu favor, paradoxalmente, a própria crise política, agindo mediante negociações seletivas, privilegiando ora uns, ora outros dos mais de 30 partidos políticos, sem ser hostilizado pela oposição, que se mostra, hoje, desestruturada e confusa.
Essas, porém, são vantagens bastante relativas. A disjunção entre Estado e sociedade jamais favorecerá a democracia e o bom governo. Se, no momento atual, desponta um novo clima político, derivado da neutralização dos fatores desorganizadores que se infiltraram nos governos petistas, não há como saber de que modo o país seguirá em frente.
Haverá, no horizonte, algum movimento virtuoso para reformar a prática e a cultura dos políticos e de seus partidos, ajudando ao mesmo tempo a que se reduzam a fragmentação parlamentar, o fisiologismo, o alto custo das campanhas eleitorais? O novo governo trará consigo uma estrutura administrativa mais eficiente, novos hábitos, procedimentos e mentalidades, que auxiliem a que se racionalize e se aperfeiçoe a atuação do Estado? A democracia ganhará ímpeto mais substantivo e melhor qualidade? Que caminho seguirão os partidos para assimilar os efeitos da Lava Jato e bloquear os germes da “antipolítica” que ameaçam contaminar a população? Que esquerda emergirá da crise do PT?
Nenhuma dessas questões tem como ser hoje respondida.
O país pede por renovação nas práticas políticas e nas orientações governamentais. Poderá continuar a aceitar que isso não venha no curto prazo, mas não se mostra disposto a esperar tempo excessivo. Sociedades dinâmicas, heterogêneas, repletas de carecimentos e desejosas de direitos igualitários e oportunidades, como o Brasil, não costumam ser propriamente tolerantes.
A paralisia da esquerda, sua entrega mais à agitação que à elaboração política, despoja a democracia brasileira de um protagonista que faria a diferença. Especialmente porque, ao contrário do que se diz, não há uma “hegemonia de direita” no país, nem a vida política é tutelada pela “mídia monopolizada”. A sociedade é cada vez mais plural, os cidadãos estão soltos e individualizados, as correntes de opinião se manifestam livremente e a democracia política vigora. O jogo está aberto, para ser disputado por quem se mostrar qualificado teórica e politicamente.
Fonte: O Estado de São Paulo (24/07/16)
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