Sei que a Turquia é complicada. Vou tentar fazer o possível neste post para explicar de uma forma um pouco mais simples. E peço desculpas pela demora. Mas fiquei até tarde na Globo News e, além disso, não tínhamos todas as informações. E escrevo de memória seguindo a minha teoria de que, se eu não lembro de alguma coisa que vou escrever, certamente quem ler tampouco vai lembrar.
Primeiro, temos de saber um pouco da história da Turquia. Até a Primeira Guerra Mundial, existia o Império Otomano. Era um império multiétnico e multi-religioso. O comandante era o sultão, que, além de líder político, era líder religioso dos muçulmanos. Tinham muitos judeus e cristãos, especialmente em grandes cidades como Istambul, Izmir (Smyrna), Aleppo, Cairo, Beirute, Damasco, Salonica e Alexandria. A população era árabe, curda, armênia, turca, búlgara, grega e eslava.
O Império Otomano entrou em colapso depois da derrota na guerra. Seus territórios no mundo árabe foram divididos entre britânicos e franceses – hoje são Israel, Palestina, Síria, Egito (que já tinha uma certa autonomia), Líbano e Iraque. Os da Europa se tornaram independentes, em um processo que havia começado um pouco antes.
Restou o território da Anatólia e um pouco da Europa, que é a Turquia de hoje. Neste espaço, jovens militares comandados por Mustafa Kemal Ataturk decidiram criar uma nova nação. Um país republicano, laico e turco. Isto é, passaram a valorizar a etnia turca, ocidentalizaram o país, incluindo a escrita, acabaram com sultão e instituíram uma República. Eles eram muçulmanos, mas laicos. Acharam importante separar a religião do Estado, nos moldes franceses. Este processo se chamou “Revolução Kemalista”. Simbolicamente, retiraram a capital de Istambul e transferiram para Ancara, no centro da Anatólia.
Século 20 e a Turquia Ocidental
Ao longo do restante do século 20, os kemalistas dominaram a política turca. Seu partido é o CHP. Mas a grande base do movimento laico é o Exército, além das elites de Istambul, Ancara e Izmir (Smyrna). Quando houve problema, o Exército interveio e assumiu o poder, repassando para civis posteriormente.
Judeus Sefaradis, Armênios e Cristãos Ortodoxos
Talvez você se pergunte o que houve com as minorias religiosas. Os judeus seguiram vivendo em Istambul. Inclusive, são chamados de judeus sefaradis e falam ladino, que é uma língua próxima de um espanhol arcaico. Os armênios foram alvo de genocídio durante a primeira guerra. Os cristãos grego-ortodoxos do que hoje é a Turquia migraram em massa para a Grécia, embora ainda haja em Istambul uma expressiva minoria cristã e também o Patriarcado Ecumênico da Igreja Ortodoxa, às margens do Bósforo.
Importante frisar que os armênios foram perseguidos não propriamente por questões religiosas, mas étnicas. Era turco contra armênio, não muçulmano contra cristão.
Turquia equivale a México ou Argentina
A Turquia, para esclarecer, não é um país atrasado. Está em um patamar de desenvolvimento similar ao Brasil, México ou Argentina. Tem menos desigualdade social do Brasil e incomparavelmente menos violência urbana. Também tem menos pobreza.
Não podemos esquecer também que a Turquia, ao longo da Guerra Fria, era um dos maiores aliados americanos e até hoje é integrante fundamental da OTAN, como é conhecida a aliança militar ocidental.
Mas vamos chegar logo a Recep Tayyp Erdogan. Ele fundou um partido chamado AKP. E o AKP tem um viés religioso. Não se trata de um extremismo religioso, como a Arábia Saudita. Erdogan não é wahabbita. É apenas uma pessoa religiosa em um país laico. Os kemalistas são muçulmanos que comem tranquilamente bacon e tomam cerveja durante o Ramadã. Erdogan e os membros do AKP jejuam.
E o AKP conseguiu vencer as eleições graças ao apoio de uma base mais religiosa no interior da Turquia somado ao, na época, elogiado desempenho de Erdogan como prefeito de Istambul. Houve, na época, uma certa cautela dos kemalistas. Odeio comparações porque podem ser mal interpretadas, mas foi similar ao momento que Lula e o PT chegaram ao poder no Brasil – aliás, foi o mesmo momento – 2002.
Política Externa de Erdogan
Erdogan assumiu como premiê (a Turquia é parlamentarista) e seu aliado Abdullah Gul como presidente. Ele superou o ceticismo ao fazer reformas importantes na economia, que geraram crescimento. Aliás, diferentemente do PT e de Lula, Erdogan nunca foi de esquerda em economia. Ele tem posições conservadoras não apenas em economia como em temas sociais. Em política externa, seu então chanceler Davutoglu buscou estabelecer boas relações com todos os seus vizinhos. Erdogan era amigo de Assad. Lembro de ir a Damasco e ver outdoor com a imagem do líder turco. Juro. Também era amigo de Israel, de Bush nos EUA, de todos. Inclusive, deixou a Turquia mais próxima da União Europeia com a estabilização da economia.
No fim de 2008, Erdogan mediava a paz entre Israel e a Síria. Só faltava assinar. Ele, Assad e Ehud Olmert, então premiê de Israel, poderiam receber o Nobel da Paz. O mundo, ou pelo menos o Oriente Médio, seria mais pacífico hoje. Em tempo, quem me disse que eles assinariam a paz foi o próprio Assad quando o entrevistei em Damasco.
Mas, na época, Israel entrou em guerra contra o Hamas na Faixa de Gaza. E os israelenses, obviamente, coordenaram com o Egito de Hosni Mubarak, que tem fronteira com Gaza. Mas não com Erdogan, que não tinha nada a ver com a história. Ainda assim, Erdogan ficou irritado. Em Genebra, brigou com o presidente de Israel, Shimon Peres.
Aos poucos, a partir de 2009, a Turquia, portanto, começou a mudar sua política externa. Internamente, porém, Erdogan buscava uma aproximação com os curdos. E aqui cabe uma explicação. Os curdos são uma etnia que também segue o islamismo sunita, como os turcos. Mas a religião não interessa. Interessa a etnia.
Os curdos nunca tiveram um país e se tornaram minoria na Turquia, Irã, Iraque e Síria. No caso turco, os kemalistas tinham esta política de o país ser uma república étnica turca. Os curdos não se encaixavam e não tinham direitos, incluindo o de estudar as línguas. Surgiram então movimentos separatistas curdos, como o PKK, que começaram a realizar atentados terroristas a partir do fim dos anos 1970 e começo dos 1980. Foram dezenas de milhares de mortos contra as forças turcas.
Mas voltemos à política externa. A Turquia, que não é árabe, apostou na Primavera Árabe a partir de 2011. E apostou também que as nações árabes se tornariam democracias como a Turquia. Não apenas democracias. Democracias com participação do Islã político. No início, deu certo. A Irmandade Muçulmana assumiu o poder no Egito em eleições democráticas.
Na Síria, Erdogan fez a sua maior aposta. Abandonou seu ex-amigo Assad e passou a apoiar rebeldes da oposição. Mais do que isso. Começou a permitir que jihadistas de todo o mundo entrassem na Síria para lutar contra Assad. O regime de Assad, não podemos esquecer, é laico, mas conta com o apoio das minorias muçulmanas alauíta, cristã e drusa, além de sunitas não religiosos similares aos kemalistas. Erdogan queria uma democracia controlada por sunitas.
Para complicar, Assad concedeu uma certa autonomia aos curdos na fronteira com a Turquia. Estes curdos, que lutavam contra os jihadistas, mas não contra Assad, eram aliados dos curdos na Turquia, do PKK.
Política Doméstica de Erdogan
Internamente na Turquia, Erdogan passou a ter planos de se tornar presidente. Não apenas presidente. Mas presidente em um regime presidencialista, retirando poderes do premiê. Em 2014, ele atingiu seu objetivo se eleger presidente. Era fácil. Mas não obteve a super maioria para seu partido, o AKP, conseguir mudar a Constituição. Na prática, no entanto, Erdogan se tornou o grande líder da Turquia. O premiê passou a ser seu aliado de sempre, Davutoglu.
A oposição se divide entre os kemalistas, os nacionalistas e os curdos não ligados ao PKK. Dividida, não consegue evitar a consolidação no poder de Erdogan. O líder turco, porém, sempre paranoia com um outro grupo – os gulenistas.
Os gulenistas integram um movimento mais religioso que segue um líder atualmente exilado nos EUA. Eles são extremamente educados (no sentido de educação formal, acadêmica). Há membros em todos os setores da sociedade turca – militares, juízes, médicos, jornalistas, acadêmicos. Não há paralelo no mundo.
Erdogan sabe da influência dos gulenistas, que foram seus aliados no passado. E tem uma paranoia atualmente em relação a eles. Tanto que os acusa, em parte, pela tentativa de golpe.
Nos últimos tempos, a paranoia de Erdogan se agravou. Manda prender jornalistas que o criticam. Afasta juízes e generais. Censura a imprensa. O tempo todo acha que alguém trama contra ele. Externamente, Erdogan vinha agindo da mesma forma, ao entrar em atrito com a Rússia na Síria e seguir brigando com Israel e Assad – curiosamente, apesar de estar em lado antagônico na Guerra da Síria, Erdogan sempre manteve uma boa relação com o Irã, que, além de tudo, é xiita. Isso se deve ao comércio bilateral. Erdogan também se dá bem com os curdos do Iraque por causa do comércio.
ISIS (Estado Islâmico ou Daesh)
Dentro deste cenário, no ano passado, a Turquia começou a alterar sua política em relação aos jihadistas. O ISIS, também conhecido como Grupo Estado Islâmico ou Daesh, começou a realizar atentados terroristas. O país passou a integrar a coalizão liderada pelos EUA para combater a organização. Ao mesmo tempo, Erdogan também passou a bombardear os curdos da Síria que lutavam contra o ISIS.
O resultado foi o início de atentados terroristas na Turquia tanto do PKK como do ISIS, sendo o mais recente no aeroporto. Sua popularidade não foi tão atingida, com o AKP vencendo eleições. A base dele é forte e foi beneficiada pelo bom desempenho econômico, surgindo uma nova classe média.
Apesar disso, crescia a insatisfação em determinados setores das Forças Armadas e também da elite em Istambul. No exterior, a insatisfação de Erdogan era crescente. O líder turco soube ler especialmente o cenário externo (e em parte porque viu que até seu aliado Davutoglu o criticava e deixou o governo). Fez um acordo com a União Europeia para reduzir o número de refugiados e imigrantes cruzando da Turquia para a Grécia de barco. Também voltou a se aproximar da Rússia e de Israel. Alguns diziam até que Erdogan passaria a tolerar Assad para haver uma união maior contra o ISIS.
Mas certamente isso não foi suficiente para uma parcela das Forças Armadas. Na noite desta sexta-feira, levaram adiante um golpe militar. Incialmente, obtiveram sucesso. Erdogan, de férias no Mar de Marmara, convocou a população para ir as ruas contra os golpistas. O cenário, naquele momento, começou a se reverter.
Erdogan também teve o apoio externo imediato, com os EUA denunciando o golpe. Dentro da Turquia, os três principais partidos de oposição também disseram ser contra o golpe. Na Globo News, até comparei estes partidos ao PSDB e o DEM condenando o impeachment contra Dilma, mas esta comparação é descabida e peço perdão. Não deveria ter misturado as duas coisas ao vivo e sem contexto (se bem que pouca gente ligou). Mas, enfim, a condenação dos kemalistas, nacionalistas e curdos pesou muito. E, para completar, os gulenistas também condenaram
Neste momento, em uma situação fluída, parece que Erdogan saiu vencedor. Ou, pelo menos, não foi derrotado. Os golpistas parecem ter fracassado. Erdogan acusa os gulenistas, que negam. Outros falam em auto-golpe. Nada é impossível na Turquia de Erdogan, assim como na Rússia de Putin. Acho possível que organizasse um auto-golpe para se fortalecer. Mas creio que seria diferente do que vimos e não haveria centenas de mortos. Talvez, se tiver fugido do controle. Ainda assim, acho improvável.
O certo, apenas, é que uma parcela considerável do médio e baixo escalão das Forças Armadas da Turquia tentou derrubar Erdogan. E aparentemente fracassou. A Turquia, no entanto, independentemente do resultado final, será outra. Creio que pior. Sempre lembro da Venezuela depois do golpe que tentaram dar contra Chávez. O chavismo se radicalizou e ficou bem mais paranoico a partir daquele momento. O mesmo pode ocorrer com Erdogan. Mas estes temas ficam para outros posts e para os meus comentários na Globo News.
Guga Chacra, blogueiro de política internacional do Estadão e comentarista do programa Globo News Em Pauta em Nova York, é mestre em Relações Internacionais pela Universidade Columbia. Já foi correspondente do jornal O Estado de S. Paulo no Oriente Médio e em NY. No passado, trabalhou como correspondente da Folha em Buenos Aires
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16 Julho 2016