Há momentos na vida de um país em que pequenos ajustes não são suficientes para evitar o pior. Hoje, no Brasil, o risco é que o descrédito do sistema político se transforme em descrença na democracia liberal e provoque a abertura da caixa de Pandora onde estão vivas as ideologias e “soluções” antidemocráticas e iliberais, aliás, novamente em ascensão no mundo.
Para evitar esse desvio desastroso na difícil, mas, apesar de tudo, bem-sucedida história recente de afirmação dos valores liberais democráticos no Brasil é preciso apostar na revalorização da democracia.
No plano institucional, isso implica um conjunto congruente de reformas que 1) reduza drasticamente o peso do dinheiro nas campanhas eleitorais, 2) restabeleça a conexão do eleitor com os eleitos ao Poder Legislativo, 3) redefina os papéis do Congresso e da Presidência da República, 4) reequilibre a Federação. São reformas que se reforçam mutuamente.
Reduzir os custos de campanhas é importante para democratizar o acesso à carreira política, facilitando o ingresso de lideranças da sociedade civil, e para reduzir a dependência dos eventuais eleitos em relação a grupos de interesse com capacidade diferenciada de mobilização de recursos financeiros. Se queremos renovação com qualidade no Congresso, é preciso reduzir estruturalmente os custos de campanhas para o Legislativo.
Isso só virá com uma mudança no sistema eleitoral. O que hoje vigora faz da disputa por votos à Câmara dos Deputados um leilão em que candidatos, numa luta de todos contra todos, tratam de buscar dinheiro de quem tem (empresas) para comprar o apoio de quem lhes pode assegurar votos (candidatos a deputado estadual, prefeitos, lideranças locais, etc.). O eleitor comum desconhece a teia de compromissos que se forma nesse processo.
Fora dos bastidores da política, enfrenta dificuldades para obter até mesmo as informações mais superficiais sobre cada um dos vários candidatos espalhados pelo hiperfragmentado universo de partidos existentes. Em suma, o atual sistema eleitoral mercantiliza a política e confunde o eleitor (pior, não raro o engana, com as coligações partidárias). Alguma surpresa que o desencanto com a representação parlamentar só cresça e a qualidade dos parlamentares, no geral, só diminua?
Está na hora de voltar a insistir na adoção do sistema distrital misto. As transformações da sociedade brasileira não só justificam, como requerem o voto distrital: o coronel rural ou urbano está virtualmente extinto, o universo fechado das paróquias eleitorais são coisa do passado; hoje o eleitor não só pode, como demanda controlar “de perto” o seu representante. E por que o misto, não o distrital puro? Para permitir que na Câmara haja também deputados que representem visões nacionais abrangentes, além de representantes dos distritos. O sistema distrital misto oferece ao eleitor o direito de escolher o seu candidato e ainda a lista partidária de sua preferência. Além de baratear as campanhas, aproximar o eleitor do eleito e fortalecer os partidos, mantém as vantagens do sistema proporcional e, salvo melhor juízo, não requer emenda à Constituição para ser adotado.
O presidencialismo é o nosso sistema de governo. Mas não estamos condenados a mantê-lo na forma atual. Desde logo se impõe limitar o poder presidencial na livre nomeação para cargos na administração pública. Não é o bastante. A presente crise demonstra, uma vez mais, a propensão que o presidencialismo brasileiro tem a oscilar entre momentos “imperiais” e períodos tendentes ao impasse político.
A separação entre as funções de chefe de Estado e de chefe de governo, respectivamente nas figuras do presidente e do primeiro-ministro, atenuaria os perigos de ambas as situações extremas: de um lado, a divisão de funções impediria a acumulação de poder simbólico e efetivo numa só pessoa; de outro, permitiria solucionar mais facilmente situações de impasse político, como a atual. Diante da desarticulação da maioria no Congresso, o primeiro-ministro poderia ser substituído sem trauma e, em último caso, o presidente convocaria eleições para formação de uma nova maioria. Na hipótese de serem eleitos por coalizões diferentes de partidos, presidente e primeiro-ministro teriam de escolher entre a coabitação e o confronto.
Este último risco é real, mas me parece menor do que a certeza da ciclotimia inerente ao presidencialismo existente no Brasil. O semipresidencialismo, com o voto distrital misto, e uma administração pública menos vulnerável às nomeações políticas podem ser o melhor caminho disponível para superar as relações oportunistas que imperam entre o Congresso e o Executivo na formação e no exercício do governo.
A redução do poder presidencial deve vir acompanhada do reequilíbrio nas relações federativas. Ao transferir recursos para Estados e municípios sem a correspondente transferência de obrigações, a Constituição de 1988 levou o governo federal, a partir de meados dos anos 90, a aumentar tributos não compartilhados com os demais entes da Federação. A reconcentração de receitas respondeu às necessidades de fazer o ajuste fiscal e assegurar a inflação baixa, mas também propiciou a transferência crescente de recursos federais diretamente aos municípios, em detrimento dos Estados.
Além da excessiva dispersão de recursos, sem a necessária coordenação de ações, esse processo reforça o poder de cooptação das forças dominantes no nível federal, bem como a vassalagem do Congresso ao Executivo.
Não se trata de recriar os barões da Federação e deixar a União à míngua, mas de buscar uma solução que compatibilize eficiência do gasto público, disciplina fiscal e, não menos importante, limites à excessiva concentração de poder no governo federal.
Há muito que discutir, mas uma coisa é certa: a manutenção do status quo nos levará da fase aguda ao estado crônico da crise, com riscos permanentes de recaída.
(*) Sergio Fausto é superintendente executivo do IFHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, membro do Gacint-USP.
Fonte: O Estado de São Paulo (14/03/16)
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