quarta-feira, 30 de março de 2016

No grito não! (Francisco Ferraz)

Vem se tornando um hábito para Lideranças do PT, desde a presidente Dilma, passando por Lula, pelo presidente do partido Rui Falcão e por lideranças sindicais, fazer ameaças aos adversários - cada vez mais vistos como inimigos e a dinâmica politica que os separa cada vez mais vista como “guerra”.
Por inimigos entendam-se então aqueles que defendem o impeachment da presidente, ou que se oponham à corrupção que grassa no governo ou ainda, quem defenda e apoie a operação Lava Jato e apoie o juiz Sérgio Moro que, embora não se saiba ainda se joga futebol (reserva inesgotável de heróis brasileiros), é o único herói que esta histórica crise revelou.
Lula deu o start desse modismo despropositado, irrealista e irresponsável. Por certo está inconformado com o fato de que pessoas que vestem verde e amarelo nas manifestações das capitais dos estados e das cidades do interior, no “sul maravilha” como no norte e nordeste, ocupam as ruas em números muito acima do que aquelas que o PT convoca para suas manifestações.
Inconformado também deve estar com seus resultados nas pesquisas de opinião e nas “pesquisas feitas pelo político”: a reação nas ruas à sua presença, e a de seus companheiros.
Na impossibilidade de reconhecer a realidade e o significado dos números, Lula e seus subordinados atacam, ridicularizam e ameaçam os eleitores (muitos dos quais votaram nele e em Dilma) como ‘coxinhas’, ‘golpistas’, ‘reacionários’, ‘militaristas’, e classe média (que, até vir para a rua protestar, era o objeto de desejo dos programas do governo petista).
A dinâmica entrópica da perda da aceitação do PT e seus líderes pelo povo que estavam acostumados de manipular, imediatamente visível após a eleição de 2014, estimulou um sentimento misto de ressentimento com os “mal agradecidos”; de direito de exigir deles a contrapartida do que veem como “favores” concedidos; e a disposição de recorrer a formas mais arriscadas e radicais de reação.
Passado o momento de negociar cargos com o PMDB, equiparar a imagem negativa de Eduardo Cunha com o impeachment, e com as denúncias de Delcídio, a gravação de Mercadante, tornava-se necessário um lance mais poderoso.
O episódio da condução coercitiva de Lula pela operação Lava Jato, do seu pedido de prisão por parte do Ministério Público de São Paulo e a decisão do Supremo sobre o processo de impeachment impôs a presença de Lula no Palácio e no poder, uma solução que parecia ser mutuamente vantajosa para ele e para o governo.
Na medida em que a grande jogada estratégica (nomeação de Lula para ministro) “engasgou”, provocou reações hostis inesperadas e que o impeachment da presidente começou a andar, o desespero parece ter aconselhado avançar mais um grau no conflito: o recurso ao expediente das ameaças.
Neste momento o que toma vulto não é mais a considerável habilidade política de Lula para negociar. O próprio Lula parece ter reconhecido esta situação quando inaugurou a fase de “ganhar no grito”.
Ao convocar para a guerra suas tropas e ao gritar na Paulista deboches e impropérios ao povo, que enchera aquela mesma avenida menos de uma semana atrás, o próprio Lula dá a entender que desistiu de conquistar o povo para falar para os devotos, os militantes, os que permanecem empregados em meio a um mar de desempregos.
Mas no grito não vai não.
O país está lidando com esta que é a mais grave crise que tivemos com suas instituições (mesmo sabendo de suas falhas, defeitos, vícios e imperfeições); as manifestações são pacíficas e não se transformam em surtos de ação direta; mesmo as que reúnem milhões de pessoas saem das ruas sem quebrar uma lâmpada;as forças armadas, sujeitas à constituição, com a serenidade e legitimidade que o respeito popular lhes confere pelas pesquisas, mantêm-se distantes das divisões políticas do país; o mercado passa sinais claros para a sociedade na medida em que os fatos políticos se sucedem; eas decisões que deverão dar uma resposta à crise provirão das principais instituições políticas do legislativo e do judiciário.
O povo brasileiro está demonstrando possuir um senso de equilíbrio, paciência e tolerância que talvez venha a antecipar um importante traço de maturidade política que não se supunha que possuíssemos

29/03/16

Especulações em torno do dia seguinte (Hamilton Garcia de Lima)

Alguns analistas da cena política têm aventado a hipótese de que o dia seguinte à votação do impedimento de Dilma Rousseff será de um grande alívio para a crise em curso: se aprovado, os aloprados seriam postos de lado e um presidente equilibrado assumiria o leme, com o PT alquebrado, levando a uma reversão das más expectativas econômicas; de outro, se rejeitado, à oposição restaria apenas apostar no processo de cassação da chapa Com a força do povo no TSE, como se isso atenuasse a pressão social contra o lulopetismo ou abrisse alguma janela para a normalização econômica.
Na verdade, a hipótese mais provável é de um aumento da tensão em curto e médio prazos: da tensão política, no caso do impedimento; da tensão social e econômica, no caso do continuísmo. Explico melhor.
Aprovado o impedimento, o PT teria dois caminhos a seguir: tentar se reconstruir em torno de lideranças mais sensatas e responsáveis, ou enveredar pela política de resgate de seu legado originário, que hoje teria mais ares de anacronismo do que de radicalismo democrático-pluralista como outrora.
A julgar pela trajetória do PT até aqui, a segunda via é a mais provável, não só por se nutrir da nostalgia de um Lula com ampla credibilidade, mas porque o PT já não é mais o mesmo e a militância que hoje vai às ruas defender seus dirigentes encalacrados exala o cheiro de naftalina dos velhos métodos de manipulação do stalinismo, com seus cacoetes fanático-inescrupulosos; exatamente o oposto daquilo outrara representado pela miríade de grupos alternativos enfeixados no PT dos anos 1980, que empolgou a sociedade exatamente por combater o autoritarismo, a mentira sistemática e o conformismo insosso da política moderada.
Ademais, o tempo fez do PT um partido parlamentar pragmático e, dos movimentos sociais tradicionais, um mero apêndice de partidos que há décadas os controlam, o que implica perda de radicalidade original, cuja fonte era a proximidade verdadeira com as bases sociais. A doença senil da esquerda envolveu a doença infantil, que hoje serve apenas de chamariz para os neófitos, além de eterno combustível dos sectários, comprometendo a promessa do elixir da utopia, que hoje estufa as velas do voluntarismo romântico das seitas anencéfalas que se fizeram sentir na vazante das jornadas de junho de 2013.
A possibilidade de uma repentina tomada autocrítica de consciência dos petistas fica prejudicada também pelo modo como seus setores não-degenerados se comportaram diante da orgia que tomou conta da legenda, preferindo sempre compactuar com a cleptocracia dirigente ao invés de sustentar a divergência com vistas ao inevitável desenlace, que agora se vislumbra. Deste modo, não apenas se limitou o alcance e credibilidade das justas críticas ao desvio de rota partidário, como se deixou aberta a porta para a saída de quadros e seguidores que poderiam sustentar esta luta no plano interno das convenções.
Isto tudo pode significar o lento e seguro isolamento político-social do PT em longo prazo, e mesmo assim na dependência do êxito dos governos que virão. Em curto e médio prazos, todavia, a cleptocracia petista ainda pode contar com uma reserva de apoio entre jovens, intelectuais e sindicalistas, capaz de lançar labaredas na direção de uma sociedade frustrada, em meio a uma crise econômica grave e, até aqui, sem lideranças alternativas capazes de mostrar novos caminhos para a recuperação do país.
No caso da impugnação do impedimento, naturalmente os partidos de oposição refarão seus cálculos na direção do TSE. Porém, é sabido que a influência desses partidos sobre o movimento social de rua é tênue, seja pela desconfiança do público nas lideranças tradicionais, seja porque as lideranças alternativas (PPS e Rede) ainda não se mostraram à altura deste desafio.
Assim, a direita radicalizada, pioneira no enfrentamento ao lulopetismo, poderia ocupar o vácuo, no contexto da grande frutração que se seguiria, quer empurrando alguns segmentos para a violência aberta nas ruas, quer alimentando grupos ilegais no intuito de desestabilizar a ordem pública e provocar uma intervenção militar. Do outro lado do ringue, encontrariam seus antípodas dispostos a colaborar, estúpida e involuntariamente, quer nas milícias sindicais petistas e no, ainda ausente, “exército do Stedile”, quer na juventude carbonária a postos desde 2013 — tendo, inclusive, já produzido um cadáver, em 2014, sem que a Justiça os tenha efetivamente punido e sem que perdessem o status de “ativistas sociais”.
Tudo isso pode não se realizar. Mas, em meio ao ambiente tóxico criado pelo lulopetismo, desde a desastrosa campanha de 2014, não se pode deixar de considerar a hipótese do agravamento político. Mesmo que se possa debitá-lo na conta daqueles que entendam a corrupção como um instrumento legítimo da atividade política e justifiquem sua torpeza com base no equivocado princípio de tirar vantagem do atraso, supostamente para produzir progresso, seus efeitos serão para todos.
(*) Hamilton Garcia de Lima é cientista político e professor do Lesce/UENF). 
Fonte: Gramsci e o Brasil

A miragem do impeachment (Marcos Nobre)

Começou como costumam começar as revoltas: com uma passeata convocada por um movimento social organizado e com a repressão policial ao protesto. A concentração em frente à igreja matriz do bairro periférico de Santo Amaro, zona sul de São Paulo, tinha sido chamada pelo Movimento contra o desemprego e a carestia para as 8 horas da manhã do dia 4 de abril de 1983. Em pouco tempo, o protesto se transformou no que a imprensa da época chamou de quebra-quebra.
Foram 3 dias conturbados aqueles do início de abril de 1983. Na cidade de São Paulo em especial. Dias de saques a supermercados. Não apenas aqueles localizados no caminho da multidão, mas, principalmente, os instalados em zonas periféricas. As pessoas pulavam sem cerimônia as catracas de ônibus, ou simplesmente desciam sem pagar a passagem - o passe livre tinha sido decretado na marra. Estabelecimentos comerciais foram depredados.
Passeatas espontâneas e organizadas se formavam. Em uma delas, a multidão arrancou a placa de um viaduto que homenageia o General Euclides de Figueiredo. A associação com o então general-presidente João Baptista Figueiredo foi inevitável. Afinal, tratava-se de seu pai, um militar que tinha pertencido ao grupo dos "jovens turcos" que, nos anos 1920, pretendiam modernizar o Exército e o país de cima para baixo.
O sorriso atônito e o jeito humilde do anônimo que tinha em mãos o troféu da placa arrancada, carregado nos ombros da multidão, parecia, na foto, dar um caráter político organizado às manifestações. Políticas é certo que foram. Mas nem por isso controladas ou dirigidas pela política organizada.
A revolta se dirigia contra os horrores da recessão de 1981-1983, uma brutalidade que o recuo de 8,5% no PIB não consegue nem de longe tornar palpável se não se está na pele de quem perdeu o emprego e a dignidade. Nada parecido com seguro-desemprego ou Bolsa Família existiam na época, nem a Avenida Paulista era palco preferencial de manifestações. O que havia de novo era o início dos primeiros governos estaduais eleitos diretamente em mais de 20 anos. Mas, em uma das passeatas, parte das grades da sede do governo do Estado de São Paulo, o Palácio dos Bandeirantes, foi arrancada.
Pode ser que esses dias de abril de 1983 tenham tido seu papel na manutenção da decisão dos militares de passar o poder para a oposição consentida, de maneira controlada. Pode ser que tenham tido seu papel em aliviar um pouco o garrote da política econômica do último governo da ditadura, que tinha Antônio Delfim Netto no comando. Mas ficou claro que o divórcio entre a política oficial e o sofrimento social tinha atingido o limite da ruptura. Ficou claro que a eleição de governadores de Estado de oposição não teria impacto significativo no quadro geral da economia, muito menos no duro cotidiano da recessão.
É evidente que o Brasil de 1983 não é o Brasil de 2016. Mesmo que em fogo brando, é crédito de trinta anos de democracia que um golpe militar esteja fora do horizonte e que uma redinha de proteção social tenha sido armada. Acontece que a proteção social parece já ter sido esticada ao máximo. Acontece que, desde Junho de 2013, um divórcio entre a base da sociedade e o sistema político parecido com aquele de 1983 se instalou de maneira duradoura. Só que agora com a enorme diferença de que a democracia não está em questão, mas apenas o seu caráter ainda pouco democrático.
As manifestações a favor e contra o impeachment mostram esse divórcio de maneira preocupante. Os dois grupos que manifestaram na Avenida Paulista nos dias 13 e 18 de março têm taxas espantosamente semelhantes de pessoas com nível de ensino superior: 77% e 78%. A média etária supera em um caso os 45 anos, em outro está muito próxima dos 39 anos. No dia 13, 63% declararam ter renda de 5 salários mínimos ou mais. Na manifestação do dia 18, 54% fizeram a mesma declaração.
A base da sociedade parece não se emocionar com o grande Fla-Flu nacional. Só que essa relativa indiferença não significa nem de longe ausência de mobilização. Podem estar de costas para a Avenida Paulista, mas não estão de costas para seus problemas concretos. É impressionante a quantidade de novos coletivos e organizações que surgem todos os dias nas periferias das grandes cidades.
O recente movimento de ocupação de escolas públicas em São Paulo é apenas a ponta de uma meada que ainda não mostrou todo o seu potencial para a tecelagem política. Não apenas não se resume ao Estado de São Paulo como não se restringe a estudantes secundaristas. Pode-se dizer que ainda se está falando de movimentos organizados. Mas sua novidade é justamente não querer caber em formatos existentes. Mesmo um movimento considerado novo, como o Movimento Passe Livre, já não serve de modelo para esses novos coletivos.
Dá para ver aí que o divórcio é duplo. Não se trata apenas do profundo e generalizado ceticismo em relação à política oficial. Também quem está nos novos coletivos tem ojeriza fundada a partidos, sindicatos, associações, políticos, à institucionalidade de maneira geral.
O verdadeiro abismo não é o que está diante de nós, mas o que se põe entre nós. Não é o impeachment que servirá de ponte para atravessá-lo. A questão de vida ou morte não é a do afastamento ou não da presidente, mas a da capacidade de o sistema político se conectar com a base da sociedade. A política oficial, no entanto, está paralisada diante da Lava-Jato, os partidos em vias de desintegração. É o quadro em que a chance de explosões de insatisfação aumenta exponencialmente.
O problema vai muito além da constituição de um governo. Vai ser preciso muita energia teórica e prática para obrigar um sistema político em pane a se autorreformar. A primeira condição para isso é o efetivo reconhecimento de que o impeachment não é solução, mas mero adiamento do real problema por enfrentar. Mesmo que consiga se conectar com as camadas da sociedade que ainda se orientam pela institucionalidade, o caminho ainda é longo para alcançar quem acha que o impeachment não passa de miragem.
Fonte: Valor Econômico (28/03/16)

terça-feira, 29 de março de 2016

A cara racial da crise das gerações (José de Souza Martins)

Abrindo a temporada de caça na universidade, com o início das aulas na USP, um grupo invadiu um dos auditórios do prédio de Geografia e História. Ali estava sendo ministrada a aula magna de abertura dos cursos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas deste ano. Eram jovens, recitavam um bordão alusivo ao quilombo de Palmares, exigiam cotas raciais e acusavam os presentes na conferência de serem brancos e racistas. A USP já tem um programa de inclusão, que concede um bônus de 15% sobre a nota obtida na primeira fase por alunos oriundos da escola pública, mais 5% para os que são negros. Depois de uma hora de bate boca, a aula inviável teve que ser cancelada.
O grupo tinha maioria de moças, vários eram brancos, muitos mulatos e alguns pretos. Queria que a aula magna fosse sobre cotas raciais. Diversos não são alunos da Faculdade e outros ainda não são universitários. Entraram porque encontraram aquela porta aberta.
Na classe média, a crise de gerações tem, neste momento, uma cara racial.
Teriam conseguido facilmente viabilizar sua demanda se tivessem dirigido, em tempo, uma sugestão nesse sentido à Congregação da Faculdade. Na impossibilidade óbvia de enegrecer um dos professores brancos da escola, para atender a exigência de que fosse negro o orador, a Congregação poderia convidar um de seus professores propriamente negros, que os há, ao contrário de tudo que foi gritado.
O próprio docente impedido de realizar a conferência, conhecedor do tema que é, poderia fazer fundamentada exposição sobre as três diferentes escravidões da história do Brasil, e não apenas a negra, suas características e suas sequelas, acentuando a escravidão por dívida, a chamada peonagem, que se estende até os dias de hoje, geralmente de brancos e pardos, raramente negros. Nos anos 1970, só na Região Amazônica, o Brasil teve ao menos 200 mil cativos, comprados e vendidos, sujeitos a tronco e chibata, eventualmente, até à morte, em caso de fuga e captura. Ele poderia ter falado, ainda, sobre sua experiência nas Nações Unidas, na Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão. Há hoje, no mundo, cerca de 27 milhões de escravos, principalmente na Ásia e na África, mas também na América Latina. É um dos grandes e rentáveis negócios da economia contemporânea.
Poderia falar da persistente escravidão na África, em que etnias negras ainda capturam negros de outras etnias, para escravizá-los.
O orador poderia narrar sua experiência como coordenador que foi da comissão federal que, na Secretaria dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça, preparou em 2002 o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil e Escravo. É um conjunto de propostas de emendas constitucionais e leis para acabar com a escravidão no Brasil e punir devida e severamente traficantes e beneficiários do trabalho escravo.
Teria sido um modo de ajudar os manifestantes a superaram as palavras de ordem estereotipadas e sem fundamento histórico. Aliás, a Faculdade de Filosofia da USP tem uma história de dedicação aos estudos sobre relações raciais e preconceito entre nós, nos trabalhos marcantes de Roger Bastide e de Florestan Fernandes e de seus discípulos e sucessores.
A produção científica da Universidade sobre o tema não chegou aos principais interessados, os negros. Tampouco chegou ao conjunto da população, numa sociedade marcada por preconceitos diversos, dos quais o de cor é apenas um. Os manifestantes exibiram claro desconhecimento de sua própria história e de um conjunto extenso de fatos e estudos relativos às adversidades de mais de século na emancipação do negro. Os manifestantes não invadiram a sala para ouvir, mas principalmente para não ouvir, para calar e desaprender.
A USP, a Unesp e a Unicamp vem se empenhando em recrutar negros e outros estudantes oriundos da escola pública. O fato mais auspicioso é que negros, por seu próprio esforço, têm aumentado sua presença nas Universidades. No vestibular da Unesp, de dois anos atrás, negros que recorreram ao benefício das cotas foram aprovados com notas que lhes teriam permitido o ingresso na Universidade mesmo que tivessem recorrido ao regime normal. Esse é o resultado de uma história social de valorização da escola pública, laica e gratuita. A opção pela gratuidade e pelas ações afirmativas assegura que essas Universidades possam recrutar e acolher talentos e inteligências das diferentes camadas da sociedade e de seus diferentes grupos sociais e étnicos, que é o que interessa.
A Universidade não existe para fazer caridade nem para adestrar seus estudantes nos truques e técnicas da ascensão social. A função da Universidade é preparar mulheres e homens, brancos, negros, indígenas e os mestiços que somos, pobres e ricos, de talento, dando ao País um elenco numeroso de cientistas, educadores e profissionais do conhecimento de que a nação carece para se desenvolver, econômica, social e politicamente, até para ser justa com todos.
O fato
mais auspicioso
é que estudantes negros,
por seu próprio esforço,
têm aumentado sua presença nas universidades públicas
Fonte: O Estado de São Paulo (21/03/16).

segunda-feira, 28 de março de 2016

Agonia de uma lenda (Rosiska Darcy de Oliveira)

Brasil está sendo passado a limpo pelo trabalho feito pelo Judiciário. Acontece no Brasil algo tão transformador quanto a luta contra a corrupção. É o desmascaramento da mentira como instrumento de governo, da ficção como prática política.
A investigação conduzida pela operação Lava-Jato nos trouxe de volta ao mundo real. Revelou mais do que um gigantesco crime organizado por um partido político, acumpliciado com empresários inescrupulosos. Desvelou o caráter impostor de lideranças que abusaram durante anos da confiança de seus eleitores. Com a mão direita, ofereciam Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida, políticas necessárias e louváveis. Com a mão esquerda, assaltavam a Petrobras, destruíam a golpes de desonestidade e incompetência a economia do país, gerando desemprego, o que realimenta a pobreza. Enquanto enriqueciam suas contas bancárias. No botim do PT brilha, roubada, a esperança dos pobres. E isso é o mais imperdoável.
Investigado por crime de ocultação de patrimônio, o ex-presidente Lula foi para as ruas reavivar sua lenda e, com gestos histriônicos, garantir que o perseguem porque “eles” não querem que os pobres melhorem de vida.
Quem são eles, esses personagens da ficção de Lula? Os milhões de brasileiros que país afora saíram às ruas contra a corrupção? São milhões de malvados, reacionários e egoístas? Nessa ficção de péssima qualidade, o justo precisa dos maus, precisa de um algoz para ser vítima.
A varinha de condão do pai dos pobres transforma, então, as manifestações contra a corrupção e o fracasso do governo em artimanha da direita. Divide o país entre direita e esquerda, retrocedendo em meio século a nossa história, desqualifica o que hoje emerge com força: a consciência democrática, que abriga esquerda, direita e demais as nuances de opinião, contanto que respeitem a lei.
A ficção que Lula e seu partido escrevem sobre si mesmos, com a assessoria do ilusionista João Santana, que já está preso, não resiste à capacidade de discernimento que a população brasileira desenvolveu nos últimos anos. O aumento da escolaridade, a informação ampliada, o debate intenso nas redes sociais e a retroalimentação desses fatores amadureceram uma sociedade com senso crítico, capaz de formar, por si mesma, suas convicções. Depois de tantos anos jogando com a fé cega de seu eleitorado, é difícil para o ex-presidente admitir que o encanto tenha se quebrado.
Seu partido, na ficção, mantém viva a esquerda brasileira. Na vida real, matou-a. O que a direita não tinha conseguido fazer ele fez. Jogou na vala comum da criminalidade uma causa generosa que ainda mobiliza muitos militantes honestos, hoje atarantados, como mobilizou a minha geração na luta contra a ditadura, fundadores cuja memória o PT desrespeitou, frequentando doleiros e offshore. Acordou uma direita adormecida há três décadas, que encontrou nos seus desmandos o argumento fácil para abrir uma brecha no espectro político até então blindado a ela.
Acuado pelos próprios fracassos, escuda-se no papel de defensor dos pobres. Ora, não são os ideais de justiça, de combate à pobreza e de equidade — que não são propriedade de nenhum partido — que estão em causa. É um sistema de poder que, construído sobre a mentira, nas últimas eleições se elegeu prometendo o que sabia impossível cumprir. E não cumpriu.
Quem ganha com o descrédito dessa ficção não são os políticos de oposição, é o Brasil. O Brasil que está sendo passado a limpo pelo trabalho da Justiça, um país onde as instituições estão funcionando, apesar do baile de fantasmas que ainda dançam no Congresso Nacional e que, na mira dos juízes, têm seus dias contados.
Esses tempos de tensão e desavenças são o preço que a sociedade está pagando pelo difícil enfrentamento da verdade, pela agonia da lenda. São as dores do parto de um novo país. Duas grandes manifestações pacíficas, cada uma juntando milhões de pessoas, deram um relevante testemunho sobre a solidez da nossa democracia.
Essa jovem democracia quer viver na realidade. Esquerda e direita são categorias anacrônicas que não dão conta do mundo contemporâneo. Vai ser preciso encarnar o desejo de uma sociedade mais justa em ideias e propostas que leiam nossa sociedade atual e, sobretudo, em uma gente nova que está emergindo dos milhões que desfilaram nas ruas no dia 13 de março, que não foram guiados por ninguém e sequer abriram espaço aos velhos políticos de oposição. Não seguiam líderes, apenas exprimiam um tributo merecido à coragem do juiz Sérgio Moro.
A mentira tem autoria, serve ao seu autor. O fato é o autor da verdade. E a verdade serve a todos.
(*) Rosiska Darcy de Oliveira é escritora
Fonte: O Globo (26/03/16)

A hora da democracia (Marco Aurélio Nogueira)

Aceitemos, como hipótese para discussão, que esteja em curso no País um “golpe contra a democracia”. Um golpe, como se sabe, é um ato de força que infringe a legalidade e as instituições com que uma sociedade se governa e processa seus conflitos, que fere com a arma da excepcionalidade o que está instituído e os parâmetros éticos. Na visão governista, como tem repetido à exaustão o discurso oficial, esse golpe se materializaria no pedido de impeachment contra Dilma e no tratamento “inquisitorial” dispensado a Lula pela Justiça.
A imagem do “golpe”, no entanto, não está plenamente caracterizada, não se apoia em fatos concretos. O que enseja o surgimento de várias outras versões da tese. Algumas podem chegar até mesmo a ser mais convincentes e tecnicamente corretas do que a versão oficial.
O que prejudica mais a democracia, por exemplo: um processo de impedimento que corre segundo ritos e ritmos legais ou a catilinária disparata da presidente contra a Justiça, o Congresso e a mídia, uma arenga regressista como poucas se viram no País, de nível mais primário que falas exasperadas de agitadores de botequim? O que é mais antidemocrático: uma campanha pelo engajamento cívico da população contra um governo que não governa (e nessa medida prejudica a todos) ou o estímulo para que as pessoas se disponham a defender todo e qualquer ato, mesmo os mais destemperados, desde que ele venha com o carimbo do Palácio do Planalto?
É patético, e preocupante, ver o governo Dilma cercado por apoiadores que prometem “incendiar o País” e acabar com a “paz” caso o impeachment avance, alimentando a insanidade política e a violência só pela necessidade de obter tribuna. Não se trata de nada próximo do que se poderia chamar de esquerda, mas de uma estratégia de sobrevivência posta a serviço de um ataque contra o pouco de coesão social que existe por aí, contra as instituições democráticas e contra o bom senso.
A hora é, pois, de defender a democracia e de tentarmos nos entender, minimamente, sobre o significado que essa palavra deve ter entre nós. Democracia passa pelo respeito às leis, pelo Estado Democrático de Direito, tão falado nos últimos dias. Tem que ver com a admissão de que nenhum poderoso está acima da lei, o poder político governamental precisa ter freios e ser controlado, não pode mentir e eventuais bravatas de seus ocupantes precisam ser criticadas e desmascaradas – a serenidade e a sensatez são recursos democráticos por excelência. Passa pela integridade moral da classe política, por mais impreciso que isso possa ser. Necessita de espaços de liberdade de contestação e de cidadãos mobilizados, educados politicamente e dispostos a lutar por seus interesses. Exige a criação de um clima favorável ao diálogo e à resolução negociada de crises e problemas. Passa pela adoção de políticas que promovam justiça, igualdade e bem-estar para todos.
Boa parte desses pressupostos da democracia está em falta hoje. Pode ser que as oposições estejam açodadas no combate ao governo, mas a pouca oferta democrática tem no próprio governo sua maior fonte geradora. Um governo que não governa, que não tem qualidade de gestão, que se compõe conforme conveniências e interesses fisiológicos, que se vale de procedimentos destinados a dar privilégio de foro a seus correligionários, que agita para tentar se defender das críticas, que age para disseminar o medo – um governo assim é um pesadelo para a democracia.
A crise atual não tem desfecho líquido e certo. A imprevisibilidade é sua marca registrada. O momento necessita demais da atuação de políticos criteriosos e realistas, estes seres vocacionados para encontrar saídas quando tudo parece imerso na escuridão.
O impeachment pode não ser a melhor opção, mas está à mão e tem respaldo legal. A impugnação da chapa que venceu em 2014 surge como alternativa algo mais difícil, pois depende do TSE, personagem externo à lógica da política. Pode-se ainda recorrer a um plebiscito para que a população se manifeste e endosse, ou não, um novo pacto programático no País. Pode-se jogar tudo para cima, convocar novas eleições e começar de novo. E, por fim, o impeachment pode não ser aprovado, a impugnação não passar pelo TSE e nada acontecer até 2018, com o prolongamento extremado das dores do parto.
Se habilidade tivesse, se não pensasse a política com o fígado, se soubesse construir apoios e se afirmar com destemor, ousadia e coragem no cenário, a presidente Dilma poderia ser protagonista decisiva do desfecho de que tanto se necessita. Poderia ser o polo de articulação de uma saída democrática da crise, um operador revestido de força ímpar para tirar o País do torpor em que se encontra.
Nas últimas semanas, com suas intervenções sanguíneas e atabalhoadas, Dilma talvez tenha queimado parte importante de suas reservas estratégicas, talvez tenha detonado algumas pontes preciosas que a ligavam à razão de Estado e à racionalidade política.
Mesmo assim, a presidente não pode ser sumariamente descartada. Sua eventual contribuição – que representaria sua manutenção no jogo –, porém, é inversamente proporcional à disposição que vem demonstrando de confrontar as instituições e os políticos para tentar cair nos braços da galera.
Há um clima de impasse e paralisia no País. Sua reprodução não interessa a ninguém. Se o combate a isso tardar e passar do ponto, as consequências serão certamente as piores. Não é ainda uma situação desesperadora, mas requer atenção e cuidado.
Se a hora é da democracia, então é indispensável que os democratas saiam a campo para promovê-la. A hipótese do “golpe” não ajuda a agregar forças amplas e deixa seus defensores num gueto com pouco oxigênio. Há resistências e obstáculos de todo tipo, o diálogo anda travado, faltam sensatez e serenidade. Mas é preciso tentar, sem vetos e com o concurso de todos. Porque, se der certo, todos ganharão.
(*) Marco Aurélio nogueira é professor titular de Teoria Política e coordenador do núcleo de Estudos e Análises Internacionais (Neai) da Unesp
Fonte: O Estado de São Paulo (26/03/16)

sábado, 26 de março de 2016

O ocaso de um mito chamado Lula (Ruy Fabiano)

Neste momento em que a Operação Lava Jato desconstrói a imagem de Lula, depurando-a de todos os artifícios, instala-se uma espécie de assombro geral nos meios intelectuais e artísticos do país, onde ainda reina forte resistência aos fatos.
Tal depuração baseia-se em alentados registros – e o mais eloquente vem da própria voz de Lula, captada nos recentes grampos telefônicos, autorizados pela Justiça, em que exibe solene desprezo pelas instituições, em especial o Judiciário.
Não se deve apenas aos truques do marketing político-eleitoral a construção da imagem do falso herói. Bem antes do advento dos Duda Mendonça e João Santana, hoje às voltas com a Justiça, Lula já desfrutava de altíssimo conceito redentor, esculpido no âmbito universitário, onde o projeto do PT foi engendrado.
E aqui cabe repetir o bordão lulista: nunca antes neste país, um presidente da República foi brindado com tantos títulos honoris causa por parte de universidades, mesmo sem ter dado – ou talvez por isso mesmo - qualquer contribuição à atividade intelectual.
Ao contrário: Lula e seus artífices difundiram o culto à ignorância e ao improviso, submetendo a atividade intelectual à condição subalterna de mera assessora de um projeto populista.
A epopeia de alguém que veio de baixo e galgou o mais alto cargo da República fascinou e comoveu a intelligentsia brasileira, que o transfigurou em gênio da raça. Pouco interessava o como e o quê fez no poder – questões que agora se colocam de maneira implacável -, mas o simples fato de que a ele chegou.
O símbolo falsificava o ser humano por trás dele. E o país embarcou numa ilusão de que agora, dolorosamente – e ainda com espantosas resistências, – começa a desembarcar.
Fernando Henrique Cardoso, símbolo da nata acadêmica nacional, deixou suas digitais nesse processo. A eleição de Lula, em 2002, contou com sua colaboração. Como se recorda, FHC desengajou-se da campanha presidencial de José Serra, dizendo a quem quisesse ouvi-lo: “Agora, é a vez de Lula”.
Conta-se que, naquela ocasião, ao recebê-lo em Palácio, chegou a oferecer-lhe antecipadamente a cadeira presidencial. Era o sociólogo sucedido pelo operário, ofício que Lula já não exercia há mais de duas décadas. As cenas da transmissão da faixa presidencial, encontráveis no Youtube, mostram um Fernando Henrique ainda mais deslumbrado que seu sucessor.
Lula, na ocasião, disse-lhe: “Fernando, aqui você terá sempre um amigo”. No dia seguinte, cessou o entusiasmo: o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, em sua primeira entrevista, mencionava a “herança maldita” do governo anterior, frase repetida como mantra até os dias de hoje.
E o “amigo” não mais pouparia seu antecessor, por quem cultiva freudiana hostilidade. A erudição, ao que parece, o incomoda, embora a vida lhe tenha proporcionado meios bem mais abundantes de obtê-la que a outros grandes personagens da cultura brasileira, de origem tão modesta quanto a sua, como Machado de Assis, Gonçalves Dias e Cruz e Souza, mestiços que, em plena escravidão, ascenderam ao topo da vida intelectual do país.
O mito Lula começou ainda na década dos 70, em pleno governo militar – e contou com a cumplicidade do próprio regime, que, por ironia, o viu como peça útil na desconstrução da esquerda, abrigada no velho MDB e em vias de defenestrar eleitoralmente o partido governista, a Arena. O regime extinguiu casuisticamente o bipartidarismo, de modo a esvaziar a frente oposicionista.
A frente, em que a esquerda tinha protagonismo, entendia que não era oportuno o surgimento de um partido de base sindical, que a esvaziaria, diluindo os votos contrários ao regime. Lula foi peça-chave nesse processo, concebido pelo general Golbery do Couto e Silva, estrategista político do governo militar.
Há detalhes reveladores em pelo menos dois livros recentes: “O que sei de Lula”, de José Nêumanne Pinto, que cobriu as greves do ABC pelo Jornal do Brasil naquele período, e com ele conviveu; e “Assassinato de Reputações”, de Romeu Tuma Jr., cujo pai, o falecido delegado Romeu Tuma, então chefe do Dops, foi carcereiro de Lula, no curto período em que esteve preso.
Tuma e Nêumanne convergem num ponto: Lula foi informante do Dops, o que lhe facilitou a construção do PT, a cujo projeto se agregariam duas vertentes fundamentais - a esquerda universitária paulista e o clero católico da Teologia da Libertação.
Essa gênese explica a trajetória vitoriosa do partido: o clero proporcionou-lhe a capilaridade das comunidades eclesiais de base e os acadêmicos prestígio e acesso à grande mídia.
A ambos, o PT retribuiu com Lula, o símbolo proletário de que careciam para forjar o primeiro líder de massas que a esquerda brasileira produziu e que a levaria, enfim, a vencer eleições presidenciais. Deu certo – e deu errado.
Lula chegou lá, mas corre o risco de concluir sua trajetória na cadeia. Os acertos de seu primeiro governo derivam da rara conjunção de uma bonança econômica internacional com os ajustes decorrentes do Plano Real. Finda a bonança e desfeitos os ajustes, restou a evidência de que não havia (nunca houve) um projeto de governo – e tão somente um projeto de poder.
A Lava Jato, ao tempo em que reduz Lula a seu exato tamanho, político e moral – e, ao que se sabe, há ainda muito a vir à tona -, mostra o que fez, à frente do PT e do país, para que esse projeto se consolidasse e o eternizasse como pai dos pobres – uma caricatura de Vargas, com mais dinheiro e menos ideias.
De gênio político, beneficiário de uma conjuntura que desperdiçou, lega à posteridade sua grande obra: Dilma Roussef, personagem patética que tirou do anonimato para compor um dos momentos mais trágicos da história da República.
O historiador do futuro terá o desafio de decifrar o que levou a inteligência do país – cujo dever de ofício é antever e evitar tais desvios - a embarcar num projeto suicida, a serviço da estupidez, não hesitando em satanizar os que a ele se opõem. 
Fonte: Blog do Noblat (26/03/16)

sexta-feira, 25 de março de 2016

A verdade do Lula falso (Demétrio Magnoli)

Há dois Lulas — um é verdadeiro, o outro é falso. Na Avenida Paulista, perante 95 mil manifestantes, um dos Lulas pronunciou uma sentença de estadista, que deveria ser emoldurada e afixada nos espaços públicos de todo o país. Não vou para o ministério, disse, “achando que os que não gostam de nós são menos brasileiros que nós”. Ao reconhecer a legitimidade dos seus adversários, que clamam pela interrupção do mandato de Dilma Rousseff, Lula estava negando que o impeachment é um golpe. Mais ainda: na base de sua afirmação, está o reconhecimento de que o Brasil não pode ser identificado com um partido político. Contudo, lastimavelmente, aquele não é o Lula verdadeiro.
O Lula da Paulista, que traduziu admiravelmente, em linguagem corrente, a defesa do princípio da pluralidade, é o falso. Na avenida, discursava um personagem acuado pela divulgação de seus diálogos telefônicos comprometedores, que pretendia restabelecer uma ponte com o Supremo Tribunal Federal (STF). O Lula verdadeiro emerge nas interceptações obtidas legalmente, a pedido do Ministério Público e com ordem judicial. Esse Lula sem censura, despido de fantasia pública conveniente, que utiliza a linguagem de um leão de chácara, revela- se como o chefe de uma facção consagrada à intimidação do Poder Judiciário e do Ministério Público.
“Eu acho que eles têm que ter em conta o seguinte, bicho, eles têm que ter medo”. A frase, referente a juízes e procuradores, proferida num diálogo interceptado com o deputado petista Wadih Damous, sintetiza o Lula verdadeiro. Ela se soma ao planejamento de uma ação contra o procurador Douglas Kirchner, que investiga a aparente triangulação entre Lula, a Odebrecht e o BNDES. Falando com o ex- ministro Paulo Vannucchi, o chefão anuncia uma operação na qual deputadas do PT bombardeariam o procurador com acusações de machismo e violência contra mulheres: “Nós vamos pegar esse de Rondônia agora e vamos botar a Fátima Bezerra e a Maria do Rosário em cima dele”. O sistema de justiça “tem que ter medo” — eis o programa delineado longe dos holofotes pela figura que Dilma tenta empossar como presidente de facto.
O Lula de verdade forjou um PT arrogante, autoritário, que restaura práticas abomináveis dos antigos partidos comunistas e de movimentos de inspiração fascista. Nos atos “contra o golpe”, militantes empunhavam cartazes nos quais o rosto do juiz Sérgio Moro fundia- se à imagem de Hitler. É esse PT, das ofensivas de difamação e das campanhas orquestradas de intimidação que experimenta uma avassaladora rejeição popular.
O governo de Dilma e Lula não cairá devido às pedaladas fiscais, mas como consequência de uma ruptura mais profunda. Depois de brigar com a opinião pública, o partido de Lula brigou com a imensa maioria do eleitorado e, na curva do desespero, com o alto funcionalismo responsável pelos órgãos de controle do Estado. Os juízes federais fizeram manifestações de desagravo a Moro. A associação de delegados da Polícia Federal alertou que não se submeterá ao cabresto prometido pelo novo ministro da Justiça. A OAB nacional tomou posição favorável ao impeachment, seguindo a mesma trilha de entidades representativas da indústria, do comércio e de categorias profissionais.
Entretanto, a verdade não perde seu valor intrínseco quando é veiculada por um farsante. O princípio da pluralidade, enunciado pelo Lula falso da Paulista, tem plena validade, tanto na ordem em que foi exposto quanto na ordem inversa. Os que “não gostam” do impeachment são “tão brasileiros” quanto os que o defendem. Os militantes petistas e sua base de apoio pertencem à sociedade nacional, isto é, não são estrangeiros ideológicos, “impatriotas” ou “traidores”. Não fazem parte de uma “organização criminosa”, a ser debelada a golpes judiciais ou policiais.
Certamente, como atestam as provas colhidas pela Lava- Jato, coagulou- se na cúpula do lulopetismo uma organização criminosa com extensas ramificações políticas e empresariais. Contudo, a organização criminosa não deve ser identificada ao próprio PT, como propõe uma narrativa emanada de correntes de opinião que semeiam o extremismo no solo fértil da indignação popular contra a corrupção. O PT é um partido que nasceu na transição da redemocratização, propiciando a confluência entre o sindicalismo do ABC e inúmeras correntes de esquerda. Na sua evolução até o poder, ele passou a refletir a persistência de projetos políticos enraizadas na trajetória do Brasil moderno: o capitalismo de Estado, o populismo, o corporativismo. Isso não é um “caso de polícia”, mas um caso de política.
Os “atos contra o golpe”, um cortejo fúnebre do ciclo de poder lulopetista, evidenciaram a cisão entre o PT e a maioria do país. Mas, na sua relativa imponência numérica, enviaram uma mensagem que deve ser escutada. Havia, ali, muito mais que sindicalistas, militantes de “movimentos sociais”, funcionários em cargos comissionados e pobres coitados seduzidos por trinta dinheiros. No outono de sua influência política, o PT mobilizou quase 300 mil manifestantes, cerca de um décimo dos que protestaram pelo impeachment, realizando os maiores atos públicos de sua história. O Lula falso, que se dirigiu à multidão na Paulista, não está só. Atrás dele, há uma corrente legítima de opinião.
Não se deve confundir uma vírgula com um ponto final. A Odebrecht, sem alternativas, resolveu confessar. A nossa Operação Mãos Limpas chega a seu ápice e, se não for detida, exporá também as organizações criminosas periféricas, que operam em quase todo o espectro partidário. O Lula de verdade, que trama nas sombras contra o sistema de justiça, será levado nessa avalanche necessária. Depois de tudo, emergirá um Brasil um pouco melhor, no qual a política terá um lugar fora das páginas policiais. Por isso, é essencial preservar a verdade pluralista enunciada pelo Lula falso.
Fonte: ( O Globo 24/03/16)

Nova frente (José Casado)

As investigações em Curitiba avançam em uma nova frente, a do sindicalismo. Desde o início deste ano, duas dúzias de dirigentes sindicais dos setores químico, petroleiro e bancário passaram ao centro de inquéritos sobre corrupção na Petrobras e outras estatais.
Trata- se do lado até agora pouco visível da metamorfose de parte dos movimentos sindicais e sociais mais atuantes desde os anos 60 em grupamentos de agitação e propaganda alinhados ao Partido dos Trabalhadores.
Essa transformação foi possível graças à concepção corporativa da política disseminada na era Lula, num flerte com a alternativa da democracia direta. Parecia paradoxal, porque a premissa dessa forma de organização tende a resultar em governantes autômatos. Lula, no entanto, manipulou- a com astúcia. Metabolizou entidades e movimentos organizados. Viraram instrumentos.
A cooptação não se restringiu à vertente sindical trabalhista. Alcançou a Fiesp. O empresário Paulo Skaf, que encobriu com o manto do impeachment a exótica sede piramidal da Avenida Paulista, elegeu- se presidente da Fiesp em 2004 com auxílio de Lula, José Alencar e José Dirceu, em manobra conduzida por Aloizio Mercadante.
Fiel, continuou a burocracia sindical trabalhista, imobilizada em atividades remuneradas pelos cofres públicos. Ela mudou o foco do ativismo, concentrando- se na luta permanente pela impugnação das iniciativas de adversários do partido e do governo. Hoje, sobram portabandeiras em defesa de Lula, Dilma e também das empresas processadas por corrupção na Petrobras e em outras estatais. Só não se percebem evidências de preocupação com a origem, os métodos e as perdas resultantes dessa combinação de interesses cleptocratas.
Os efeitos se espraiam, por exemplo, nas estranhas transações decisivas para os déficits da Petrobras ( R$ 34,5 bilhões em 2015) e dos fundos de pensão das estatais ( Previ, Funcef, Petros e Postalis devem somar R$ 70 bilhões).
A conta vai subir. Na Petrobras, revelou a repórter Cláudia Schuffner, o Conselho de Administração pediu investigações sobre um elenco de decisões de sindicalistas responsáveis pela área de Recursos Humanos, com potencial de novas e bilionárias perdas para a companhia.
Em oito anos, esses burocratas sindicais aumentaram em 2.300% o passivo trabalhista da estatal. Passou de R$ 500 milhões para R$ 12,3 bilhões entre 2006 e 2014. É o dobro das perdas com corrupção registradas pela empresa.
Os delitos estão sendo mapeados. Calculase que o custo de algumas cláusulas dos acordos feitos com entidades como a federação dos petroleiros contribua para ampliar em R$ 40 bilhões, no médio prazo, o estoque de dívidas trabalhistas da empresa.
No papel de gestores, os burocratas sindicais inflaram os próprios ganhos ( média de R$ 40 mil mensais). Entre outras coisas, permitiramse adicionais equivalentes aos de periculosidade e de expediente noturno pagos aos “peões” das refinarias e das plataformas marítimas. Alguns lucraram em dobro: estenderam à faina noturna, em gabinetes confortáveis e refrigerados da sede na Avenida Chile, a intermediação (remunerada) de interesses de fornecedores privados em negócios com a companhia estatal.
Fonte: O Globo (22/03/16)

segunda-feira, 21 de março de 2016

Certas palavras valem mais que mil imagens (Fernando Gabeira)

Eram cinco horas da tarde, eu cobria uma demonstração na porta do Palácio do Planalto. As pessoas estavam com muita raiva de Dilma e de Lula. Sentiam-se ignoradas depois de terem ido para as ruas no domingo. Queriam a queda de Dilma e a prisão de Lula. Dilma não só não deu sinais de renúncia, como convidou Lula para ocupar um ministério e fugir da Lava-Jato. na hora de trabalho e saí em busca de água e um banheiro no Congresso. Ali, soube da divulgação dos áudios. Em termos cinematográficos, o áudio contém metade das informações de um filme. Nesse caso, os áudios eram toda a informação necessária para inflamar as ruas. As multidões já estavam iradas e o diálogo Dilma-Lula serviu para catalisar um processo que já estava em andamento. Os romances do passado escreviam assim: a marquesa saiu às seis horas. Agora era possível reescrevê-los: Dilma foi para o espaço às seis horas, no rabo de um foguete barbudo.
Só mais tarde, exausto, examinei o conjunto de gravações. Senti que Lula estava acuado, tentando dominar um processo que escapava ao seu alcance. Os interlocutores, inclusive Jaques Wagner e, principalmente, Nélson Barbosa, respondiam com frases curtas, como se estivessem incomodados, loucos para desligar. Ele sabia que era uma luta difícil. Mas lamentava o medo dos outros: o Congresso e o Supremo estavam acovardados. Sua intenção era deter a Lava-Jato e criar uma frente de investigados. Se não fizessem nada, seriam todos presos.
Renan estava fodido, Cunha, idem. Lula parecia assumir sua verdadeira condição de chefe da imensa quadrilha, para salvá-la dos procuradores que, segundo ele, se achavam representantes divinos. Conversas gravadas sempre trazem embaraços. Na intimidade, somos menos cuidadosos. A série de gravações mostrou não só que Lula queria interferir no processo legal. Mostrou algo que não se suspeitava: a falta de carinho e solidariedade com as pessoas que o ajudaram por décadas.
É o caso de Clara Ant. Ela chegou a ser deputada, mas depois disso dedicou-se, inteiramente, a ajudar Lula. Ao que parece, foi um projeto de vida. Participei de um debate com ela, sobre o conflito no Oriente Médio, diante de uma plateia formada por membros da colônia judaica. Ela defendeu, como pôde, a política externa do governo brasileiro. Pareceu-me uma pessoa tranquila e bastante confortável diante de ideias divergentes. Não tenho procuração para defendê-la e, quem sabe, pense a meu respeito todas as barbaridades que a imprensa petista divulga. No entanto, afirmo que não é assim que se trata uma colaboradora de tantos anos, nem é assim que se trata qualquer mulher que tem sua casa invadida por cinco policiais. Lula disse que ela deve ter achado um presente de Deus tantos homens entrando pela porta. Dilma riu. Dilma, a presidenta, a mulher símbolo de uma conquista feminina, ri de piadas machistas desde que contadas pelo seu chefe.
O ângulo político das gravações, nesta altura, já deve ter sido exaurido, e a tentativa de fugir da Lava-Jato já se revelou o desastre que todas as pessoas sensatas previam. O ministro Aragão, que tinha como tarefa desmontar a Lava-Jato, foi tratado como alguém que é amigo, mas, no momento de fazer as coisas, sempre dizia “Olha’’. Lembrou-me de Sancho Pança, que dizia constantemente: “Olha, mestre, olha bem o que está dizendo’’.
Lula não pode ser comparado a um Dom Quixote, pois seria uma agressão a esse maravilhoso símbolo da cultura ocidental. Ele, simplesmente, estava desesperado. A máquina do governo petista não respondia com eficácia sua ânsia de proteção. Os políticos corruptos marchavam para o matadouro, inertes, à espera da salvação mágica. Ele viria para reagrupá-los, derrotar a República de Curitiba e, certamente, encontrar um meio de financiar as relações obscenas alimentadas pelo mensalão e pelo assalto à Petrobras.
Sua meta conservadora é cristalina. E, ainda assim, algumas pessoas, militantes e intelectuais, continuam achando-o o caminho do futuro e classificando de reacionário quem se opõe a um projeto criminoso de poder. As hostes petistas receberiam ordens claras para achincalhar os adversários e intimidar os procuradores e policiais da Lava-Jato.
No princípio da semana, fui alvo de ataques desonestos dos sites pagos pelo governo. Talvez já fosse uma minúscula parte do plano. Não creio que quisessem me intimidar; estavam apenas exercitando os músculos. De todos as crises que vi no Brasil, esta tem uma singularidade: a tristeza de milhares de pessoas que acreditaram no poder transformador da esquerda no governo. Falei com alguns senadores que deixaram o PT. Estavam desolados, depois de tantos anos de trabalho. Pelo menos compreenderam a realidade e podem tentar outro caminho. Os oportunistas e carreiristas continuaram agarrados aos seus empregos.
O drama mesmo é dos que não suportam as dores da realidade e insistem na negação. Seguem o seu líder sem o bom senso de Sancho Pança. Não ousam dizer: “Mestre, olhe bem o que está dizendo’’.
No Brasil, pobre quando rouba vai preso, rico quando rouba ganha um ministério. Luiz Inácio da Silva, em 1988.
Fonte: O Globo (20/03/16)