Uma dimensão crucial da atual crise brasileira é a fragmentação inaudita do poder político. Vivemos uma dispersão dos recursos de poder que não encontra par sequer nos melancólicos anos do ocaso do governo Sarney. A parcial semelhança com aquele período, aliás, é o que levou alguns analistas a utilizar o termo "sarneyzação" para se referir à atual quadra histórica. Infelizmente, contudo, sob alguns aspectos a situação hoje é bem mais complicada do que aquela.
Não vivemos a hiperinflação que marcou aquele período. Todavia, experimentamos uma recessão de magníficas proporções, colocando-nos atrás apenas da esfacelada Venezuela e à frente da falida Grécia, como mostrou o Valor na terça-feira. Comparar a presidente Dilma a José Sarney, todavia, é impreciso. Menos pelas trajetórias descritas em campos politicamente antagônicos por um e outro até chegarem à presidência, mais pelo fato de que enquanto um sempre foi uma raposa política, a outra nunca foi além da condição de uma militante de perfil burocrático. Noutras palavras - e sem considerações de ordem moral -, Sarney dispunha de muito mais repertório para lidar com a crise do que a atual mandatária.
O cerne do problema reside no fato de que partidos e sistema partidário encontram-se em desintegração. Os primeiros - considerados como unidades organizacionais -, pela erosão de sua legitimidade e de sua coesão interna; o segundo, pela explosão da fragmentação, que produz o pulverizado cardápio de siglas atual. Tal fragmentação resulta, de uma parte, da mencionada erosão interna dos partidos principais, cujas defecções facilitaram o surgimento de filhotes bastardos; doutra parte, decorre dos incentivos proporcionados pelo próprio sistema político, os quais estimulam empreendedores partidários a buscarem desenfreadamente seu próprio nicho, mesmo que diminuto.
O problema é que, pelas características da demanda eleitoral e da organização interna de governos e legislaturas, sistemas partidários funcionam melhor em contextos relativamente oligopolizados - em que um número não muito elevado de agremiações controla majoritariamente a oferta das alternativas de voto e aliança. A atual pulverização tem como feito imediato a desorganização do sistema político, produzindo uma tragédia dos comuns entre entes coletivos.
A desintegração dos principais partidos contribuiu decisivamente para esse cenário. No PT vê-se a implosão de um projeto político de grande envergadura. Isso advém menos das dificuldades crescentes para manter o tão decantado "projeto de poder" (ora, qual partido na face da terra não tem um!?) e mais do fato de que a perda da dimensão ética, com a ultrapassagem de todos os limiares do aceitável pelo extremo pragmatismo, produziu uma crise organizacional interna e de legitimidade externa - como mostram as pesquisas em que a preferência pelo PT despencou.
O efeito eleitoral disto perceber-se-á nas eleições municipais deste ano. Ele será potencializado pela debacle econômica, resultado da desastrosa "Nova Matriz". As decisões sempre tardias de Dilma, governante sem a noção do timing da política (afinal, é militante, não política) contribuíram para agravar o quadro, pois as correções de rumo (nos mais diversos âmbitos) sempre ocorrem depois que o carro já saiu da pista e caiu no barranco.
No campo oposto, o PSDB não se encontra em cenário muito melhor. Conflagrado entre seus principais caciques, vê seus nomes diuturnamente cotados para mudar de agremiação unicamente para fazerem valer seus personalíssimos "projetos de poder" (quem diria? tucanos também têm isso!); daí as intermináveis especulações sobre Serra no PMDB, Alckmin no PSB, Alvaro Dias no PV e assim por diante.
O PSDB, mais ainda que o PT, perdeu seu projeto original. Nascido com a alcunha de "socialdemocrata", sempre foi, na verdade, um partido liberal-democrata - enquanto ainda dispunha de um projeto nacional e era liderado por "históricos" do velho MDB. Empurrado para a direita pela guinada centrista do PT, tem hoje uma cara bem pouco liberal-democrata. Isso é evidenciado pelas truculentas PMs de Alckmin e Richa, não só na repressão a manifestantes (como nesta semana, em 2015, 2013...), mas também no tratamento dispensado às populações das periferias, vítimas diárias da brutalidade policial - fardada, à paisana ou mascarada.
Já o PMDB, que tinha na condição de partido invertebrado o fator de sua força, sucumbe à própria voracidade fisiológica - com inúmeras lideranças acossadas por investigações. A convivência acomodatícia de alas internas e a condição de federação de caciques regionais não têm sido anteparos suficientes para evitar o choque entre adversários internos. Num partido que historicamente sempre foi uma geleia organizacional e programática, já soava infactível o projeto econômico liberal apresentado por Temer como uma "ponte para o futuro"; com a atual conflagração interna, num partido congenitamente sedento de benesses estatais, revela-se impossível.
Novas agremiações surgem para se aproveitar do espólio das demais, seja no campo fisiológico, seja no programático. O problema é que são pequenas e divididas demais para conferir ao sistema político um mínimo de integração. A implosão do sistema partidário (alicerce do presidencialismo de coalizão) decorreu de uma conjunção de seus próprios excessos e do aumento da eficácia das instituições de controle. O desnudar do combustível fisiológico do presidencialismo de coalizão - a corrupção institucionalizada - somado aos efeitos judiciais do processo e à proverbial inabilidade política da presidente, produziram uma crise insuperável nos marcos atuais.
As dificuldades para o país nos próximos anos parecem provir em boa medida da imensa dispersão das estruturas organizacionais do poder político. Isso torna difícil não apenas definir alguns rumos (mínimos que sejam) da política nacional, como também organizar o exercício coletivo do poder. Como a dispersão dificulta a superação da crise, que a realimenta, a travessia será longa.
(*) Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
Fonte: Valor Econômico (14/01/16)
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