Muito difícil, para indivíduos e organizações de qualquer natureza, o exercício da autocrítica. Por implicar avaliação rigorosa dos próprios atos, sem cancelar os aspectos problemáticos e até negativos, costuma dar a ideia de fraqueza: é como se, no caso dos organismos políticos, se abrisse o flanco ao inimigo, mostrando os pontos frágeis que tornariam possível um contra-ataque arrasador. Coisa de ingênuos, diriam os que abraçam uma concepção cínica (“maquiavélica”) da política.
O acúmulo de erros que marcaram o petismo no poder, especialmente visíveis quando passou a bonança propiciada pela emergência do gigante chinês, suscitou, de vários comentaristas, a observação de que tem faltado ao partido dominante, para remate de males, esse tipo de avaliação de si mesmo. Evidenciou-se algo que Leandro Konder, um intelectual comunista que deixou marcas, chamou a seu tempo de “atrofia conservadora da autocrítica” (O Marxismo na Batalha das Ideias, Nova Fronteira, 1983).
Konder sabia do que falava. Para se preservarem, mesmo partidos ditos progressistas se especializaram em autocríticas rotineiras, impondo-as mecanicamente aos militantes. Comum, por exemplo, a admissão formal de culpas, como quando se confessavam sucessivos e inexplicáveis “desvios de direita” e “de esquerda”, que levavam ao afastamento da “linha justa”. Esse tipo de engano, aliás, é mais universal do que parece. Certo político conservador brasileiro, inquirido sobre erros cometidos, informou, impávido, ter tido sempre o defeito de estar à frente do seu tempo, o que lhe trazia dificuldades de comunicação com os contemporâneos...
A presidente Dilma Rousseff não parece longe desses modelos, ou antimodelos, ao se dizer vítima, em primeiro lugar, de circunstâncias externas desfavoráveis, o que em parte é verdadeiro, e em segundo, da má vontade das oposições, inconformadas com as urnas e dispostas a explorar oportunisticamente a conjuntura difícil. O ministro Jaques Wagner, na estratégica e aparentemente amaldiçoada chefia da Casa Civil, vai pelo mesmo caminho, criticando o “impeachment tapetão”, metáfora futebolística para aludir ao que seria a banalização deste remédio legal por parte das oposições depois de perdido o jogo dentro das quatro linhas.
Sem considerar a viabilidade ou a oportunidade deste lance oposicionista, é mais do que pertinente pedir contas ao PT da quase dúzia e meia de pedidos de impeachment apresentados nos governos Fernando Henrique Cardoso. Em sua grande maioria, tais pedidos não foram assinados por “qualquer do povo”, mas por dirigentes, deputados e juristas reconhecidamente ligados ao PT. Teriam sido, na época, recursos também extralegais ou “antiesportivos”? Pela sua reiteração contumaz, seriam índices de um DNA golpista do então grupo político de oposição?
A crítica, mesmo dura, ao impeachment de agora ganharia mais substância se acompanhada do reconhecimento, pelo PT, do caráter desajuizado da sua oposição em passado nem tão remoto. Ou devemo-nos acostumar a um duplo padrão de comportamento?
O ministro Wagner foi só um dos últimos dirigentes a declarar que o erro maior do seu partido residiu em não ter feito milagrosa e regeneradora “reforma política” já no primeiro mandato do presidente Lula. Tal como o político conservador lembrado por Konder, aqui o exercício hipócrita da autocrítica desliza quase automaticamente para o autoelogio. O petismo, neófito nas práticas patrimonialistas “tradicionais”, ter-se-ia deixado enredar por métodos viciados do passado. Por excesso de virtude, o partido viu-se desarmado diante do que inesperadamente viu à sua frente, uma vez chegado ao poder.
Nenhuma palavra sobre a degeneração político-partidária novíssima, protagonizada – ai da democracia, ai de cada um de nós, cidadãos! – pelo partido dominante a partir de 2003. Degeneração elevada a método de poder, em circunstâncias que uma operação destinada a fazer história, como sua congênere italiana, a Mãos Limpas, desvenda cotidianamente, para espanto geral. Um partido e um governo que, segundo testemunhos insuspeitos, como o do ex-ministro das Comunicações e decano da Câmara dos Deputados Miro Teixeira, decidiram desde o início, em suas instâncias máximas, encaminhar as relações com o “Congresso burguês” em termos “orçamentários”, não em termos de debate e negociação com os demais partidos, inclusive os da oposição mais responsável – que havia.
Partido dominante, dissemos, não propriamente dirigente. Só quem verdadeiramente dirige é capaz de levar a cabo reais reformas políticas, com o fito de reforçar a democracia dos partidos e o regime representativo. Palavras voam e escritos (e ações) permanecem: o partido cujo horizonte é a mera dominação logo se obstinaria, como se obstinou e provavelmente continuará a fazê-lo, em esvaziar um dos protagonistas do centro democrático, o PMDB, estimulando suas facções, cooptando-o subordinadamente ao sistema de poder em construção ou mesmo favorecendo franquias, como o PSD, para desarticular o jogo partidário.
A democracia brasileira necessita vitalmente de uma forte participação da esquerda política, quer como força de governo, quer como fermento das lutas sociais e motor da inovação. Pode perfeitamente acontecer que uma das suas figuras históricas – o PT de Lula – esteja rigorosamente aquém desse papel vital. Não à toa, na conjuntura de 2005 houve vozes, na verdade, inconcludentes, que falaram em “refundação” partidária. Mais recentemente circulou a tímida exigência de um “exame de consciência”. É pouco: para oxigenar e, quem sabe, renovar ares excessivamente pesados, melhor desbloquear o mecanismo impiedoso da autocrítica, resguardado, naturalmente, o exercício da crítica por parte dos demais atores, o que vem a ser a alma da esfera pública em regime de liberdades.
(*) Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta, um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Fonte: O Estado de São Paulo (17/01/16)
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