O teatro está repleto de momentos em que uma personagem (ou o coro) se dirige diretamente à plateia. Para explicar o que está acontecendo, para contar algo que a audiência não viu, para externalizar sentimentos inacessíveis a quem assiste à peça. A dificuldade de manejar esses momentos está em conseguir o efeito desejado sem quebrar aquela parede imaginária e transparente por meio da qual se assiste à encenação. É essa "quarta parede" que sustenta a vontade de quem vê ou lê de suspender sua descrença, de aceitar a proposta de se identificar com quem narra.
No século 20, Bertolt Brecht mostrou que a quarta parede estava nua. Sua proposta de quebrar a identificação com quem tem a palavra - lugar por excelência do poder - acabou por se espalhar por todo lado. Os mecanismos ilusionistas tradicionais fecharam para balanço. Mas voltaram sob novas formas. Em uma série de TV como House of Cards, por exemplo, a ilusão é identificar a ficção como se fosse a política como ela é. Não por acaso, seu guia é um ator brechtiano que transformou o efeito distanciamento em exercício de cinismo. Somente a ficção poderia dizer diretamente a verdade. Apenas a ilusão seria capaz de dizer de cara limpa (mas maquiada e virada para a câmera) a sujeira que é o dia-a-dia da política. House of Cards propõe um novo pacto, algo como uma "confirmação da descrença". Política, desta feita.
É a quarta parede da política que está em jogo nos "Diários da Presidência 1995-1996", de Fernando Henrique Cardoso, publicado há pouco pela Companhia das Letras. FHC diz que foi instado a manter esse diário pela neta de Getulio Vargas, que também manteve um nas cadernetinhas que não abandonava. Getulio escreveu para depois de sua morte. FHC não escreve, grava. E decidiu que seus registros deveriam ser publicados em vida.
Para além da fofoca e do anedotário, o que interessa é a opção de FHC pela forma diário. Ao contrário de um relato de conjunto, de uma narrativa encadeada que pudesse organizar e dar sentido a todo o material gravado, a opção por conservar a forma original como que pereniza o tempo presente, o momento de cada gravação. Com a forma diário, FHC se coloca como que para além das intransparências cotidianas da política. É assim que reconstrói à sua maneira a quarta parede da representação política.
Porque esses diários ganharam um significado inteiramente diverso a partir do momento em que a comunicação cotidiana adquiriu a forma do post. Os diários de FHC surgem sob nova luz, como uma série de posts que vêm do passado. Um passado próximo, mas que parece longínquo exatamente porque acontecido pouco antes de as redes sociais existirem como são conhecidas hoje. Com seus posts, FHC se põe no lugar do sábio desinteressado, que nada mais ambiciona - e que, portanto, está apto a dizer apenas a verdade. Ao escolher essa posição como narrador não faz senão se reposicionar na disputa política do presente.
A ideia de disponibilizar os arquivos sonoros para que se possa conferir a exatidão da transcrição representa a última demão de tinta na nova quarta parede do projeto. É claro que o então presidente já "falava editado" para o gravador, da mesma maneira como um post é já uma edição. Quem tem experiência de décadas de escrita cotidiana e de muita entrevista sabe bem como fazer isso. O que não se disse é se, como acontece com posts, houve registros que foram apagados. Seria interessante saber.
O reposicionamento político de FHC a partir de seus diários olha para frente, olha já para a "nova política". Tem um sentido militante que vai muito além do mero registro histórico. Esses diários são como que uma resposta da geração nascida por volta de 1930 a Junho de 2013. E isso em pelo menos dois sentidos, talvez incompatíveis. O primeiro recado diz que as instituições democráticas representativas são raras e preciosas e pretende convencer de que sua manutenção depende também (ainda que não somente) da política politiqueira, dos acordos de gabinete e das intrigas palacianas. O segundo recado traz o reconhecimento de que não dá mais para fazer política sem mudar o registro tradicional da representação, na forma caduca da quarta parede.
Esse parece ser o sentido de publicar em vida o que outros políticos escreveram para a posteridade. É claro que vinte anos de distância faz com que muitas personagens da política já estejam mortas. Ou sob a ameaça de exclusão do jogo pela Lava-Jato. Mas o interessante é ver nesses diários a tentativa de diagnóstico de toda uma geração que se viu confrontada com a mudança radical da Queda do Muro quando andava pelos 60 anos de idade. Só agora começa a se mostrar algo da estrutura dessa mudança. Os quase vinte anos que vão de 1989 até a crise econômica mundial que eclodiu em 2008 surgem como um período de transição. A política como representação tal como praticada até ali por essas figuras paraestatais em que se transformaram os partidos políticos está agora fincada em areia movediça.
O livro de FHC e sua forma revelam a grande apreensão de que a perda em definitivo da forma caduca da quarta parede da política possa significar a perda da noção mesma de representação e, com ela, a perda da própria democracia. É como se a perda por inteiro do teatro da política ameaçasse a existência da ideia de instituição política democrática. A forma diário parece ser uma maneira de tentar mediar entre dois mundos.
A questão que fica é a de saber em que medida e de que maneira são mundos conciliáveis, quais as possíveis passagens e pontes entre eles. Mesmo que a política tradicional da representação continue a existir ainda por muito tempo como aparência carcomida de um mundo que já passou, a velha forma da quarta parede da representação política se foi. A ponte para o futuro proposta pelo sistema político atual pretende ser construída mediante mero rearranjo dos materiais disponíveis. Do ponto de vista das revoltas que eclodiram mundo afora a partir de 2011, de Junho de 2013 e da Lava-Jato no Brasil, trata-se já de material de demolição.
(*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
Fonte: Valor Econômico (11/01/16)
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