O embaralhamento do quadro eleitoral de 2014, com a alteração do elenco dos que disputam a Presidência da República, vai muito além do que pode sugerir o cálculo de probabilidades políticas com base na fugaz opinião eleitoral das consultas. É compreensível, com a mudança do cenário, que se recalcule a chance de Dilma Rousseff ante o fato de ser também Marina Silva geneticamente petista e ter tido quase 20 milhões de votos na eleição em que disputou o governo já por outro partido. Marina é residualmente Lula. Ou que se recalcule o destino de Aécio Neves, que, com a mudança, se desloca para uma posição que lhe muda o perfil e não é mais a confortável posição de centro. Independente da opinião dos eleitores, na hora de votar, tudo é relativo, mesmo em política.
A grande questão é saber como estão se movendo os constituintes desses candidatos e dos partidos que por meio deles falam e como se moverá no poder aquele que dentre eles for o escolhido. O passado, e certamente o passado próximo, nunca deixou de influir em nosso processo eleitoral. Não para eventualmente continuar, mas também para romper e tentar mudar. Marina Silva personifica, a seu modo, o que resta da eleição de Lula em 2002. Sua extração social é dessa grande massa de órfãos do poder que se tornaram cidadãos nas entrelinhas de um processo histórico tumultuado. Não será estranho se o eleitor, por meio dela, cobrar os débitos de Lula.
Esse povo residual ganhou visibilidade no período do regime militar de 1964, enquanto personagem dos movimentos sociais e, em particular, dos movimentos populares. A redemocratização de 1986 permitiu-lhe emergir como novo e decisivo sujeito do processo político brasileiro. Foi ele que pesou em 2002 e ainda em 2010. O próprio fato de que duas mulheres disputem a eleição, com real possibilidade de uma delas vencer, já é eloquente expressão das mudanças pelas quais o País passou ao longo da história recente. A humanidade política desta eleição de 2014 é completamente diferente da humanidade política de 1889 ou mesmo de 2002. Os novos sujeitos do processo político metamorfosearam-se. Os que não foram capturados pelas tentações do poder e pelo conformismo cúmplice perderam a cara e as ilusões e ganharam a máscara na identidade difusa de um querer mais difuso ainda. As identidades corporativas estão sendo postas em xeque.
O maior alargamento do conceito de cidadão, nos anos recentes, não significou, necessariamente, ganhos republicanos. Provavelmente porque faltou agregar-lhe a educação política que de fato fizesse desse cidadão meramente conceitual o concreto cidadão que os antigos chamavam de cidadão prestante, isto é, devotado ao bem comum por meio da política.
A política brasileira não se alicerça em partidos ideológicos e doutrinários, mas em aglomerações de interesse político de relativamente curta duração. O que acentua o protagonismo de grupos sociais de identidades construídas sobre traços superficiais, de conjuntos humanos não decisivos, mas influentes, que pouco têm a ver com a política propriamente dita: os evangélicos, os sindicalistas, os sem-terra, os sem-teto, os ambientalistas, os excluídos e assim por diante. São identidades dos incapturados pelas arcaicas anomalias do processo político brasileiro, os inconformados. Esses grupos têm tido crescente influência na política.
Nesta eleição de 2014, deve-se acrescentar os jovens e os identificados com as manifestações de 2013, um grupo singular que capturou o imaginário dos brasileiros e que se expressa no protesto difuso.
Mas que parece ter um núcleo de consistência ao modificar, nestes últimos dias, os resultados das pesquisas eleitorais em favor da candidata recém-chegada. Já não são os pobres e excluídos de 2002 que vão protagonizar a eventual mudança, mas os jovens radicais da classe média ascendente. Em 1998, a esperança cultivada durante a ditadura finalmente triunfou. Em 2002 o ressentimento acumulado com a derrota de um projeto popular alternativo teve seu triunfo e no poder próprio sua derrota. É possível que 2014 seja o ano da frustração, dos desiludidos com as promessas não cumpridas na eleição de 2002 e com os óbvios recuos da eleição de 2010. Porém, é ele, o frustrado ativo, que vota porque recusa. Um radical do gesto, mas não da política ou da política apenas como teatro.
Nesse plano, os perigos são mais do que óbvios. Em primeiro lugar porque o eleitorado vai às urnas consciente de que programas de governo já não são programas para governar, mas programas para ter poder. Em segundo lugar porque nem os candidatos nem seus partidos têm um projeto de nação.
O que foi forte na formulação das esperanças que levaram ao fim da ditadura deixou de comparecer à política brasileira. A crua realidade das razões de Estado e a do imperativo das razões de mercado tiveram um efeito corrosivo sobre a utopia que finalmente nos aglutinara, a da esperança num mundo novo de justiça, fartura e alegria.
*José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP.
Fonte: O Estado de S. Paulo - Aliás
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