A pergunta que estes dias mais se ouviu foi se nossa derrota na Copa influirá nas eleições. Traduzindo: se Dilma será prejudicada pela performance da seleção. A maioria das respostas que li não é racional, só eleitoreira. Mas, para melhorar a discussão, devemos colocar a questão da mudança no poder sob a perspectiva de nossas primeiras três décadas de ininterrupta vida democrática.
Cada vez que o Brasil passou por uma mudança política significativa, estes trinta anos, foi uma epopeia. Em vários sentidos da palavra: um empreendimento enorme e difícil, comparável talvez à guerra de Troia ou à aventura portuguesa dos Descobrimentos; um momento de fortes emoções, dúvidas, questionamentos; uma discussão sobre os destinos nacionais e de cada um; o uso de recursos literários, como na Ilíada ou nos Lusíadas, consagrando uma coletividade. Desta vez, não. Desde junho de 2013, vivemos na incerteza. O que parecia garantido - a reeleição de Dilma - já não o é. Nenhum dos três candidatos entusiasma, ao contrário dos dois grandes líderes épicos que foram Fernando Collor e Lula (as virtudes de Fernando Henrique são outras, estão na moderação, na prosa).
Passamos por uma temporada épica, a mais forte de todas, no final da ditadura. Durante meses, manifestamos nas ruas nossa repulsa ao regime de força, à imoralidade que é privar o povo do direito de decidir. Em 1984, não passaram as Diretas-Já, mas elas produziram uma democracia de alta qualidade, que em poucas décadas se mostrou capaz - dentro da lei - de afastar um presidente acusado de corrupção, de vencer a inflação, de promover uma maciça inclusão social e de ampliar o alcance dos direitos humanos.
Em 1989, os três candidatos mais votados, Collor, Lula e Brizola, propunham mudanças radicais na política que vivíamos, e não por acaso o governo Collor começou e terminou na elevada linguagem da quase-tragédia, com vastas emoções e pensamentos imperfeitos. Já FHC foi eleito em 1994 no bojo da menos épica das epopeias, que foi o triunfo do real sobre a inflação, da moderação sobre a inflamação, da prosa sobre a exaltação; mas essa foi uma tarefa difícil, quase hercúlea. Na eleição de Lula, em 2002, tivemos a fala belíssima do menino pobre, que na propaganda televisiva terminava gritando "Viva o Brasil!", depois de expor uma agenda inteira de mudanças no país.
Nada comparável se vislumbra hoje. E no entanto pode ser que vivamos a quarta mudança de direção política do Brasil, em três décadas. Se um candidato de oposição ganhar, será, ao contrário de Collor em 1989 ou Lula em 2002, "sem emoção", para usar as palavras dos pilotos de buggy nas dunas perto de Natal, quando perguntam se você quer descê-las com ou sem emoção, berrando de medo ou em estado semi-zen. Ou pior, será com emoções negativas: não a grande paixão da esperança, mas a medíocre do ódio.
Esta parece ser mais uma eleição contra, do que a favor. Uns votam contra o PT, outros contra o PSDB ou o PSB. Não sabemos ainda quem vencerá, porque tudo pode mudar. O exemplo mesmo da influência da Copa na campanha é significativo. Mentes calmas mostraram que a eleição de 1994, que o candidato governista venceu, teria o mesmo resultado sem o tetra, porque o grande cabo eleitoral de FHC foi o Real, não a Taça; que em 2002, quando Lula venceu pela oposição, o penta não ajudou em nada o postulante pelo lado do governo; mais para trás, que em 1962 a conquista do bicampeonato tampouco salvou João Goulart, e que - único exemplo de manipulação bem sucedida - o tricampeonato de 1970 nada alterou no panorama eleitoral, porque estávamos no pior tempo da ditadura e eleições, bem, eleições...
Este ano, porém, vivemos por um fio: qualquer acidente pode afetar tudo. Ou seja, "não vai ter Copa" nas eleições; elas podem afetá-las assim como qualquer fagulha pode atear fogo numa plantação seca: o problema não é a fagulha, é a seca. Nosso problema não é se a Copa, um desastre natural ou um imprevisto humano causará mudanças políticas: nosso problema é que nossa paisagem não tem horizonte, pelo menos horizonte límpido.
O Brasil não enxerga hoje rumos claros, nem projeto dominante. Em 1984, estávamos fartos de ser tratados como crianças. Conseguimos, feito notável, transformar o fim da ditadura numa grande expectativa de melhora, de festa, lamentavelmente frustrada pela tragédia curta e altamente simbólica da morte de Tancredo Neves e pela tragédia longa e fortemente material da hiperinflação. Em 1989 e 1994, fartos da inflação, apostamos no seu fim, épico na promessa descumprida de Collor, prosaico na mudança efetivada por FHC. Já 2002 foi o ano da festa quase pura, em que preservaríamos o real associando-lhe o social. E agora? Se tivermos a mudança, qual será o projeto, a proposta, o programa? A cada mudança havida, vivemos um sonho, quatro ao todo - Diretas-Já, Collor, o Real e a inclusão social. Hoje nenhum dos postulantes acena com um sonho. É tão significativo que Marina, a "sonhática", seja apenas coadjuvante...
Mudaremos, agora, sem projeto? Mudaremos, sem entusiasmo? Mais me parece que esta eleição, seja qual for seu resultado, marque um fim do que um começo. E não penso em fim do governo do PT, porque a exaustão marca todas as candidaturas. Isso não é ruim, porém. Quase toda mudança histórica de realce passa por aquele momento que Oliver Cromwell, líder da mais radical revolução ocorrida na Inglaterra, definiu em 1650 ao dizer: "Quando começamos, não sabíamos o que queríamos; sabíamos, apenas, o que não queríamos". Este é um trajeto longo, mas que pode ser rico.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico (14/07/14)
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