Não se pode mais não sentir, os ventos de mudança sopram de todas as direções. As jornadas de junho de 2013 no Brasil, que se alongaram nestes primeiros meses de 2014, com novos temas e outros personagens, especialmente em torno da questão da habitação popular, ameaçam pegar um forte vento de cauda com o surpreendente desastre da seleção nacional na Copa do Mundo.
Do mundo do futebol, que só os ingênuos e as análises mal-intencionadas podem afetar indiferença quanto a seus efeitos sobre o humor dos brasileiros, já toma corpo o diagnóstico de que ele requer uma radical mudança na sua cultura e nas suas estruturas. A linguagem do futebol, notoriamente, é um instrumento relevante da nossa cognição e presença forte na construção das metáforas com que estabelecemos a nossa comunicação de uso cotidiano, na política inclusive, popularizadas nas falas públicas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
De fato - e nisso há consenso geral - não é verificável empiricamente a relação entre êxitos e fracassos da nossa seleção de futebol com resultados eleitorais nas sucessões presidenciais. Mas, de outra parte, é inegável que a massiva exposição pública dos critérios adotados na convocação dos jogadores, na sua escalação para os jogos, nos métodos de treinamento e na avaliação do desempenho de cada qual, escrutinados com interesse apaixonado pela população, não só favorece um amplo processo dialógico, como também se faz presente na formação do senso comum com que os brasileiros se percebem nas suas circunstâncias.
O resultado acachapante da disputa das semifinais com a Alemanha (7 a 1), parcialmente confirmado, dias depois, na derrota para a Holanda (3 a 0), não pode ser atribuído tão somente ao fortuito e aos azares sempre presentes nas disputas esportivas. Ele depõe contra a concepção estratégica da nossa preparação para os jogos e denuncia o anacronismo do nosso repertório e do nosso sistema de jogo, de resto visível nas competições em que se envolveram, em tempos recentes, os nossos principais clubes nos torneios internacionais. Exemplar, no caso, a derrota por 4 a 0 imposta pelo Barcelona ao Santos do sempre brilhante Neymar, em 2011, na final do campeonato mundial interclubes. E, sobretudo, põe a nu as estruturas do nosso futebol - arcaicas, autocráticas -, que, com esse resultados apavorantes na Copa do Mundo, abriu uma janela para a oportunidade da sua remoção. A qual, todavia, não virá sem o clamor público e a ação de uma crítica contundente que a tornem imperativa.
Mais do que exercer um papel pedagógico para a vida moderna, com sua intrínseca valorização da cooperação - a coordenação de movimentos dos jogadores para defender e atacar - e do mérito individual, o futebol, entre nós, conforma um laboratório silencioso onde se processam experiências que transcendem o seu território. A questão racial foi uma delas, tão bem percebida por Mario Filho no clássico da nossa literatura social O Negro no Futebol Brasileiro, quando argumentou que a valorização do negro - seu modelo foi Leônidas da Silva, notável atacante dos anos 1930 - nos estádios de futebol teria contribuído para a sua valorização na sociedade. Não há Muralha da China a interditar o aprendizado que daí deriva para outras dimensões da vida social, como, entre outros estudiosos, tem destacado o antropólogo Roberto DaMatta.
O sentimento em favor de mudanças que varre o País certamente não nasceu nesse "laboratório", mas há algumas coincidências com o que já agita o mundo do futebol. Entre tantas, a política do presidencialismo de coalizão na forma bastarda como o adotamos, cujas afinidades eletivas com as práticas vigentes entre nossos próceres esportivos chamam a atenção ao submeterem o futebol, tal como os da política, aos interesses de autorreprodução de suas elites dirigentes. O anacronismo e a resistência à inovação são outras marcas comuns.
Fechada em panos de luto a Copa do Mundo de 2014, vamos, agora, para a sucessão presidencial e as eleições para governador e das Casas parlamentares, que já se iniciam sob maus auspícios com a movimentação dos nossos paredros da política em torno de alianças erráticas, sopas de letrinhas a combinarem alhos com bugalhos, sem programa e sem alma diante de uma população que reclama por mudanças, tanto nas ruas como fora delas.
O script apresentado, até então, por candidatos e partidos políticos para a disputa eleitoral não está à altura da excepcionalidade do momento que vivemos, com as nossas ruas varridas por movimentos de protestos contra a natureza da política imperante entre nós. Se antes, com todos os seus males conhecidos, tal política tinha assegurado condições razoáveis de governabilidade, agora jaz exaurida diante de uma sociedade que recusa ser representada por ela.
Inverteu-se, faz tempo, uma relação tradicional na nossa vida política: a sociedade é, hoje, mais moderna do que o seu Estado, como se pode verificar com a emergência dos movimentos sociais que brotam de toda parte e se mantêm estrangeiros à política institucionalizada.
Pode-se sustentar que, na Copa do Mundo, nos faltaram sinais que advertissem sobre a catástrofe a vir - a vitória na Copa das Confederações, em 2013, teria mascarado nossos erros -, mas, no campo da política, já soaram todos os alarmes, embora não faltem os que alardeiam que em time que está ganhando não se deve mexer. O mais grave, contudo, é que a esta altura do campeonato não se saiba ao certo que times são esses.
Sociólogo político, é professor pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Rio de janeiro (PUC-Rio)
Fonte: O Estado de S. Paulo
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