quarta-feira, 9 de julho de 2014

Partidos para mudar ou para governar (Renato Janine Ribeiro)




Estas eleições estão montadas numa contradição. Uma pesquisa, meses atrás, mostrou que dois terços do eleitorado querem "mudanças", mas metade dos votantes queria sufragar a presidenta Dilma Rousseff, que representaria a continuidade - e não é óbvio que Aécio Neves ou Eduardo Campos seriam a "mudança". É preciso começar a discutir a fundo o que significa esta contradição entre desejo e voto, e o que ela anuncia para a nossa política.

Há partidos que nascem para governar. Foi o caso do PSDB, fundado em 1988 como uma dissidência do PMDB. Reunia políticos tarimbados e intelectuais competentes, cujo acesso ao poder tinha sido bloqueado por duas décadas de ditadura e que se sentiram sem muito lugar nos primeiros anos da democracia, quando o PMDB fisiológico prevaleceu sobre o ideológico. "Muito cacique e pouco índio", dizia-se dos tucanos, que realmente tinham mais líderes que militantes. Em apenas seis anos, chegavam à presidência da República: não por acaso, FHC era um intelectual convertido em político, não um político de origem. Os tucanos eram os mais "insiders" dos "outsiders", os mais qualificados para governar.

Partidos que nascem para governar sabem exatamente o que fazer. São ou se consideram "the best and the brightest". Têm o diagnóstico exato dos problemas e das soluções. Constituem-se como uma força de intervenção rápida; se o Brasil estava na UTI, que partido poderíamos esperar de melhor? Olhando retroativamente, Collor foi a caricatura, prévia, do futuro governo PSDB: o golpe certeiro de judô que abateria a inflação, o voluntarismo do presidente jovem, tudo isso virou piada perto da sofisticação do Plano Real. Collor revelou seu plano na surpresa; já o Real foi sendo exposto, votado, digerido ao longo de mais de seis meses. Collor marqueteou a juventude, FHC o saber e sabedoria. Mas o PSDB não foi muito além disso; passados 20 anos, ainda se apresenta como o partido do Plano Real e das privatizações - isso num país que não mais teme a hiperinflação e no qual seria anátema privatizar Petrobras, Correios, Caixa e Banco do Brasil. Os tucanos mudaram o país porque queriam governar. Hoje, não está claro que mudança propõem, além da economia, que para a maioria é uma ciência incompreendida.

O PT foi nosso grande partido para mudar. A prova dos nove para os que querem mesmo mudar é: entre chegar ao poder abrindo mão de princípios essenciais e preferir a derrota, o que você faz? A segunda opção é árdua, mas o PT a tomou várias vezes. Reunia grupos os mais variados, descontentes com o statu quo, que tinham em comum uma preocupação ética e política com a injustiça social (O PSDB também lutou contra as injustiças, mas tinha soluções prontas para elas; o PT explorava alternativas, não fechava rápido as decisões). Para chegar ao poder, fez mil ensaios e erros de suas propostas, em campanhas e eleições. (O PSDB, querendo o eficaz, querendo-o logo, não ia tão longe na discussão do que é justo). Daí, claro, o maior radicalismo, a maior ambição do PT.

Quem, hoje, é partido para governar, quem para mudar? Para mudar, hoje temos meio partido, que poderá tornar-se inteiro nos próximos anos: a Rede Sustentabilidade. Repete características do PT. Tem forte ingrediente ético. Parece ter militantes ou ativistas não pagos, o que foi um distintivo petista. E, claro, tem diferenças internas. Contudo, se a preocupação social não está fora de seu horizonte, ela não é sua prioridade. A Rede nasce da defesa do meio-ambiente. Seus líderes não têm, ou não têm mais, o foco na injustiça social. Sua plataforma não é de classe, mas da vida - enquanto "zoe", a vida animal, mais do que "bios", a vida humana. E da defesa da natureza a Rede foi caminhando para um foco mais largo, e também mais vago: o sustentável. Esse adjetivo tem vários sentidos, inclusive o da sustentabilidade dos negócios (É este salto da vida natural para o econômico que a faz perder um tanto de vista o social). Mas, em que pese esse salto, hoje é o partido mais disposto a abrir agendas de discussão novas e a introduzir algum idealismo na política. Digo "algum" porque nunca fica claro o bastante qual o seu vínculo com o mundo empresarial. De todo modo, é o elemento inovador em nosso quadro político.

Mas resulta difícil, tantos meses depois de sua ligação ao PSB, entender como a união dos dois faz sentido, para além da eleição de outubro. Nenhum dos traços que acima expus se aplica aos pessebistas. Aliás, nem mesmo dá para chamar de "socialistas" os membros do PSB, exceto Roberto Amaral e poucos outros. Em resumo, a Rede parece um PT ainda fraco, como era nos anos 80, mas com uma pressa tucana de chegar ao poder e implantar o que possa de sua agenda. Há algo surpreendente na Rede: Marina teve uma votação enorme em 2010, como Lula em 1989, o partido é idealista, como era o PT - mas ela e o partido se aliaram a um candidato e um partido bem menos inovadores. A Rede é o braço que quer mudar, o PSB o braço que quer a presidência (mas sem ter a enorme aptidão dos quadros tucanos de 1994). Será frutífera esta união? Dará para somar, assim, o idealismo da Rede e o utilitarismo do PSB? Se funcionar, muito bem. 

Pessoalmente, penso que, para mudar, é melhor aguentar uma longa travessia do deserto. Ela aprofunda e amadurece. Mas nosso propósito é apenas analisar, não é ditar soluções. O Brasil precisa de partidos para governá-lo, mas também para mudá-lo - e este segundo lugar está mais ou menos vago, desde que o PT, no governo, teve de fazer, também ele, Realpolitik.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico 

Nenhum comentário:

Postar um comentário