Só daqui a dez anos saberemos em que o Plano Diretor agora aprovado beneficia ou não a cidade de São Paulo. Será quando um novo Plano Diretor estiver sendo votado. Não houve interesse na avaliação dos resultados da execução do plano anterior, tanto nos efeitos positivos quanto nos negativos e no descumprido. Isso permitiria identificar os pontos de fragilidade na ação administrativa do município na questão fundiária urbana.
O estado de felicidade de muitos manifestantes, com a aprovação do plano pela Câmara Municipal, parece irrealista em face do tormentoso percurso que vai do grito pela casa própria até o finalmente de estar morando na própria casa. Há anos de distância entre um momento e outro. A começar de que casa própria para os que dela carecem não é a única nem a principal meta do plano. Um dos vários tormentos para chegar às metas dos grupos populares de pressão é o do conflito de interesses sociais que há no plano. Sua aprovação não abrandará reivindicações que colidem com o que foi aprovado nem resolverá conflitos no interior do que é a própria concepção de interesse social nas demandas e carências em confronto. De certo modo, o grito dos pobres é uma anomalia na definição de um plano cuja função é, basicamente, ordenar e regulamentar o uso do solo urbano. Várias das propostas encaminhadas aos vereadores por diferentes grupos que, supostamente, falam em nome da sociedade civil são mais discursos abstratos sobre valores sociais do que propriamente expressões de uma consciência dos caminhos da revolução urbana necessária e possível.
Uma indicação do conflito entre os projetos históricos opostos para São Paulo contidos no plano foi o discurso do prefeito à multidão do MTST sobre a redução da área de um parque cuja criação ele próprio decretara. Aquele que seria construído onde se instalaram as 8 mil famílias da ocupação Nova Palestina, na zona sul. É um indicativo de que o interesse social representado pela proteção às áreas de proteção ambiental se torna vulnerável e secundário em face de pressões organizadas, de maior poder eleitoral, que, mesmo sendo feitas em nome do direito dos pobres à moradia, são interesses de uma variante problemática da propriedade privada. Social apenas no ajuntamento da mobilização, diferente do social permanente e de todos, também dos pobres, envolvido na questão ambiental. Não se trata de escolher, mas esse Plano Diretor mais glamoriza do que resolve a questão da pobreza. Ele a adia mais uma vez, ao mesmo tempo que complica a questão ambiental.
Basicamente, um plano diretor visa a assegurar medidas de governo e restrições de uso da terra para dar cara de cidade a uma cidade. A cidade não é uma ocupação, é uma construção, a formatação de uma estética da vida. O que é particularmente interessante num lugar como São Paulo, que ainda tem restos da cidade que São Paulo já foi, antecipações da cidade que São Paulo quer ser e manchas da São Paulo que a cidade abomina. Na proposição, debate, modificação e definição do Plano Diretor aprovado essas três cidades brigaram entre si e continuarão brigando. Faltou aos que decidem e aos que berram a consciência do urbano como diversidade e pluralidade.
Os conflitos do plano são os que resultam da equivocada suposição de que o urbano é justo quando obriga e reduz ao linear das semelhanças. O urbano só é urbano quando abrigo das diferenças e da diferenciação, da desarmonia dodecafônica do plural, sinfonia pós-moderna de todos e não só de alguns. Empurrar os pobres para o meio dos ricos ou os ricos para o meio dos pobres apenas desdobra a ideologia oficial do progresso social na aparência. O plano, que deveria ser um plano de ocupação e uso do solo, pretende ser, também, um plano de reforma social, por meio de uma redistribuição espacial das classes e estratos sociais. Cria a ideia da coabitação das classes, como sucedâneo fictício de transformação social. Transforma a habitação pobre em habitação de pobre.
O principal fantasma de todo plano diretor urbano é a renda fundiária, a mediação sem controle da especulação imobiliária. De cara já há estimativas de uma elevação substancial de preço dos apartamentos atuais que dispõem de duas ou mais garagens. De uma penada, a simples assinatura da lei do plano encherá o bolso dos já proprietários com a renda diferencial decorrente do privilégio de terem mais do que a nova lei permite. Na mesma régua, pode-se prever que acontecerá na cidade o que já acontece no programa de reforma agrária. Os beneficiados pelas habitações sociais em enclaves de classes sociais mais altas serão assediados por compradores que não resistirão à tentação de comprar apartamentos baratos em bairros ricos, no espaço de outra classe social, a moldura do quadro e não o quadro. É pouco provável que os destinatários dessa tímida reforma urbana resistam à tentação de transformar em moeda sonante a renda diferencial invisível da habitação fora do lugar.
*José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP.
O Estado de S. Paulo
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