terça-feira, 1 de julho de 2014

Pode diminuir a corrupção? (Renato Janine Ribeiro)




Levanto aqui uma questão controversa: com o avanço das tecnologias de gravação e o enfraquecimento dos laços conjugais, será que ficou mais fácil desmascarar a corrupção? Essas duas mudanças, uma técnica, outra social, diminuirão o desvio de recursos públicos?

Primeiro ponto. Hoje, não há praticamente mais conversa secreta, salvo entre duas pessoas nuas na água. Fora deste caso, um dos participantes - ou uma terceira pessoa - sempre pode gravar a conversa. Esse registro poderá servir para negociar um acordo de delação premiada ou, antes mesmo, pressionar e chantagear a outra parte. Um caso exemplar é o do mensalão do DEM, quando se descobriu uma rede de corrupção no Distrito Federal. Pudemos até ver dois políticos agradecendo a Deus pelo dinheiro roubado que recebiam. Sem câmeras portáteis de vídeo, não haveria o escândalo nem o castigo.

Tivemos, no começo da Nova República, uma novela emblemática da exaustão de nossa paciência com a corrupção: "Vale Tudo" (1988). Faz já mais de um quarto de século! Nela, a vilã Odete Roitmann forçava o genro Ivan a corromper um funcionário público - mas ela mandava gravar a cena, de modo que Ivan acabava preso. Na vida real, funcionários paulistanos chantagearam o empresário Ricardo Semler - que os filmou e denunciou. A corrupção se tornou mais arriscada. Mas a tecnologia complexa que foi usada nesses casos hoje é banal. Está ao alcance de qualquer um. Qualquer smartphone registra qualquer malfeito.

Quer dizer que todo ato de corrupção hoje é denunciado? Não. Mas a facilitação de seus registros cria um risco maior para o corrupto. Ele sabe que tudo pode ser revelado. A única forma de evitar isso é as pessoas estarem sem roupa e num lugar - como uma piscina ou o mar - em que aparelhos eletrônicos não possam ser utilizados.

A corrupção, no Brasil, foi tolerada porque parecia não prejudicar ninguém. Furtava-se dinheiro da Viúva; ora, por que dar esse nome ao Tesouro Público? Porque, se um galã leva uma viúva a festas e jantares, para pegar o dinheiro dela, não estaria prejudicando ninguém, a não ser sobrinhos ou netos que só querem que ela morra logo para herdarem um dinheiro que não merecem. Mas essa é a mesma justificativa do fiscal que, para não emitir uma multa, aceita ou cobra um agrado: todos saem ganhando, pensa ele. Ele não entende que sai perdendo o Tesouro, o dinheiro de todos, o bem comum. Esse descaso criminoso pela coisa pública só é igualado pela sua aparente inocência - um crime que seus autores não percebem como crime, que prejudica milhões de pessoas, sobretudo as mais vulneráveis, sem eles o notarem.

O dinheiro da viúva é estéril. Se eu não pegá-lo, ele não será usado. Mas a analogia não cabe com a Viúva, isto é, o tesouro público. O dinheiro de todos é, ou deve ser, tudo, menos improdutivo. Quando se rouba a Viúva, perdem-se obras, perdem-se serviços. O corrupto não furta indolentes, mas contribuintes. Não rouba o supérfluo, mas o essencial. Não tira de ninguém o que este não merece, mas sim o que poupou, pagou, constituiu. Por isso, seu crime é horrível. Por isso, a China os executa.

Mas esta consciência parece estar longe do "nosso" corrupto. Daí que tantos deles flutuem vagamente entre a corrupção deslavada e o simples descaso no trato dos dinheiros. Daí que alguns sejam simpáticos e até generosos. Daí que seu crime não seja "hediondo". O hediondo é quem afirma, na sua cara, que não preza a sua vida, ou mesmo sente prazer em matar, em torturar. Lembra a "Anedota Búlgara", de Carlos Drummond de Andrade, sobre o czar naturalista que caçava homens: "Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas,/ ficou muito espantado / e achou uma barbaridade". Pois é, o corrupto pratica dois pesos e duas medidas. Ele, como o sonegador, não se reconhece como criminoso.

Por isso, no patrimonialismo brasileiro, e em sua derivada a corrupção, o uso da crueldade parece raro, ao contrário da Máfia. A doutrina que sustenta patrimonialismo, nepotismo e corrupção é a da bondade de quem os pratica: se rouba o que é de todos, é porque é de nenhum. Daí que seja importante enfrentá-lo num de seus pontos mais fracos, a rede de confianças entre cúmplices que permite funcionar a corrupção. Ele precisa desconfiar do sócio e da mulher.

Assim, o segundo elo fraco que um bom investigador pode atacar é o enfraquecimento dos laços antes pouco dissolúveis do amor, como o casamento. O corrupto confiava na esposa, porque ela pertence a sua vida doméstica, privada, íntima, não ao mundo público. Se na política alianças se fazem e desfazem, a aliança na vida pessoal era permanente. Isso valia não só para o casamento mas, até mesmo, para o estatuto duradouro de certas amantes. Ora, acabou esse asilo íntimo contra as agruras do mundo. As mulheres deixaram de assegurar o repouso do guerreiro. A insegurança pública invadiu a alcova. Relações se desfazem com uma raiva que não poupa segredos. A crise que derrubou o senador Renan da presidência do Senado foi exemplar. Acabou o papel secundário da mulher, que sustentava acordos num meio em que a palavra era constantemente quebrada; por que arcaria ela, sozinha, com tudo?

Microgravadores e amores líquidos expõem mais a corrupção a uma investigação bem conduzida. Mas a investigação tem que ser de primeira. Tem de jogar um contra outro. Tem que dissolver as alianças, premiando a denúncia do parceiro ou mesmo do amor. É o que a legítima defesa da sociedade exige. Mas qual o impacto destas mudanças que vulneram o segredo sobre a corrupção? Espera-se que consigam reduzi-la.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. 
Fonte: Valor Econômico

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