Quem cumprirá nossa nova tarefa histórica?
Na última coluna prestei homenagem, como a maioria da humanidade, a Nelson Mandela - e defini "estadista" como o governante que vai além do comum, melhorando decisivamente o mundo. Daí, uma pergunta inevitável: tivemos ou temos, no Brasil, estadistas?
Para começo de conversa, a definição que propus de estadista é relativamente nova. No Império, e em geral antes que as massas ingressassem na política, estadistas se ocupavam do Estado, de suas instituições, da nação. Não era errado celebrar como estadistas Bismarck e Cavour, autores das unificações alemã e italiana - nem, em nosso país, o barão do Rio Branco, a quem devemos a segurança e a paz das fronteiras. Mas, de meio século para cá, essa definição se tornou insuficiente.
Talvez seja o caso de substituir a palavra "estadista", no que tem de elogiosa, por outra. O cientista político José Murilo de Carvalho, faz tempo, lamentou que no Brasil tenhamos mais "estadania" - neologismo que ele cunhou a contragosto - do que cidadania. O cidadão importa menos do que o Estado repressivo. O que sugiro vai no mesmo espírito dele: deveríamos valorizar quem melhora a vida do povo, não o poder estatal que, no fim das contas, muitas vezes só beneficia uns poucos.
Estas ressalvas, que submetem a avaliação de nossos homens políticos a uma concorrência internacional, podem porém ser severas demais com nossos estadistas, republicanos ou imperiais. Talvez não devamos ser tão exigentes, pelo menos com os tempos mais afastados, quando fortalecer o Estado era tarefa essencial, até mesmo para melhorar a vida dos pobres. Difícil não dar um merecido destaque a Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Getúlio efetuou a transição do Brasil rural para o urbano, incluindo na vida social e política massas de trabalhadores e pobres. Fez isso com um regime autoritário, altamente repressivo, em especial contra os comunistas. Mas é certo que promoveu mudanças necessárias, de cuja relevância e necessidade poucos tinham consciência então, e que o resultado foi mais justo e benéfico do que o contrário.
JK teve em seu ativo a industrialização. A urbanização de Vargas se completa com ele. Também sinalizou, ao transferir a capital para Brasília, que saíamos do litoral, do legado de Tordesilhas, e assumíamos o território nacional como um todo. Tudo isso teve efeitos colaterais - o automóvel nos trouxe a poluição, um trânsito horrível e cidades em frangalhos, mas isso era difícil de prever e, com sucessores mais capazes, a sequência teria sido diferente. Acrescento, como um grande feito de JK, seu espírito pacífico e democrático, coisa rara no Brasil e de que andamos ultimamente necessitados.
O problema surge mesmo na avaliação dos presidentes recentes, FHC e Lula. Foram estadistas? Em favor de FHC, seus apoiadores mencionam a vitória sobre a inflação e a definição dos rumos da economia, entre privada e estatal. Mas se pode contra-argumentar que, se foi difícil vencer a inflação, quase o mundo todo o conseguiu, na década de 1990: isso não justifica o título de estadista. O que realço em seu governo foi a paciência política, a capacidade de articular, a transmissão calma e tranquila da presidência a um sucessor que vários temiam. Não é coisa trivial.
Lula também tem pontos a promovê-lo. Comecemos pela grande inclusão social. Seguiu iniciativas de Itamar e FHC, mas ampliou sua escala e, sobretudo, tornou esse tema central em nossa agenda política. Ninguém mais no Brasil disputa o Executivo se opondo a programas, emergenciais ou estruturais, de eliminação da miséria e redução da pobreza - assim como nenhum candidato será viável se opondo à democracia instaurada em 1985 ou defendendo a volta da inflação. Pelo alcance social, este feito foi notável, alçando Lula a uma posição de respeito. Além disso, ele alcançou um notável destaque internacional. Seus projetos de combate à miséria são saudados como exemplares. É elogiado fora das fronteiras como raro brasileiro o foi. Basta isso? Não sei.
O verdadeiro problema, aqui, é que dar o apodo de estadista a um ou outro destes grandes presidentes virou tema de rixa partidária. Uns acusam FHC de ter deixado uma "herança maldita", termo injusto, que causou ressentimentos talvez insuperáveis entre os tucanos. Outros atacam Lula com ódio (FHC despertou bem menos raiva). Qualquer elogio a um é visto, por alguns partidários do outro, como detestável. Isso dificulta um juízo. Mas não nos impede de discutir o tema. Sugiro que, pelo menos, os consideremos como grandes presidentes, bem superiores à média de seus antecessores.
Porque o relevante não é a resposta (foram ou não estadistas?), mas a discussão. Desta maneira nos perguntamos o que é um grande presidente - ou melhor, o que queremos nós de um presidente.
Tanto se pergunta quem tem mais chances de se eleger em 2014... Por que não priorizar outra questão: o que desejamos, dele ou dela? Tenho sustentado que o momento histórico é de uma agenda clara e dificílima: assegurar serviços públicos (saúde, educação, transporte e segurança) de qualidade. No Brasil, nem mesmo o asfalto dos bairros ricos presta... Ter serviços básicos bons é o grande fim de que precisamos; como fazer para chegar a isso são meios, que podem ser variados. Somos um país em busca de transformações significativas. Mas, se deixarmos claro que perfil desejamos para o chefe de Estado, teremos dado um bom passo para saber - e eleger - qual candidato mais nos convém. É uma questão simples, mas que tem estado fora de nosso debate, demasiado eleitoral.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico (16/12/13)
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