Quase meio século depois do golpe de 1964, João Goulart começa a vencer o estereótipo do presidente que só tinha defeitos
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Os brasileiros deveriam aproveitar o próximo sábado, 31 de março, para uma reflexão histórica. Por uma questão de bom-senso democrático, a data, que marca o 48º aniversário do golpe militar de 1964, foi retirada do calendário das comemorações oficiais. É bom que seja assim. A derrota de 31 de março foi absoluta e completa. Embora seja possível recordar bons números de crescimento econômico e apontar várias medidas que modernizaram o país, a essência da questão é outra. Nenhum país tem o direito de celebrar o fim da própria democracia. É útil, porém, tentar entender o que houve.
É compreensível que até hoje o país não tenha sido capaz de fazer o necessário ajuste de contas com João Belchior Marques Goulart, o Jango. Riquíssimo, por herança e pela competência em multiplicar o patrimônio familiar, Jango foi um dos mais populares políticos brasileiros. Nas eleições de 1955, quando candidatos a vice e a presidente recebiam votos em separado, ele conseguiu 3,5 milhões de votos para vice-presidente, contra 3 milhões conferidos ao titular, Juscelino Kubitschek. Poderia ter sido um candidato competitivo contra o furacão Jânio Quadros, em 1960, se JK não tivesse tido o receio de lançar uma criatura capaz de tornar-se maior que o criador. Herdeiro do PTB por decisão de Getúlio Vargas, Jango coordenou os trabalhos dos sindicalistas e estudiosos que formularam as Reformas de Base, o único programa de um partido brasileiro que se tornou motivo de debates entre os eleitores de cima, de baixo e do meio. Carro-chefe do programa, a reforma agrária era apoiada por 72% da população. Num país rural e de agricultura atrasada, distribuição de terra parecia sinônimo de distribuição de renda.
Jango tinha 42 anos de idade quando assumiu a Presidência, 45 quando a perdeu e 57 quando morreu de infarto no interior da Argentina. Naquele momento, deprimido e preocupado, fazia tratativas para voltar ao Brasil. Em Buenos Aires, o ex-presidente da Bolívia Juan Jose Torres e o general Carlos Pratz, ligado ao presidente Salvador Allende, do Chile, haviam sido assassinados. No Uruguai, a ditadura local prestava qualquer serviço como prova de amizade com a instalada em Brasília, de quem dependia. Depois da morte de Jango, foi preciso pedir autorização ao governo militar para que o corpo fosse enterrado em São Borja, no Rio Grande do Sul. A censura proibiu que emissoras de TV transmitissem reportagens sobre Jango, autorizando somente uma "nota de falecimento", desde que ela não fosse "repetida sucessivamente".
O mistério em torno de Jango diz respeito a seu lugar na história. Com uma unanimidade suspeitíssima, típica de quem busca desdenhar o gaúcho barrigudo, que adorava uísque, mulheres e carne vermelha, além de ser uma chaminé ambulante, aliados e inimigos o descrevem como "fraco", "demagogo", "despreparado", "acomodado" e "incompetente". Como se fosse possível colocar o golpe nas costas de um bode expiatório.
Quando Jango caiu, uma parcela considerável de seus aliados queria fechar o Congresso e convocar uma Constituinte. Outra parcela o considerava moderado demais, um estorvo para o avanço de reivindicações. Os adversários de Jango, que tentaram impedir sua posse, em 1961, depois da renúncia de Jânio, enfim podiam sentir-se vitoriosos. Desde o primeiro dia, articularam um movimento golpista para arrancá-lo do Palácio à força. A Casa Branca, potência que na ocasião era mais que hegemônica nessa parte do mundo, apoiara o golpe com dinheiro, conselhos e, na hora necessária, uma frota de embarcações de guerra.
Jango herdou uma democracia tão enfraquecida que, nos 20 anos anteriores, ocorrera uma tentativa de golpe de Estado a cada triênio. A "incompetência", a "fraqueza" e o "despreparo" do presidente são apenas uma forma de aludir à dificuldade política para remediar a agonia final daquele regime que, na vida real, poucos estavam empenhados em defender. É sintomático que, em 1961, quando três ministros militares anunciaram que não permitiriam a posse de Jango, o país inteiro tivesse reagido como se fosse a coisa mais natural do mundo. Teria sido mesmo, se Leonel Brizola, o então governador do Rio Grande do Sul, não tivesse organizado a resistência com o apoio de generais que comandavam o Exército na região e da própria população civil, que fez fila na porta do Palácio do Piratini, em Porto Alegre, para levar fuzis para casa.
Naquele ponto cruzado da história, Jango sofreu uma derrota decisiva por causa da incapacidade de controlar a economia, num surto inflacionário que alimentava a crise política. O economista Celso Furtado fez um Plano Trienal para tentar arrumar o aparato produtivo, derrubar os preços e retomar o crescimento. Jango nomeou um político conservador, Carvalho Pinto, para assumir o Ministério da Fazenda e acalmar os empresários. Não adiantou. Era preciso convencer os sindicatos a abrir mão de reajustes nos salários num primeiro momento para recuperar os ganhos mais tarde. Isso nunca ocorreu. Jango construíra sua popularidade como ministro do Trabalho de Vargas e era um presidente muito generoso em negociações sindicais. Quando tudo terminou e todos os seus aliados lamentavam a derrota, ele foi acusado pelo líder comunista Luís Carlos Prestes de despertar tendências direitistas no Partido Comunista Brasileiro (PCB) com a distribuição exagerada de concessões "capitalistas".
No Brasil periférico, dependente e agrário dos anos 1960, tomava-se por força do presidente o que era na verdade uma posição de fraqueza. O Estado ruía. Os mesmos adversários que acusaram Jango de provocar a anarquia foram os primeiros a ajudar a produzi-la. Os oposicionistas do governo infiltraram agentes disfarçados entre os militantes de esquerda para ampliar a baderna e produzir, assim, uma sensação dobrada de medo e temor. Nas jornadas do fim do governo, encontravam-se lado a lado militantes do PCB, guerrilheiros em treinamento, sindicalistas do PTB, além de agentes da CIA e do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), órgão que trabalhava contra Jango e transformara o cabo Ancelmo em líder de marinheiros rebelados.
Ao deixar o governo, Jango foi retratado como o mais perfeito político populista, aquele que promete o paraíso, mas entrega menos que o purgatório, não tem propostas consistentes para alcançar o que pretende e tenta vender ilusões que jamais serão atendidas. Trabalhando nessa perspectiva, o professor Octávio Ianni, autor do clássico O colapso do populismo no Brasil, condenou Jango, Vargas e também Juscelino como variantes de um mesmo sistema de governo que manipulava o eleitorado para deixá-lo submetido a "mudanças bruscas, golpes de Estado, oportunidades perdidas". Com um olhar assumidamente marxista, a análise de Octávio Ianni alimentou adversários de Jango à direita e à esquerda. Ianni criticou o "populismo" como um desvio condenável no caminho da revolução socialista.
O drama é que, mesmo cercado por aliados radicais, Jango não era nem pretendia ser um revolucionário, diz o professor Jorge Ferreira, autor de João Goulart, uma equilibrada biografia do presidente. "Chamar Jango de populista é uma forma de despolitizar a discussão. Ele falava em humanizar o capitalismo. Era um político de centro-esquerda, um social-democrata nas condições brasileiras. Pensava numa economia pactuada entre empresários e trabalhadores, onde se respeitaria a propriedade privada, com uma melhor distribuição de renda." Para quem gosta de associar Jango à demagogia mais marota, não custa lembrar que ele colocava a mão no bolso. Incluiu uma de suas grandes fazendas de Mato Grosso no primeiro lote passível de reforma agrária. Para o professor Ferreira, "a crítica permanente ao populismo desqualifica o processo democrático, sugere que o eleitor não sabe escolher corretamente". Não por acaso, afirma Ferreira, "populista é sempre o outro". Mas não um outro qualquer. É o outro que tem votos.
O marechal Castello Branco, que arrebanhou apoio para a queda de Jango na liderança de um movimento que condenava o "populismo carismático", como se dizia na ocasião, proibiu eleições diretas e permaneceu na Presidência até 1967. O governador da Guanabara, Carlos Lacerda, imaginava que o golpe abriria um atalho para ele chegar ao Planalto sem que fosse obrigado a enfrentar adversários melhores de urna. Acabou cassado dois anos depois, da mesma forma que Ademar de Barros, o governador de São Paulo que tinha a mesma ambição. Quando o fim da democracia parecia uma festa, um grupo de generais tentou assumir os governos estaduais.
Entre tantos personagens desastrados, iludidos, destemperados, trapalhões, Jango emerge como o mais triste. Desarticulado, enfraquecido, não foi herói nem político providencial. Chegou a imaginar que se salvaria nos braços das 200 mil pessoas reunidas no comício de 13 de março, no Rio de Janeiro. O plano era fazer dez comícios assim, no país inteiro, para culminar no 1º de maio, em São Paulo. Jango sonhava terminar o mandato. Caiu exatamente um mês antes. O golpe militar tinha pressa. Se Jango sobrevivesse até 1965, a luta política entraria no calendário da sucessão presidencial, em que JK era um nome imbatível. Isso criaria circunstâncias mais difíceis para uma ruptura.
No dia 31 de março, Jango fez movimentos contra o golpe, enquanto eles pareciam úteis. Informado de que uma frota americana estava próxima de Vitória, concluiu que não havia mais o que fazer. Era o lance final de uma convivência tensa e difícil com o governo americano, então numa fase de radicalização com a União Soviética por causa da crise dos mísseis, que deixou o mundo à beira da Terceira Guerra Mundial em 1962.
Durante o governo Jango, as grandes engrenagens da Guerra Fria elevaram o clima de tensão e confronto. Criada pelos EUA como promessa de fomentar na América Latina o desenvolvimento econômico e alternativas democráticas ao regime comunista instaurado por Fidel Castro em Cuba, a Aliança para o Progresso aos poucos abandonou a cláusula que repudiava governos nascidos de golpes de Estado. Passou a tolerar rupturas que beneficiavam os aliados dos EUA e abriram as portas para um ciclo militar no continente.
Ainda em 1962, aceitou-se uma intervenção que mudou o resultado de uma eleição presidencial no Peru. Em 1963, com receio de que a Guatemala fosse governada por um aliado secreto de Fidel Castro, a Casa Branca fechou os olhos para um golpe. No mesmo ano, Juan Bosch, presidente da República Dominicana, foi deposto por militares que o acusavam de cumplicidade com "os comunistas." Em 1962, quando o embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon, pediu ajuda para a oposição brasileira nas eleições legislativas, o presidente John Kennedy autorizou a CIA a contribuir com US$ 5 milhões. Kennedy também deixou registrado nas gravações da Casa Branca seu apoio à conspiração militar contra Jango. No fim de 1963, os programas de ajuda dos EUA ao Brasil foram suspensos. Só recebiam recursos, entregues diretamente, os governadores que faziam oposição a Jango.
Em 31 de março, Jango recebeu por telefone três ofertas para render-se e ficar no cargo, subjugado. Com poucas variações, elas propunham o fechamento do Comando-Geral dos Trabalhadores (CGT) e o abandono do projeto de legalização do PCB, clandestino. Recusou as três. "Jango não quis diminuir-se. Preferiu ser leal aos aliados e aos próprios valores", afirma Luiz Alberto Moniz Bandeira, autor de O governo Goulart. Outros presidentes sul-americanos cederam e foram humilhados. Em 1973, apenas no primeiro ano do mandato, o presidente do Uruguai, Juan Maria Bordaberry, fechou o Congresso e abriu as prisões para adversários. Não foi submisso o suficiente e acabou colocado para fora do cargo em 1976. Na democratização, Bordaberry foi levado ao banco dos réus e condenado a 30 anos de prisão, responsabilizado, entre outras coisas, por 14 assassinatos. Presidente da Argentina entre 1958 e 1962, Arturo Frondizi foi destituído por um golpe de Estado. Ao sair da prisão, envolveu-se em várias conspirações contra a democracia e chegou a apoiar o tenebroso regime de Rafael Videla de 1976, responsável pelo morticínio que traumatiza a Argentina até hoje.
Na comparação entre derrotados, Jango deixou uma lição indiscutível: há circunstâncias em que é melhor perder com a democracia que imaginar que é possível vencer uma guerra contra ela.
FONTE: REVISTA ÉPOCA
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