sábado, 3 de março de 2012

As raças não existem... Mas o racismo, sim! (Entrevista José D'Assunção Barros)

Com um vasto currículo, historiador, ao relembrar fatos polêmicos da nossa história, como a da escravidão negra vinda da África, faz declarações polêmicas com relação à desigualdade, violência nas universidades do país e outros temas relacionados às artes e às cidades

Flávia Bastos

Relembrar fatos, contar história, destacar acontecimentos não é tarefa para qualquer um. Mas, para o historiador dono de um doutorado na Federal do Rio de Janeiro (UFRRJ) não parece ser um grande desafio. José D'Assunção Barros é historiador, professor de História e autor dos livros O Campo da História (2004); O Projeto de Pesquisa em História (2005); Cidade e História (2007); A Construção Social da Cor (2009) – que traz informações preciosas e reveladoras sobre a época da escravidão negra, trazida dos países africanos; e Teoria da História (2011) – em quatro volumes; além do livro Raízes da Música Brasileira (2011).

Entre diversas pesquisas, dissertações e teses, José Barros se aprofundou também em temas como História da Arte, Cultura, e estudos voltados ao Cinema e à Música Erudita. Além disso, é autor de diversos artigos publicados em revistas e jornais especializados, com temas passando por diferenças e igualdades em que demonstra o preconceito como um componente destruidor para a evolução e democracia de um país em busca da evolução. Nas próximas páginas ele comenta questões importantes, como a do sistema de cotas nas universidades, em que defende uma revisão do tema: “a forma de cotas deveria ser pensada mais nos aspectos de divisões sociais geradas pela riqueza e pobreza. E não na questão étnica”, que, segundo ele, “não existe”. José Barros fala, ainda, da história das ideias, poesia e poder – ao qual atribui um forte instrumento capaz de grandes transformações.

Conheça mais sobre seus projetos na entrevista que concedeu, exclusivamente, para a revista Leituras da História:

Leituras da História – O sr. tem um estudo sobre “Desigualdades e Diferenças” transformado em artigo para universidade de Lisboa, sob o título Igualdade, Desigualdade e Diferença: em Torno de Três Noções. Quais seriam essas noções?
José D'Assunção Barros – Nesse estudo, começo a desenvolver uma reflexão conceitual que mais tarde iria possibilitar a elaboração de um dos meus livros: A Construção Social da Cor. O objetivo deste artigo publicado na revista Análise Social, de Lisboa, foi discutir as relações entre as noções de igualdade, desigualdade e diferença, e, sobretudo, mostrar que frequentemente confundimos desigualdades com diferenças, e vice-versa. Principalmente, interessei-me em mostrar que, em diversas ocasiões, essa confusão pode fortalecer violências simbólicas ou efetivas e, às vezes, fazem parte de sofisticados projetos de dominação e opressão a certos grupos sociais.

Por exemplo, homens e mulheres constituem duas “diferenças” básicas relacionadas ao gênero; se pensarmos nessas diferenças como desigualdades, cometemos uma violência. Na Idade Média, a filosofia escolástica de Tomás de Aquino concebia a mulher como um “homem inacabado”. O que essa leitura filosófica fazia era, precisamente, reler uma diferença como desigualdade. A singularidade feminina é, nesse caso, aferida em comparação com especificidades masculinas, sem considerar a mulher como uma diferença. A “escravidão” é, na verdade, uma desigualdade, pois o escravo é o ser humano que perdeu a liberdade – um indivíduo não “estava” escravo, mas “era” escravo. Esse deslocamento de uma categoria que deveria se relacionar a uma circunstância – uma desigualdade –, para uma categoria que se refere a uma essência – o que remete a uma diferença –, era a base imaginária desse cruel sistema de exploração que foi o escravismo.


“Um indivíduo não ‘estava’ escravo, mas ‘era’ escravo. Esse deslocamento de uma categoria que deveria se relacionar a uma circunstância para outra que se refere a uma essência era a base imaginária desse cruel sistema de exploração que foi o escravismo”


Nesse sentido, a escravidão moderna foi muito mais violenta que a escravidão praticada nas sociedades antigas. Estas reconheciam a escravidão como uma “desigualdade radical”, enquanto que as sociedades modernas tendiam a ver os escravos capturados na África como uma diferença. O escravo, na maior parte do período colonial, não era apenas o “estrangeiro absoluto” dos antigos gregos, mas perdia até mesmo a sua humanidade mínima. Existe tanto uma violência ao deslocar diferenças para o âmbito da desigualdade, como também ao deslocarmos desigualdades para o campo das diferenças.

LDH – E o problema histórico da escravidão de africanos nos tempos do Brasil Colonial e do Brasil Império?
JDB – Escrevi alguns artigos sobre a questão do escravismo nas sociedades modernas. Depois, a minha pesquisa em torno desse tema adquiriu maior fôlego e resultou em um livro que publiquei em 2009: A Construção Social da Cor. Neste livro, procuro examinar o problema do escravismo a partir do referencial teórico, que acabei de citar. A escravidão moderna, inclusive no Brasil Colonial e no Brasil Império, ergueu-se sobre a leitura de uma desigualdade radical (a escravidão) como “diferença”. Nesse sistema, passava-se a associar “negro”, “africano” e “escravo”, e a enxergar como uma “diferença” o indivíduo aprisionado por esse entrelaçamento de categorias. Os abolicionistas, nos seus libelos antiescravistas, precisaram desconstruir esse discurso que convertia o escravo em diferença. O africano ou afrodescendente escravizado não “era” escravo, como sustentavam os setores mais opressivos do sistema escravista, mas “estava” escravo.

LDH – Fale mais sobre esse trabalho...
JDB – No livro, procuro mostrar, acompanhando diversos autores recentes, recentes, que a visão da humanidade como se estivesse dividida em “raças” é apenas uma construção social e cultural. As pessoas se acostumaram – e aprendem isso todo o tempo – a enxergar, no conjunto dos seres humanos, raças baseadas em critérios relacionados à aparência física, dos quais o mais marcante é a cor da pele. Contudo, falar em homens brancos e negros é mera construção, não é um dado natural. As raças, na verdade, não existem – nem no sentido biológico, nem no sentido antropológico. Em contrapartida, o racismo existe! Esse é um dos paradoxos mais impressionantes das sociedades. O racismo é uma realidade social, uma vez que as pessoas se acostumaram a enxergar a sociedade como sendo dividida em raças e isso acaba estruturando as suas maneiras de se relacionarem uns com os outros. Na obra, procuro mostrar como foi se estabelecendo, historicamente, essa maneira de ver as coisas – e quais as contradições daí decorrentes.

LDH– Qual a lógica dos termos “diferença negra” e “diferença escrava” – utilizada pela elite senhorial?
JDB – A “diferença negra” é uma construção, pois, na época em que foi implantado o tráfico negreiro, os africanos não se viam como negros; eles se viam reciprocamente como zulus, ibos, tekes, nuers, e centenas de outras identidades africanas que são bem vivas ainda hoje no continente africano. Todavia, para o sistema escravista funcionar, era preciso superpor a essas várias identidades africanas uma identidade maior, a “diferença escrava”.

LDH – Em sua opinião, ainda existe preconceito dessa forma no país? Como ele atrasa a evolução das pessoas e da comunidade?
JDB – Claro. Acreditar que existem raças, e, mais, que existe uma hierarquia de raças, umas mais capazes que outras, não pode, senão, atrasar ou prejudicar o desenvolvimento de uma sociedade como a nossa, cuja maior virtude é a diversidade e a riqueza genética. O talento, a capacidade, o caráter, a inteligência, a criatividade – nada disso está atrelado ou hierarquizado de acordo com a aparência física, com o sexo, com a procedência. Quando agimos orientados pelo preconceito, prejudicamos o livre afloramento daquilo que há de melhor em cada um dos diversos seres humanos; reduzimos as possibilidades de esse ser humano atuar livremente e em um regime de plena igualdade. O preconceito bloqueia talentos, tolhe as oportunidades de indivíduos que poderiam prosperar mais, conduz sempre as mesmas pessoas ao poder político, perpetua desigualdades.
“Os filmes brasileiros produzidos nas últimas décadas têm conseguido partilhar as salas de exibição com os filmes estrangeiros, em especial os americanos, que possuem toda uma máquina de apoio por trás de sua produção e divulgação”

LDH – A Lei de Cotas nas universidades, por exemplo, não seria, em essência, preconceituosa?
JDB – Essa é uma questão muito complexa, e ainda a estou estudando para, futuramente, manifestar alguma opinião sobre o assunto. Na verdade, a política de cotas se ampara na ideia das “ações afirmativas”, que buscam, em tese, prevenir ou corrigir os efeitos de preconceitos ou outras injustiças que podem, a qualquer hora, serem produzidas pelas circunstâncias, ou, mesmo, que tenham sido geradas pela própria história. Uma criança educada em uma família rica, herdeira de uma história familiar que a municiou de condições mais favoráveis, na hora de competir por uma vaga na universidade, estaria em vantagem em relação a uma criança pobre, educada em colégios e meios familiares menos propícios.

O indivíduo visto como branco pelo sistema institucional discriminatório também estaria em vantagem, nessa e em outras situações, em relação a um indivíduo visto como “negro”, tanto por conta de eventuais discriminações atuais como em função de desigualdades sociais historicamente herdadas por meio de processos econômicos que fizeram da população afrodescendente um setor menos privilegiado da sociedade. Tenta-se, então, corrigir isso: restabelecer a igualdade oferecendo alguma vantagem ao grupo social menos favorecido. Se pensarmos nisso, a motivação, que é subjacente à Lei de Cotas, não é preconceituosa, pois esta visa, ao contrário, corrigir distorções produzidas pelos preconceitos e desigualdades sociais.

Por outro lado, ao investir na categoria da “raça” – um conceito que não corresponde à realidade biológica e antropológica –, a Lei de Cotas cria um problema. Esses impasses são decorrências daquele paradoxo que citei anteriormente: nas sociedades contemporâneas, a ciência já entende que as raças não existem; todavia, é inegável que o racismo existe nas relações sociais e na vida cotidiana. Como resolver esse paradoxo? Para enfrentar o racismo e o preconceito, o sistema de cotas elege uma estratégia que termina por contribuir para perpetuar as próprias categorias preconceituosas, cujos efeitos se quer combater. O paradoxo se renova. Talvez, no futuro, possam ser pensadas outras formas de cotas e de ações afirmativas, não voltadas para aspectos étnicos (diferenças), mas, sim, para as divisões sociais geradas pela riqueza e pobreza (desigualdades).

LDH – Quais países estão se libertando desse conceito e buscando um caminho mais humano e democrático?
JDB – Não tenho conhecimento muito preciso sobre quais países encontraram soluções mais satisfatórias para o problema das desigualdades sociais geradas pelas discriminações com base na percepção das diferenças de cor. Seria preciso pesquisar isso com maior cuidado, antes de arriscar uma resposta. Contudo, parece-me que os Estados Unidos têm acumulado uma maior experiência no âmbito das políticas afirmativas, exatamente porque esse país foi e tem sido um lugar no qual afloram mais visivelmente as desigualdades sociais produzidas pelo racismo e herdadas do sistema escravista. No Brasil, a partir dos anos 90, percebemos um nítido progresso na ampliação da discussão das temáticas relacionadas a esse tipo de desigualdade social.

“Falar em homens brancos e negros é mera construção, não é um dado natural. As raças, na verdade, não existem – nem no sentido biológico, nem no sentido antropológico. Em contrapartida, o racismo existe!”

LDH – Seus conhecimentos estendidos também à música permitiram a publicação do livro Nacionalismo e Modernismo – A Música Erudita Brasileira. Como se deu o projeto?
JDB – Na época em que comecei a escrever esse livro – que é, na verdade, a segunda parte de uma pesquisa iniciada com o livro Raízes da Música Brasileira –, eu atuava como professor adjunto dos cursos de graduação do Conservatório Brasileiro de Música. Lá, criamos um núcleo de pesquisa em Música, e a minha tarefa era precisamente a de coordenar o setor de musicologia. Foi então que iniciei uma pesquisa sobre a Música Brasileira. A música popular brasileira já foi estudada em muitas obras de valor, embora ainda haja muita pesquisa a ser desenvolvida nessa área. Já a chamada “música erudita”, que muitos preferem chamar de “música de concerto”, tem sido menos estudada, ou pelo menos existe certa lacuna em termos de publicações maiores dedicadas a esse âmbito de estudos.

LDH – O que a História da Arte compreende por processo criativo e suas práticas? Como isso, afinal, aconteceu na evolução das artes do século 20?
JDB – O processo criativo afirmouse de maneiras diversificadas no decurso da História da Arte, e o século 20, ou mesmo o período que se inicia a partir das últimas décadas do século 19, com a experiência impressionista, constitui um momento crucial no qual os padrões artísticos começam a se diversificar cada vez mais. Se até o século 18, ou, mesmo ainda, com o Romantismo de boa parte do século 19, podíamos chamar de “estilos de época” períodos artísticos como a Idade Média Gótica, o Renascimento, o Barroco, ou o Neoclassicismo iluminista, isso já não se verificará com a Arte Moderna, que começa a despontar em fins do século 19 e estende-se pelo século 20 adentro.

Com a Arte Moderna do século 20, teremos correntes diversas convivendo simultaneamente, sem que possamos falar em um estilo de época do século 20, em contraste com o que podíamos falar do estilo Barroco do século 17 ou do Romantismo do século 19. No século 20, temos experiências tão diversas do processo criativo quanto o Cubismo, o Expressionismo, o Abstracionismo, os novos modelos neoclássicos, o Fauvismo, e assim por diante, sem contar as combinações possíveis entre correntes estéticas como essas que citamos exemplificativamente. Qual a função da arte nesses novos tempos? Buscar o belo ou o mais intenso? Representar a realidade ou desconstruir a forma? Radicalizar a experiência da imaginação, como propôs o Surrealismo? Os diversos artistas modernos deram respostas diversas às perguntas sobre a função e sentido da arte. Outro aspecto interessante que podemos observar nos artistas modernos, independente das correntes e movimentos aos quais se filiaram, é que eles passaram a travar uma outra forma de interação com a alteridade – isto é, com as culturas e formas de expressão externas ao mundo ocidental. Os impressionistas, mas também o pós-impressionista Van Gogh, interessaram-se, particularmente, pelos gravuristas japoneses dos séculos 17 e 18, e aprenderam com eles novos padrões de representação.

Os cubistas, a exemplo de Picasso, mas também os fauvistas, a exemplo de Matisse, aprenderam novas possibilidades de expressão com a arte africana. Esses poucos exemplos, e há muito mais, mostram a extraordinária abertura que passou a ser vivenciada pelos artistas modernos, não apenas inventando novos recursos expressivos, como também aprendendo algo das outras culturas e experiências artísticas. Estudei essa questão em maior detalhe no livro Arte Moderna e Alteridade (2006).

LDH – Michelangelo, Van Gogh, Rodim e nomes tradicionais da História da Arte continuarão sendo “modelos” de perfeição?
JDB – Essa pergunta não tem uma resposta única. Cada um desses artistas, e muitos outros, conquistaram o seu lugar na História da Arte por terem elevado a sua experiência artística a um nível extraordinariamente admirável, além do comum. Sim, podemos dizer que eles se tornaram modelos de perfeição, e que possivelmente serão sempre admirados pelos apreciadores de arte. Mas o mais fascinante é que esses artistas, tão diversos entre si, mostram que não há um único modelo de perfeição. O que seria a perfeição em arte? Representar o mundo, recriá-lo, ou inventar um outro mundo, com suas próprias regras? Favorecer a experiência estética do “belo”, ou buscar a “intensidade”? A arte não tem uma resposta única para o que seria a perfeição artística.

“Qual a função da arte nesses novos tempos? Buscar o belo ou o mais intenso? Representar a realidade ou desconstruir a forma? Radicalizar a experiência da imaginação, como propôs o Surrealismo?”

LDH – Os países da Europa sempre foram uma escola, ou um sonho de consumo, para estudantes de artes em todo o mundo. Em sua opinião, a Europa sempre será referência?
JDB – Acredito que a Europa será sempre uma referência importante, no que se refere à Arte. Por outro lado, o último século também trouxe a experiência da valorização de outros espaços e sociedades não europeias. O confortável eurocentrismo, que pôde ser vivido pelos intelectuais e artistas dos séculos anteriores, começa a ser fortemente abalado a partir das primeiras décadas do século 20. Os próprios artistas modernos da Europa foram pioneiros nessa abertura. Hoje, vivemos em um mundo no qual os estudantes de arte podem buscar suas referências em todos os cantos do planeta. A Europa, é claro, continua a ser uma referência fundamental para o universo da arte, mas as referências também se multiplicaram. Vivemos experiências culturais extraordinárias no Brasil, nas últimas décadas. A música popular brasileira, reconhecida no mundo inteiro por meio da obra de compositores como Tom Jobim, conquistou o seu lugar de destaque no cenário mundial. O cinema viveu grandes períodos de criatividade, e acredito que estejamos, neste momento, vivendo mais um desses períodos. Por outro lado, a indústria cultural, as mídias e o mercado também têm conseguido impor ao público consumidor experiências musicais e artísticas que não me parecem ser tão ricas. Mas, enfim, a apreciação artística será sempre uma experiência subjetiva, de modo que será sempre um problema determinar que contribuições artísticas são boas e válidas, e quais não são.

LDH – No cinema, apesar de grande parte da produção ser dependente de Leis de Incentivo à Cultura, parece estar em uma crescente com diversos filmes produzidos e sucesso nas bilheterias. É isso mesmo?
JDB – Sim, acredito que estamos vivendo mais um daqueles períodos de grande criatividade e qualidade no Cinema Brasileiro. Os filmes brasileiros produzidos nas últimas décadas têm conseguido partilhar as salas de exibição com os filmes estrangeiros, em especial os americanos, que possuem toda uma máquina de apoio por trás de sua produção e divulgação. O público significativo que tem assistido aos filmes produzidos no Brasil das últimas décadas também é mais um índice deste momento que estamos vivendo.

LDH – O que o sr. pensa sobre as Leis de Incentivo à Cultura?
JDB – Elas me parecem, no momento, fundamentais. Como no Brasil ainda não temos conseguido sensibilizar a iniciativa privada a investir em cultura – com muitas exceções, é claro –, creio que o papel das instituições governamentais para o incentivo cultural é de importância inquestionável.

LDH – Mudando de assunto, e quanto às histórias de cidades? Aliás, tema abordado no livro Cidade e História. Alguma cidade especial mereceu maior destaque?
JDB – O livro não examina cidades específicas, a não ser como exemplos ocasionais. O objetivo da obra é esclarecer aspectos relacionados à cidade e ao viver urbano, a começar pelo próprio conceito de “cidade” e suas variações ao longo da história. O principal objetivo é introduzir os estudos urbanos, seja na área de História, Antropologia, Geografia, Sociologia ou Urbanismo, pois, em cada um desses campos do saber, a cidade pode ser estudada com vistas à apreensão de certos aspectos.

“A MPB brasileira, reconhecida no mundo inteiro por meio da obra de compositores como Tom Jobim, conquistou o seu lugar de destaque no mundo”

LDH – Existe a cidade ideal, ou a dos “sonhos”?
JDB – A “cidade dos sonhos” tem habitado a imaginação de autores, os mais diversos desde a antiguidade, e são famosas as utopias, um gênero literário no qual um autor descreve a sua cidade ideal: uma cidade que, na realidade, não existe em lugar nenhum. Na vida, temos de lidar com as cidades que existem, com seus aspectos fascinantes misturados aos seus problemas e carências. Podemos escolher, entre as cidades que existem concretamente, aquela ou aquelas que mais se aproximam das nossas expectativas, mas a cidade perfeita obviamente não existe.

LDH – Qual seria a sua?
JDB – Um dia penso em escrever um livro sobre a minha utopia – um tema que também me atrai. Se pudesse magicamente materializar uma cidade dos sonhos, como ela seria? Mas creio que você está me perguntando em qual cidade real eu gostaria de viver. Diversas cidades me fascinam, como Paris, Atenas, Veneza, entre outras. Mas ainda não encontrei nenhuma cidade que eu trocaria pelo Rio de Janeiro, cidade na qual vivi até hoje. Claro, temos problemas muito graves aqui, sobretudo os relacionados às desigualdades sociais e à violência urbana, mas acho que os aspectos positivos os superam, a começar pelos nossos mais tradicionais cartões postais: o Pão de Açúcar e o Corcovado. Que cidades possuem essa beleza, e a combinação de tantos privilégios como o de termos, próximos a algumas de nossas praias, uma lagoa como a Rodrigo de Freitas, e, mais além, áreas verdes como a do Jardim Botânico, sem contar a Floresta da Tijuca? Acho que a minha utopia seria um Rio de Janeiro sem os graves problemas que todos sabemos que esta cidade tem.
Jean Baptiste Debret

LDH – Quais os desafios que um jovem historiador deve encontrar nos próximos anos?
JDB – Vivemos uma época de instabilidades, transformações constantes e vertiginosa aceleração do tempo. Em um mundo no qual tudo muda rapidamente, os historiadores serão cada vez mais chamados a desempenhar um papel social importante. Neste mundo no qual tudo se transforma da noite para o dia, tudo vira história com igual rapidez, e, portanto, precisamos ter historiadores em quantidade necessária para registrar e analisar essa realidade que se modifica diuturnamente. Ao mesmo tempo, outros historiadores precisam continuar o paciente trabalho de fornecer novas leituras sobre processos históricos já amplamente conhecidos. Como sabemos, na área de Teoria da História, cada nova época reelabora constantemente os seus olhares sobre o passado, e isso porque a História – como campo de saber – é produto das demandas do próprio tempo na qual é escrita. Acontecimentos emblemáticos como a Revolução Francesa, a chegada dos espanhóis e portugueses à América, o nazismo, ou tantos outros, sempre precisarão ser repensados de acordo com as indagações e tábuas de leituras dos novos tempos. Um outro desafio é o de renovar os meios expressivos por meio dos quais são produzidas as obras de história. Os historiadores precisarão se afirmar como escritores tão hábeis como os romancistas, e alguns deles também precisarão se transformar em cineastas, lidar com novas mídias e tecnologias, incorporar a música. Tudo isso é muito desafiador.

“Os historiadores serão cada vez mais chamados a desempenhar um papel social importante. Tudo se transforma da noite para o dia, tudo vira história”


LDH – Quais fatos recentes certamente entrarão para a nossa história?
JDB – Não há dúvidas de que acontecimentos impactantes como os atentados terroristas, as recentes crises econômicas e os desastres ecológicos já entraram para a história com uma especial carga de alerta que precisará ser considerada pelos seres humanos a partir desses novos tempos. Há também acontecimentos positivos, como a realização do Projeto Genoma, que demonstrou a origem única da humanidade e conseguiu abalar todas as perspectivas racistas. É igualmente importante a chegada ao poder máximo, em diversas nações, de mulheres que hoje ocupam a função de chefes de Estado, assim como nas décadas anteriores também tiveram igual projeção política representantes de minorias e de classes socialmente menos favorecidas. E, claro, as revoluções tecnológicas invadem a nossa vida a cada instante, impondo-nos uma nova história. Mas coisas ainda mais impressionantes certamente estão ainda por vir.

LDH – No meio acadêmico, como professor, quais são as maiores dificuldades que os alunos e professores encontram?
JDB – Atualmente, particularmente na área de ciências humanas, creio que os problemas mais graves que os professores enfrentam no seu trabalho didático se referem às práticas insuficientes de leitura e escrita que os alunos trazem ao ingressar na universidade. Não é tarefa fácil habituar à leitura estudantes que não se interessaram em desenvolver o hábito de ler durante a adolescência. Ler, e também escrever, é uma prática que só pode ser aprimorada quando cultivada com alguma dedicação. Quanto a problemas na esfera institucional, não posso deixar de mencionar dificuldades como os baixos salários dos professores. Preocupa-me ainda que as falhas de ética, comuns em certos segmentos da política, não estejam ausentes de determinados setores da universidade e das instituições que a controlam, permitindo que se formem grupos fechados para benefício indiscriminado dos seus membros.
Jean Baptiste Debret

LDH – Recentemente, na Universidade de São de Paulo (FFLCH) ocorreu uma violenta manifestação por partes dos alunos da instituição. Como o senhor enxerga tal atitude?
JDB – É difícil emitir uma opinião sobre esses acontecimentos sem conhecer mais a fundo o dia a dia no campus da USP. Daqui do Rio de Janeiro, de onde apenas conheço algo sobre esses acontecimentos por meio dos jornais, hesito em dar alguma opinião mais enfática sobre o assunto. Se estou certo, parece que não está havendo uma interação muito adequada entre os alunos e a presença policial no campus da USP, requisitada pela própria reitoria para tentar pôr fim a assaltos que estavam ameaçando os próprios estudantes e professores. Embora os motivos sejam os melhores possíveis, uma ocupação policial ostensiva não combina muito bem com um campus universitário, e o contexto não muito distante dos períodos de exceção deve ser levado em consideração, pois a memória coletiva de estudantes e professores universitários ainda é povoada por referências à repressão antidemocrática que, no passado, instrumentalizou a força policial contra a comunidade acadêmica contrária à ditadura. De todo modo, pelo que estou informado, mesmo a população de estudantes “uspianos” está dividida em relação à necessidade ou não da presença de policiais no campus.

”Não é tarefa fácil habituar à leitura estudantes que não se interessaram em desenvolver o hábito de ler durante a adolescência. Ler e escrever se aprimora com dedicação”


LDH – Como deve ser a reação da faculdade, seus diretores e professores em uma situação dessa?
JDB – Favorecer o diálogo, tentando sensibilizar positivamente ambas as partes envolvidas no litígio. Seria interessante também rever os termos do convênio que foi firmado entre a USP e a Secretaria de Segurança Pública, de modo a torná-lo mais preciso, e a esclarecer melhor os limites e funções dos policiais encarregados do policiamento da universidade. Em uma palavra, seria o caso de definir melhor a política de segurança do campus universitário, e não de, simplesmente, deslocar para o ambiente universitário um contingente policial sem maiores instruções sobre como agir nesse tipo de ambiente. Seria então o caso de discutir, com o próprio corpo de estudantes, essa política de segurança, fazê-los parceiros das medidas de segurança e das decisões relacionadas ao tipo de policiamento que se deseja para a universidade. É isso que eu desejaria que fosse feito, se uma situação similar ocorresse em minha universidade.

http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/Edicoes/47/artigo244630-1.asp

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