sábado, 31 de março de 2012

Guerra da memória (MAUD CHIRIO - entrevista)

Pesquisadora francesa analisa as divisões ideológicas no interior das Forças Armadas durante o período da ditadura militar brasileira e desvenda o falso apolitismo por parte dos generais

João Paulo

O livro A política nos quartéis – Revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar brasileira é obra de uma historiadora francesa, Maud Chirio, que faz inveja ao leitor brasileiro. Além do domínio das informações sobre a vida política dentro das Forças Armadas (algo sempre negado por uma instituição que diz não gostar de política), a autora demonstra conhecer bem o clima da caserna brasileira. Se a face visível para o cidadão sempre foi a dos generais, o que a pesquisa mostra é o setor médio da corporação metido em política até os ossos, sempre à direita, com um empenho mais “revolucionário” que o da cúpula.

Longe da paz dos quartéis, o que ela descreve é um ambiente de pressões e protestos, dominado a custo pelos princípios da hierarquia e da obediência, mas que encontrava escape nas eleições do Clube Militar e, mais grave, em momentos marcados por violência e atentados. Esse ambiente de divisão, escamoteada pela defesa de uma atuação profissional do Exército, pode ser percebido, em outro contexto, em episódios recentes como o da discussão da Comissão da Verdade.

Em entrevista ao Pensar, Maud Chirio chama a atenção para a necessidade de conhecer em profundidade o período recente da ditadura militar, de modo a influir democraticamente nos rumos da instituição. Os tempos são outros, mas a persistência de uma certa “cultura histórica institucional” obriga ao cuidado histórico, vigilância política e reflexão permanente. Para isso, ela defende a abertura de arquivos e as pesquisas sobre o período.

Para o brasileiro o Exército, depois do golpe de 1964, é identificado com a direita. Em seu estudo, percebe-se que havia um setor à direita da direita, formado pelos setores médios da corporação. Como se construiu o consenso em torno das Forças Armadas, de modo a esconder essa diferenciação ideológica?
O Exército brasileiro não foi sempre identificado com a direita. Falando só do pós-1945, houve momentos de intensa bipolarização, com setores importantes de oficiais e praças apoiando os governos getulistas e as políticas nacionalistas implementadas por estes. Foi o que aconteceu, em particular, durante o segundo governo Vargas, quando o Clube Militar virou um espaço de lutas políticas violentas entre a facção “nacionalista” e a “entreguista”, usando o vocabulário da época. Mais para a frente, os sargentos foram uma força progressista importante e uma base de apoio fundamental para o governo de João Goulart. Esses setores mais à esquerda foram expulsos das Forças Armadas após o golpe de 1964, e a instituição militar inteira migrou para a direita. Alguns grupos de oficiais de patente intermediária (em geral tenentes-coronéis e coronéis) eram, é verdade, ainda mais extremados e entraram em conflito com o poder militar, por querer uma “revolução” mais radical, ou seja, a construção rápida de um regime autoritário e repressivo. Esse conflito não foi sempre escondido. Em 1964 e 1965, fazia manchete todo dia. Mas, aos poucos, a autoridade hierárquica dos generais foi se restabelecendo. Os conflitos não desapareceram, mas sumiram dos jornais e dos olhos do mundo civil. No mesmo momento se reafirmou o discurso “oficial” de uma instituição militar “unida e coesa”, sem conflitos políticos internos. Foi essa imagem que a memória coletiva guardou.

Com o golpe de 64, além do papel político, o Exército assumiu tarefas administrativas e econômicas. Houve um pensamento econômico nos quartéis naquele período?
Há, de uma certa forma, mas é muito pouco elaborado. Todos os grupos de oficiais ativistas que estudei se consideram nacionalistas economicamente, e criticam o “entreguismo” dos governos militares contra os quais eles lutam. Mas geralmente não passa de uma postura, sem reivindicações concretas. Não que seja só uma maneira de desqualificar o adversário, pois esses oficiais são convencidos do nacionalismo econômico deles; mas eles não têm a formação nem os contatos para elaborar uma política alternativa àquela do poder.

A separação entre elite militar e setores intermediários deixou marcas nas Forças Armadas?
A elite militar da ditadura, os generais, nascidos em 1900 ou 1910, já morreu; e a jovem oficialidade ativista, que tinha geralmente a patente de major a coronel, está hoje na reserva, com 75, 80, 85 anos. O conflito entre essas duas gerações já é história. Houve rancores, certamente, em particular por parte dos oficiais intermediários mais ativos politicamente, e por essa razão marginalizados pelo poder. Quanto àqueles que fizeram parte do aparelho repressivo, eles nunca perdoaram Geisel e Figueiredo por ter aberto o processo de distensão. Mas o discurso da “revolução traída”, que era a acusação sistemática da época, não aparece mais hoje e as críticas contra os governos militares sucessivos são bem menos violentas. O que aconteceu é que, depois da ditadura, os rancores e atritos entre os ex-golpistas foram cobertos por um discurso consensual sobre a ditadura – que o golpe foi uma “revolução democrática” necessária para salvar o país do comunismo, que a repressão não foi bem repressão, mas uma “guerra suja” contra um inimigo armado e perigoso, que “governos militares” modernizaram e enriqueceram o país etc. – e por um ódio comum de todos os “revanchistas”, na mídia e no mundo universitário em particular. Ou seja, todos os golpistas de ontem se encontram hoje no mesmo campo na “guerra da memória”, e esqueceram numa larga medida os conflitos passados.

Sem o temor do comunismo, o radicalismo de direita das Forças Armadas identifica hoje outro tipo de inimigo preferencial (como os movimentos sociais) ou se volta de forma mais genérica contra o sistema político e a corrupção?
Para responder a essa pergunta, teria que estudar a produção da direita militar hoje, coisa que eu não fiz. Só posso dizer que o pensamento do “inimigo interno” é, desde a formação do Exército brasileiro, imutável e ao mesmo tempo “migrante”: nunca desapareceu, mas identificou ao longo do tempo inimigos diferentes – o separatista, o comunista, o criminal... – com características imaginárias comuns. O inimigo interno divide a nação, está a serviço do estrangeiro e é moralmente condenável. Ora, são características que a direita militar sempre atribuiu também ao mundo político, que dividiria a nação por seus conflitos partidários, seria vendilhão da pátria, corrupto e interesseiro. Na verdade, o inimigo identificado por essa direita militar é sempre o contrário, a imagem no espelho do “militar ideal”, um homem puro, desinteressado, firme, nacionalista...

Como se manifesta e que papel ocupa a "jovem oficialidade radical" de décadas atrás?
Como falei, hoje esses oficiais já estão na reserva. Alguns continuam a militância no Clube Militar, como vimos recentemente, ou em associações políticas, que têm geralmente por objetivo a defesa de uma memória positiva da ditadura. É muito difícil saber quais são suas conexões com o mundo da ativa.

Como a senhora percebe a atual conjuntura do pensamento militar, com o Ministério da Defesa sob comando civil e a presidência ocupada por uma ex-guerrilheira?
O “pensamento militar” em geral é algo dificilmente sondável, no passado como no presente, justamente porque os militares da ativa não são autorizados a adotar publicamente posições políticas. Além disso, não acredito que haja um pensamento militar. Para os oficiais que viveram e apoiaram o golpe e a ditadura, a chegada ao poder da Dilma foi obviamente uma derrota histórica e vista como uma ameaça. Quem é hoje tenente ou capitão e nem era nascido em 1964 não pode ter a mesma perspectiva sobre essa situação. Mas existe claramente uma “cultura institucional”, incluída uma “cultura histórica institucional”, que foi transmitida de geração em geração, e sobre a qual é importante influir democraticamente. Com a abertura de arquivos, a realização de pesquisas sobre o período e a divulgação dos trabalhos da Comissão da Verdade, por exemplo.


"Os setores mais à esquerda foram expulsos das Forças Armadas após o golpe de 1964, e a instituição militar inteira migrou para a direita"

Moralismo e apolitismo e nacionalismo foram instrumentos fortes da ideologia linha-dura. Hoje eles parecem alimentar outros estratos conservadores da sociedade. Há o risco de uma nova onda reacionária baseada naqueles elementos?
É muito difícil dizer. Essa cultura política, autoritária, que não foi sempre nacionalista, existe no Brasil desde o início do século 20. Ela, em si, não provoca golpes de Estado e ditaduras. Mas me parece que o desprezo radical pelo mundo político, por ser considerado inerentemente corrupto, fraco e interesseiro – que eu não chamaria de “apolitismo”, mas de uma cultura “antipolítica civil” –, fragiliza qualquer democracia.

O conhecimento sobre o pensamento político do Exército é relativamente recente no Brasil e vem sendo estudado a partir de novas fontes, muitas delas ainda secretas. O que falta pesquisar sobre as Forças Armadas e sua participação na história brasileira contemporânea?
Falta pesquisar muita coisa, pois por enquanto há pouquíssimos arquivos liberados. Só sobre o período do regime militar, que conheço melhor, precisamos de arquivos para poder pesquisar as conexões entre facções militares e grupos ativistas civis, a integração da participação ao aparelho repressivo nas carreiras profissionais dos militares, e a evolução da formação dos militares no pós-ditadura, entre outras coisas.

A ditadura civil-militar (Daniel Aarão Reis)

Tornou-se um lugar comum chamar o regime político existente entre 1964 e 1979 de “ditadura militar”. Trata-se de um exercício de memória, que se mantém graças a diferentes interesses, a hábitos adquiridos e à preguiça intelectual. O problema é que esta memória não contribui para a compreensão da história recente do país e da ditadura em particular.

É inútil esconder a participação de amplos segmentos da população no golpe que instaurou a ditadura, em 1964. É como tapar o sol com a peneira.

As marchas da Família com Deus e pela Liberdade mobilizaram dezenas de milhões de pessoas, de todas as classes sociais, contra o governo João Goulart. A primeira marcha realizou-se em São Paulo, em 19 de março de 1964, reunindo meio milhão de pessoas. Foi convocada em reação ao Comício pelas Reformas que teve lugar uma semana antes, no Rio de Janeiro, com 350 mil pessoas. Depois houve a Marcha da Vitória, para comemorar o triunfo do golpe, no Rio de Janeiro, em 2 de abril. Estiveram ali, no mínimo, a mesma quantidade de pessoas que em São Paulo. Sucederam-se marchas nas capitais dos estados e em cidades menores. Até setembro de 1964, marchou-se sem descanso. Mesmo descontada a tendência humana a aderir à Ordem, trata-se de um impressionante movimento de massas.

Nas marchas desaguaram sentimentos disseminados, entre os quais, e principalmente, o medo, um grande medo.

De que as gentes que marcharam tinham medo?

Tinham medo das anunciadas reformas, que prometiam acabar com o latifúndio e os capitais estrangeiros, conceder o voto aos analfabetos e aos soldados, proteger os assalariados e os inquilinos, mudar os padrões de ensino e aprendizado, expropriar o sistema bancário, estimular a cultura nacional. Se aplicadas, as reformas revolucionariam o país. Por isto entusiasmavam tanto. Mas também metiam medo. Iriam abalar tradições, questionar hierarquias de saber e de poder. E se o país mergulhasse no caos, na negação da religião? Viria o comunismo? O Brasil viraria uma grande Cuba? O espectro do comunismo. Para muitos, a palavra era associada à miséria, à destruição da família e dos valores éticos.

É preciso recuperar a atmosfera da época, os tempos da Guerra Fria. De um lado, os EUA e o chamado mundo livre, ocidental e cristão. De outro, a União Soviética e o mundo socialista. Não havia espaço para meios-termos. A luta do Bem contra o Mal. Para muitos, Jango era o Mal; a ditadura, se fosse o caso, um Bem.

No Brasil, estiveram com as Marchas a maioria dos partidos, lideranças empresariais, políticas e religiosas, e entidades da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), as direitas. A favor das reformas, uma parte ponderável de sindicatos de trabalhadores urbanos e rurais, alguns partidos, as esquerdas. Difícil dizer quem tinha a maioria. Mas é impossível não ver as multidões — civis — que apoiaram a instauração da ditadura.

A frente que apoiou o golpe era heterogênea. Muitos que dela tomaram parte queriam apenas uma intervenção rápida, brutal, mas rápida. Lideranças civis como Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Adhemar de Barros, Ulysses Guimarães, Juscelino Kubitschek, entre tantos outros, aceitavam que os militares fizessem o trabalho sujo de prender e cassar. Logo depois se retomaria o jogo politico, excluídas as forças de esquerda radicais.

Não foi isso que aconteceu. Para surpresa de muitos, os milicos vieram para ficar. E ficaram longo tempo. Assumiram um protagonismo inesperado. Houve cinco generais-presidentes. Ditadores. Eleitos indiretamente por congressos ameaçados, mas participativos. Os três poderes republicanos eram o Exército, a Marinha e a Aeronáutica. Os militares mandavam e desmandavam. Ocupavam postos no aparelho de segurança, nas empresas estatais e privadas. Choviam as verbas. Os soldos em alta e toda a sorte de mordomias e créditos. Nunca fora tão fácil “sacrificar-se pela Pátria”.

E os civis? O que fizeram? Apenas se encolheram? Reprimidos?

A resposta é positiva para os que se opuseram. Também aqui houve diferenças. Mas todos os oposicionistas — moderados ou radicais — sofreram o peso da repressão.

Entretanto, expressivos segmentos apoiaram a ditadura. Houve, é claro, ziguezagues, metamorfoses, ambivalências. Gente que apoiou do início ao fim. Outros aplaudiram a vitória e depois migraram para as oposições. Houve os que vaiaram ou aplaudiram, segundo as circunstâncias. A favor e contra. Sem falar nos que não eram contra nem a favor — muito pelo contrário.

Na história da ditadura, como sempre, a coisa não foi linear, sucedendo-se conjunturas mais e menos favoráveis. Houve um momento de apoio forte — entre 1969 e 1974. Paradoxalmente, os chamados anos de chumbo. Porque foram também, e ao mesmo tempo, anos de ouro para não poucos. O Brasil festejou então a conquista do tricampeonato mundial, em 1970, e os 150 anos de Independência. Quem se importava que as comemorações fossem regidas pela ditadura? É elucidativa a trajetória da Aliança Renovadora Nacional — a Arena, partido criado em 1965 para apoiar o regime. As lideranças civis aí presentes atestam a articulação dos civis no apoio à ditadura. Era “o maior partido do Ocidente”, um grande partido. Enquanto existiu, ganhou quase todas as eleições.

Também seria interessante pesquisar as grandes empresas estatais e privadas, os ministérios, as comissões e os conselhos de assessoramento, os cursos de pós-graduação, as universidades, as academias científicas e literárias, os meios de comunicação, a diplomacia, os tribunais. Estiveram ali, colaborando, eminentes personalidades, homens de Bem, alguns seriam mesmo tentados a dizer que estavam acima do Bem e do Mal.

Sem falar no mais triste: enquanto a tortura comia solta nas cadeias, como produto de uma política de Estado, o general Médici era ovacionado nos estádios.

Na segunda metade dos anos 1970, cresceu o movimento pela restauração do regime democrático. Em 1979, os Atos Institucionais foram, afinal, revogados. Deu-se início a um processo de transição democrática, que durou até 1988, quando uma nova Constituição foi aprovada por representantes eleitos. Entre 1979 e 1988, ainda não havia uma democracia constituída, mas já não existia uma ditadura.

Entretanto, a obsessão em caracterizar a ditadura como apenas militar levou, e leva até hoje, a marcar o ano de 1985 como o do fim da ditadura, porque ali se encerrou o mandato do último general-presidente. A ironia é que ele foi sucedido por um politico — José Sarney — que desde o início apoiou o regime, tornando-se ao longo do tempo um de seus principais dirigentes…civis.

Estender a ditadura até 1985 não seria uma incongruência? O adjetivo “militar” o requer.

Ora, desde 1979 o estado de exceção, que existe enquanto os governantes podem editar ou revogar as leis pelo exercício arbitrário de sua vontade, estava encerrado. E não foi preciso esperar 1985 para que não mais existissem presos políticos. Por outro lado, o Poder Judiciário recuperara a autonomia. Desde o início dos anos 1980, passou a haver pluralismo politico-partidário e sindical. Liberdade de expressão e de imprensa. Grandes movimentos puderam ocorrer livremente, como a Campanha das Diretas Já, mobilizando milhões de pessoas entre 1983-1984. Como sustentar que tudo isto acontecia no contexto de uma ditadura? Um equívoco?

Não, não se trata de esclarecer um equívoco. Mas de desvendar uma interessada memória e suas bases de sustentação.

São interessados na memória atual as lideranças e entidades civis que apoiaram a ditadura. Se ela foi “apenas” militar, todas elas passam para o campo das oposições. Desde sempre. Desaparecem os civis que se beneficiaram do regime ditatorial. Os que financiaram a máquina repressiva. Os que celebraram os atos de exceção. O mesmo se pode dizer dos segmentos sociais que, em algum momento, apoiaram a ditadura. E dos que defendem a ideia não demonstrada, mas assumida como verdade, de que a maioria das pessoas sempre fora — e foi — contra a ditadura.

Por essas razões é injusto dizer — outro lugar comum — que o povo não tem memória. Ao contrário, a história atual está saturada de memória. Seletiva e conveniente, como toda memória. No exercício desta absolve-se a sociedade de qualquer tipo de participação nesse triste — e sinistro — processo. Apagam-se as pontes existentes entre a ditadura e os passados próximo e distante, assim como os desdobramentos dela na atual democracia, emblematicamente traduzidos na decisão do Supremo Tribunal Federal em 2010, impedindo a revisão da Lei da Anistia. Varridos para debaixo do tapete os fundamentos sociais e históricos da construção da ditadura.

Enquanto tudo isso prevalecer, a História será uma simples refém da memória, e serão escassas as possibilidades de compreensão das complexas relações entre sociedade e ditadura.


DANIEL AARÃO REIS é professor de História Contemporânea da UFF

quarta-feira, 28 de março de 2012

Um novo retrato de Jango (Paulo Moreira Leite)

Quase meio século depois do golpe de 1964, João Goulart começa a vencer o estereótipo do presidente que só tinha defeitos
.........................................
Os brasileiros deveriam aproveitar o próximo sábado, 31 de março, para uma reflexão histórica. Por uma questão de bom-senso democrático, a data, que marca o 48º aniversário do golpe militar de 1964, foi retirada do calendário das comemorações oficiais. É bom que seja assim. A derrota de 31 de março foi absoluta e completa. Embora seja possível recordar bons números de crescimento econômico e apontar várias medidas que modernizaram o país, a essência da questão é outra. Nenhum país tem o direito de celebrar o fim da própria democracia. É útil, porém, tentar entender o que houve.

É compreensível que até hoje o país não tenha sido capaz de fazer o necessário ajuste de contas com João Belchior Marques Goulart, o Jango. Riquíssimo, por herança e pela competência em multiplicar o patrimônio familiar, Jango foi um dos mais populares políticos brasileiros. Nas eleições de 1955, quando candidatos a vice e a presidente recebiam votos em separado, ele conseguiu 3,5 milhões de votos para vice-presidente, contra 3 milhões conferidos ao titular, Juscelino Kubitschek. Poderia ter sido um candidato competitivo contra o furacão Jânio Quadros, em 1960, se JK não tivesse tido o receio de lançar uma criatura capaz de tornar-se maior que o criador. Herdeiro do PTB por decisão de Getúlio Vargas, Jango coordenou os trabalhos dos sindicalistas e estudiosos que formularam as Reformas de Base, o único programa de um partido brasileiro que se tornou motivo de debates entre os eleitores de cima, de baixo e do meio. Carro-chefe do programa, a reforma agrária era apoiada por 72% da população. Num país rural e de agricultura atrasada, distribuição de terra parecia sinônimo de distribuição de renda.

Jango tinha 42 anos de idade quando assumiu a Presidência, 45 quando a perdeu e 57 quando morreu de infarto no interior da Argentina. Naquele momento, deprimido e preocupado, fazia tratativas para voltar ao Brasil. Em Buenos Aires, o ex-presidente da Bolívia Juan Jose Torres e o general Carlos Pratz, ligado ao presidente Salvador Allende, do Chile, haviam sido assassinados. No Uruguai, a ditadura local prestava qualquer serviço como prova de amizade com a instalada em Brasília, de quem dependia. Depois da morte de Jango, foi preciso pedir autorização ao governo militar para que o corpo fosse enterrado em São Borja, no Rio Grande do Sul. A censura proibiu que emissoras de TV transmitissem reportagens sobre Jango, autorizando somente uma "nota de falecimento", desde que ela não fosse "repetida sucessivamente".

O mistério em torno de Jango diz respeito a seu lugar na história. Com uma unanimidade suspeitíssima, típica de quem busca desdenhar o gaúcho barrigudo, que adorava uísque, mulheres e carne vermelha, além de ser uma chaminé ambulante, aliados e inimigos o descrevem como "fraco", "demagogo", "despreparado", "acomodado" e "incompetente". Como se fosse possível colocar o golpe nas costas de um bode expiatório.

Quando Jango caiu, uma parcela considerável de seus aliados queria fechar o Congresso e convocar uma Constituinte. Outra parcela o considerava moderado demais, um estorvo para o avanço de reivindicações. Os adversários de Jango, que tentaram impedir sua posse, em 1961, depois da renúncia de Jânio, enfim podiam sentir-se vitoriosos. Desde o primeiro dia, articularam um movimento golpista para arrancá-lo do Palácio à força. A Casa Branca, potência que na ocasião era mais que hegemônica nessa parte do mundo, apoiara o golpe com dinheiro, conselhos e, na hora necessária, uma frota de embarcações de guerra.

Jango herdou uma democracia tão enfraquecida que, nos 20 anos anteriores, ocorrera uma tentativa de golpe de Estado a cada triênio. A "incompetência", a "fraqueza" e o "despreparo" do presidente são apenas uma forma de aludir à dificuldade política para remediar a agonia final daquele regime que, na vida real, poucos estavam empenhados em defender. É sintomático que, em 1961, quando três ministros militares anunciaram que não permitiriam a posse de Jango, o país inteiro tivesse reagido como se fosse a coisa mais natural do mundo. Teria sido mesmo, se Leonel Brizola, o então governador do Rio Grande do Sul, não tivesse organizado a resistência com o apoio de generais que comandavam o Exército na região e da própria população civil, que fez fila na porta do Palácio do Piratini, em Porto Alegre, para levar fuzis para casa.

Naquele ponto cruzado da história, Jango sofreu uma derrota decisiva por causa da incapacidade de controlar a economia, num surto inflacionário que alimentava a crise política. O economista Celso Furtado fez um Plano Trienal para tentar arrumar o aparato produtivo, derrubar os preços e retomar o crescimento. Jango nomeou um político conservador, Carvalho Pinto, para assumir o Ministério da Fazenda e acalmar os empresários. Não adiantou. Era preciso convencer os sindicatos a abrir mão de reajustes nos salários num primeiro momento para recuperar os ganhos mais tarde. Isso nunca ocorreu. Jango construíra sua popularidade como ministro do Trabalho de Vargas e era um presidente muito generoso em negociações sindicais. Quando tudo terminou e todos os seus aliados lamentavam a derrota, ele foi acusado pelo líder comunista Luís Carlos Prestes de despertar tendências direitistas no Partido Comunista Brasileiro (PCB) com a distribuição exagerada de concessões "capitalistas".

No Brasil periférico, dependente e agrário dos anos 1960, tomava-se por força do presidente o que era na verdade uma posição de fraqueza. O Estado ruía. Os mesmos adversários que acusaram Jango de provocar a anarquia foram os primeiros a ajudar a produzi-la. Os oposicionistas do governo infiltraram agentes disfarçados entre os militantes de esquerda para ampliar a baderna e produzir, assim, uma sensação dobrada de medo e temor. Nas jornadas do fim do governo, encontravam-se lado a lado militantes do PCB, guerrilheiros em treinamento, sindicalistas do PTB, além de agentes da CIA e do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), órgão que trabalhava contra Jango e transformara o cabo Ancelmo em líder de marinheiros rebelados.

Ao deixar o governo, Jango foi retratado como o mais perfeito político populista, aquele que promete o paraíso, mas entrega menos que o purgatório, não tem propostas consistentes para alcançar o que pretende e tenta vender ilusões que jamais serão atendidas. Trabalhando nessa perspectiva, o professor Octávio Ianni, autor do clássico O colapso do populismo no Brasil, condenou Jango, Vargas e também Juscelino como variantes de um mesmo sistema de governo que manipulava o eleitorado para deixá-lo submetido a "mudanças bruscas, golpes de Estado, oportunidades perdidas". Com um olhar assumidamente marxista, a análise de Octávio Ianni alimentou adversários de Jango à direita e à esquerda. Ianni criticou o "populismo" como um desvio condenável no caminho da revolução socialista.

O drama é que, mesmo cercado por aliados radicais, Jango não era nem pretendia ser um revolucionário, diz o professor Jorge Ferreira, autor de João Goulart, uma equilibrada biografia do presidente. "Chamar Jango de populista é uma forma de despolitizar a discussão. Ele falava em humanizar o capitalismo. Era um político de centro-esquerda, um social-democrata nas condições brasileiras. Pensava numa economia pactuada entre empresários e trabalhadores, onde se respeitaria a propriedade privada, com uma melhor distribuição de renda." Para quem gosta de associar Jango à demagogia mais marota, não custa lembrar que ele colocava a mão no bolso. Incluiu uma de suas grandes fazendas de Mato Grosso no primeiro lote passível de reforma agrária. Para o professor Ferreira, "a crítica permanente ao populismo desqualifica o processo democrático, sugere que o eleitor não sabe escolher corretamente". Não por acaso, afirma Ferreira, "populista é sempre o outro". Mas não um outro qualquer. É o outro que tem votos.

O marechal Castello Branco, que arrebanhou apoio para a queda de Jango na liderança de um movimento que condenava o "populismo carismático", como se dizia na ocasião, proibiu eleições diretas e permaneceu na Presidência até 1967. O governador da Guanabara, Carlos Lacerda, imaginava que o golpe abriria um atalho para ele chegar ao Planalto sem que fosse obrigado a enfrentar adversários melhores de urna. Acabou cassado dois anos depois, da mesma forma que Ademar de Barros, o governador de São Paulo que tinha a mesma ambição. Quando o fim da democracia parecia uma festa, um grupo de generais tentou assumir os governos estaduais.

Entre tantos personagens desastrados, iludidos, destemperados, trapalhões, Jango emerge como o mais triste. Desarticulado, enfraquecido, não foi herói nem político providencial. Chegou a imaginar que se salvaria nos braços das 200 mil pessoas reunidas no comício de 13 de março, no Rio de Janeiro. O plano era fazer dez comícios assim, no país inteiro, para culminar no 1º de maio, em São Paulo. Jango sonhava terminar o mandato. Caiu exatamente um mês antes. O golpe militar tinha pressa. Se Jango sobrevivesse até 1965, a luta política entraria no calendário da sucessão presidencial, em que JK era um nome imbatível. Isso criaria circunstâncias mais difíceis para uma ruptura.

No dia 31 de março, Jango fez movimentos contra o golpe, enquanto eles pareciam úteis. Informado de que uma frota americana estava próxima de Vitória, concluiu que não havia mais o que fazer. Era o lance final de uma convivência tensa e difícil com o governo americano, então numa fase de radicalização com a União Soviética por causa da crise dos mísseis, que deixou o mundo à beira da Terceira Guerra Mundial em 1962.

Durante o governo Jango, as grandes engrenagens da Guerra Fria elevaram o clima de tensão e confronto. Criada pelos EUA como promessa de fomentar na América Latina o desenvolvimento econômico e alternativas democráticas ao regime comunista instaurado por Fidel Castro em Cuba, a Aliança para o Progresso aos poucos abandonou a cláusula que repudiava governos nascidos de golpes de Estado. Passou a tolerar rupturas que beneficiavam os aliados dos EUA e abriram as portas para um ciclo militar no continente.

Ainda em 1962, aceitou-se uma intervenção que mudou o resultado de uma eleição presidencial no Peru. Em 1963, com receio de que a Guatemala fosse governada por um aliado secreto de Fidel Castro, a Casa Branca fechou os olhos para um golpe. No mesmo ano, Juan Bosch, presidente da República Dominicana, foi deposto por militares que o acusavam de cumplicidade com "os comunistas." Em 1962, quando o embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon, pediu ajuda para a oposição brasileira nas eleições legislativas, o presidente John Kennedy autorizou a CIA a contribuir com US$ 5 milhões. Kennedy também deixou registrado nas gravações da Casa Branca seu apoio à conspiração militar contra Jango. No fim de 1963, os programas de ajuda dos EUA ao Brasil foram suspensos. Só recebiam recursos, entregues diretamente, os governadores que faziam oposição a Jango.

Em 31 de março, Jango recebeu por telefone três ofertas para render-se e ficar no cargo, subjugado. Com poucas variações, elas propunham o fechamento do Comando-Geral dos Trabalhadores (CGT) e o abandono do projeto de legalização do PCB, clandestino. Recusou as três. "Jango não quis diminuir-se. Preferiu ser leal aos aliados e aos próprios valores", afirma Luiz Alberto Moniz Bandeira, autor de O governo Goulart. Outros presidentes sul-americanos cederam e foram humilhados. Em 1973, apenas no primeiro ano do mandato, o presidente do Uruguai, Juan Maria Bordaberry, fechou o Congresso e abriu as prisões para adversários. Não foi submisso o suficiente e acabou colocado para fora do cargo em 1976. Na democratização, Bordaberry foi levado ao banco dos réus e condenado a 30 anos de prisão, responsabilizado, entre outras coisas, por 14 assassinatos. Presidente da Argentina entre 1958 e 1962, Arturo Frondizi foi destituído por um golpe de Estado. Ao sair da prisão, envolveu-se em várias conspirações contra a democracia e chegou a apoiar o tenebroso regime de Rafael Videla de 1976, responsável pelo morticínio que traumatiza a Argentina até hoje.

Na comparação entre derrotados, Jango deixou uma lição indiscutível: há circunstâncias em que é melhor perder com a democracia que imaginar que é possível vencer uma guerra contra ela.

FONTE: REVISTA ÉPOCA

A exaustão do método (Carlos Melo)

Engana-se quem, em razão da troca das lideranças no Congresso Nacional, acredita na mudança filosófica do governo federal. Engana-se ainda mais quem, por causa disso, vislumbra rompimento entre Dilma Rousseff e Lula e a engenharia política do governo anterior. Lula segue como o principal conselheiro da presidente e bobagem será procurar fraturas nesse relacionamento. O ex-presidente sabe que aquilo que um dia foi sólido pode perfeitamente desmanchar-se no ar, com o tempo, com o processo, com o uso. O que se passa, portanto, está longe de uma mudança de 180 graus ou coisa que o valha.?

O que há, de fato, é a exaustão natural de um método e de procedimentos que nos trouxeram até aqui, mas que agora sofrem abalos e pedem repactuações. Mais útil, então, será compreender mais esta crise e as eventuais mudanças por ela geradas como o esgarçamento de acordos e relacionamentos firmados no pós-mensalão. Acordos que deram a reeleição a Lula e a sucessão a Dilma; que atraíram o PMDB e contiveram parcelas do PT desde sempre impacientes por, de direito e de fato, assumir o poder - e controlar os meios e dar as cartas.?

O que se exaure é o modelo de governabilidade baseado na conciliação de interesses distintos e divergentes por meio da distribuição de espaços e recursos públicos. Escasseiam esses espaços e recursos e logo se deteriora o pacto. E não há mais a sedução presidencial - de Lula -, a conversa ao pé do ouvido, o receber em palácio, o tapinha nas costas, as metáforas de futebol e as promessas de que tudo se acerta, no futuro. Não é o estilo de Dilma e há mesmo uma impossibilidade: sedução e metáforas não resolvem tudo.?

O presidencialismo de coalizão não é em si um mal; trouxe-nos até aqui, mas sua natureza expansiva e voraz não aceita limites. Oito anos de Lula, um ano e tanto de Dilma e todo o espaço, por diminuto que fosse, foi ocupado e os recursos, consumidos. A corrida das eleições municipais - na busca por maior cacife e melhor colocação em 2014 - aguça contradições e conflitos internos. A oposição é, antes de tudo, interna - a outra, a institucional, praticamente não existe.?

O "é dando que se recebe" de Roberto Cardoso Alves chega ao paroxismo: quando nada mais há para dar, o que se recebe é ressentimento. As fontes secam, as verbas mínguam; os esquemas se esbarram, se confundem e mutuamente se anulam. A política assume sua face de "guerra por outros meios". O mal-estar é óbvio. O Brasil ainda não deu certo. Não o compreende quem não quer.?

Oito anos de Lula, um ano e pouco de Dilma e a base só fez crescer. O triunfalismo estabeleceu-se; o adesismo fundiu-se, agigantou-se e perdeu mobilidade, unidade, organicidade. As margens de ação estreitaram-se, a voracidade naturalmente se transformou em autofagia: os mais vivos comem os menos vivos. Evidencia-se o equívoco: é impossível fugir do Congresso, sonegar-lhe a agenda, evitar a sua pressão. Estratégias individuais assumem lógica coletiva e, por sobrevivência, o Parlamento formaliza sua própria agenda, a negativa!?

O Estado não consegue expandir-se na velocidade do apetite fisiológico. Onde o produto interno bruto (PIB) caminha a passo de cágado e o medo da volta da inflação impõe comedimento fiscal, há escassez e tergiversação: os garçons apenas anotam pedidos. Nesse contexto, Romero Jucá e Cândido Vaccarezza se equilibravam, malabaristas de um jogo lancinante. Mas haja destreza para lidar com tantos marimbondos de fogo.?

No impasse, Jucá viu-se obrigado a escolher o senhor a quem se devotar. Voltou para o leito de Renan Calheiros e José Sarney. Já Vaccarezza atordoado estava e atordoado ficou, caminhando descalço sobre o fio da navalha de um PT dividido. Jucá e Vaccarezza, seus grupos, também saberão a hora de dar o troco.?

Os novos líderes, Eduardo Braga e Arlindo Chinaglia, podem facilitar a interlocução, são sangue novo e promessa de novos ares, têm um estoque de palavras a empenhar. Mas quem representarão? O governo ou as demandas? Dilma resolveu medir forças com a parcela mais voraz, articulada e astuta da base. Dará resultado? Os adversários têm mais paciência e experiência do que a presidente e são também menos pressionados. A voracidade nunca se farta: em vez de atender a ela ou enganá-la, melhor seria eliminá-la.?

Há neste governo, porém, dois problemas crônicos que compõem um verdadeiro enigma: falta-lhe a base coesa e programática, fiel e disposta a defender uma agenda; mas carece também de uma agenda clara e politizada, que aponte rumos e garanta o que se conquistou nos últimos 20 anos; uma agenda capaz de persuadir e/ou coagir a base, dando-lhe coesão e rumo programático. O que vem primeiro, a base ou a agenda??

A despreocupação programática, a inexistência de agenda e a conciliação são terrenos férteis para a corrosão fisiológica. E isso, é claro, compromete qualquer esforço de unir e orientar a base. A capitulação quanto às reformas não apenas implica a fragilização do desenvolvimento econômico, como também fortalece interesses individuais, reafirma o oligarquismo e o status quo. No Brasil de hoje - e isso não é responsabilidade exclusiva da presidente Dilma - há, lamentavelmente, um vazio de criatividade e de ímpeto da liderança. Pragmatismo em excesso é uma praga.?

O círculo é vicioso, do tipo "o ovo ou a galinha". Ou o tal "enigma de Tostines": vende mais porque está sempre "fresquinho" ou o contrário? Provavelmente o biscoito venda porque se acredita que esteja fresquinho - o que faz com que venda mais, mantendo-se fresquinho. A liderança implica reverter o círculo; em algum grau, a crença, a ousadia, projeto e a utopia são imprescindíveis. Duelar com ideias pode ser uma luta vã, mas ao menos mobiliza sonhos e forja caracteres; escreve outra história. Sem isso tudo perde o frescor.

*Cientista político, professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), é autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Desenvolvimentismo e dependência (José Luís Fiori)

Na década de 1960, a crise econômica e política da América Latina provocou, em todo continente, uma onda de pessimismo, com relação ao desenvolvimento capitalista das nações atrasadas. A própria Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal) fez autocrítica, e colocou em dúvida a eficácia da sua estratégia de "substituição de importações", propondo uma nova agenda de "reformas estruturais" indispensáveis à retomada do crescimento econômico continental. Foi neste clima de estagnação e pessimismo que nasceram as "teorias da dependência", cujas raízes remontam ao debate do marxismo clássico, e da teoria do imperialismo, sobre a viabilidade do capitalismo nos países coloniais ou dependentes.

Marx não deu quase nenhuma atenção ao problema específico do desenvolvimento dos países atrasados, porque supunha que a simples internacionalização do "regime de produção burguês" promoveria, no longo prazo, o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas, no mundo dominado pelas potências coloniais europeias. Mais tarde, no início do século XX, a teoria marxista do imperialismo manteve a mesma convicção de Marx, que só foi questionada radicalmente, depois do lançamento do livro do economista, Paul Baran, "A Economia Política do Desenvolvimento", em 1957. Após sua publicação, a obra de Baran se transformou em referência obrigatória do debate latino-americano dos anos 1960. Para Paul Baran, o capitalismo era heterogêneo, desigual e hierárquico, e o subdesenvolvimento era causado pelo desenvolvimento contraditório do capitalismo. Além disto, segundo Baran, o capitalismo monopolista e imperialista teria bloqueado definitivamente o caminho do nos países atrasados.

As ideias de Baran casaram como luva com o pessimismo latino-americano dos anos 1960, e suas teses se transformaram numa referencia teórica fundamental das duas principais vertentes marxistas da "escola da dependência": a teoria do "desenvolvimento do subdesenvolvimento", do economista americano Andre Gunder Frank, que exerceu pessoalmente, uma forte influência no Brasil e no Chile; e a teoria do "desenvolvimento dependente e associado", formulada por Fernando Henrique Cardoso, com o suporte intelectual de um grupo importante de professores marxistas da USP.

A tese de Frank vem diretamente de Paul Baran: segundo Frank, o imperialismo seria um bloqueio insuperável, mesmo com a intervenção do Estado, e o desenvolvimento da maioria dos países atrasados só poderia se dar por uma ruptura revolucionária e socialista. Esta tese de Frank foi sendo matizada por seus discípulos, mas ainda é a verdadeira marca acadêmica internacional da teoria da dependência. Por outro lado, a tese central de FHC já nasceu menos radical: segundo ele, o desenvolvimento capitalista das nações atrasadas seria possível mesmo quando não seguisse as previsões clássicas, mas seria quase sempre, um desenvolvimento dependente e associado a países imperialistas.

O avanço da teoria do "desenvolvimento associado" foi interrompido pelo próprio sucesso político ao se transformar no fundamento ideológico da experiência neoliberal no Brasil, sob liderança do próprio FHC. Com relação a Frank e seus discípulos, ele mesmo "imigrou", nos anos 1980, para outros temas e discussões históricas, e sua teoria do subdesenvolvimento ficou paralisada no tempo, como apenas uma lista de características especificas, estáticas e intransponíveis, da periferia capitalista. Ou quem sabe, uma espécie de teoria dos "pequenos países".

Apesar de tudo, a "escola da dependência" deixou quatro ideias seminais, que abalaram o fundamento teórico do "desenvolvimentismo de esquerda", dos anos 1950:

1) O capital, a acumulação do capital e o desenvolvimento capitalista não tem uma lógica necessária que aponte em todo lugar e de forma obrigatória para o pleno desenvolvimento da indústria e da centralização do capital.

2) A burguesia industrial não tem um "interesse estratégico" homogêneo que contenha "em si", um projeto de desenvolvimento pleno das forças produtivas "propriamente capitalistas".

3) Não basta conscientizar e civilizar a burguesia industrial e financiar a centralização do seu capital para que ela se transforme num verdadeiro "condotieri" desenvolvimentista.

4) Simples expansão quantitativa do estado não garante um desenvolvimento capitalista industrial, autônomo e autossustentado.

O que chama a atenção é que até hoje, o "desenvolvimentismo de esquerda" não tenha conseguido se refazer do golpe, nem tenha conseguido construir uma nova base teórica que possa dar um sentido de longo prazo à suas intermináveis e inconclusivas deblaterações macroeconômicas e ao seu permanente entusiasmo pelo varejo keynesiano.

José Luís Fiori é professor titular do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ, e autor do livro "O Poder Global", da Editora Boitempo, 2007

FONTE: VALOR ECONÔMICO

terça-feira, 27 de março de 2012

Hartung como unanimidade e a realidade das pesquisas

Quem procurar formar opinião sobre a política capixaba pela leitura das colunas políticas da mídia local não vai conseguir entender nada dessa pesquisa publicada no domingo em A Tribuna.

Afinal, prá quem forma opinião pelos nossos cronistas, o ex-governador faz e acontece na política capixaba, pinta e borda, põe e dispõe. É a unanimidade que decide de antemão uma eleição, especialmente a de Vitória.

Diariamente, nossos cronistas gastam os seus espaços especulando em cima do "se", tentando decifrar o "enigma" dessa esfinge capixaba, vão enrrolando o leitor sobre as idas e vindas da possível candidatura. Vendem a idéia de que o processo só deslancha e é para valer depois das definições do líder e que outras possíveis candidaturas apenas fazem o papel de figurantes enquanto ele busca o momento certo da definição.

Pois é, se o nosso ex-governador é o fenômeno eleitoral que é, o que deveríamos esperar dos resultados de uma pesquisa de intenções de voto? Avassaladores números, coisas na casa de 65 a 75% das preferências dos eleitores em pergunta estimulada. Tivemos isso, por ex, com Vidigal na eleição passada na Serra

Mas, ao se debruçar sobre os números da pesquisa Enquet/Tribuna uma supresa de "pirar a cabeça" das velhinhas de Taubaté. Na intenção de voto espontânea, PH tem 9,7% das intenções de voto. Como? Se o nome é a unanimidade, como explicar esse número?

PH com 9,7%. Menos que Neucimar Fraga em Vila Velha na pesquisa Futura/Gazeta. Neucimar, que carrega a marca de gestor com a pior avaliação na Grande Vitória, tem 11% das intençoes de voto. Menos que Max Filho, com tres anos na planicie e sem caneta para nomear ou máquina para usar.

Nossos analistas vivem afirmando que outras possíveis candidaturas não tem a mínima possibilidade se a candidatura de PH fosse colocada. Será que o eleitor concorda?
Para confundir a cabeça da Velhinha de Taubaté, os números da espontânea mostram os nomes escolhidos pelos entrevistados embolados e em situação de empate técnico. PH, com 9,7% e Luiz Paulo, com 7,9%. João Coser, tambem em fase de profundo desgaste e avaliação em baixa, aparece com 6,4% (E olha que Coser não é candidato).

Na pesquisa estimulada nenhum fenômeno eleitoral a vista. Os 36% obtidos por PH não são nenhuma brastemp. Álias, para quem ocupou o poder durante 8 anos, sem crítica ou contestação e saiu sob o discurso da unanimidade são números frustantes.
Especialmente, se considerarmos que Luiz Paulo Vellozo Lucas e Luciano Rezende, somados, também atingem o patamar de 36%. Mais do que um palanque único, o eleitor de Vitória aponta para uma eleição acirradamente disputada no 1º turno.

Como falei no ínicio: quem se fia nos comentários de nossos colunistas e na louvação permanente a unanimidade do ex-governador não consegue entender bem esses números.
Mais do que análise, esforço de tentar construir a imagem desejada por PH, que só falta ser transformado em nosso El Rei Dom Sebastião e o eleitorado capixaba em uma massa milenarista de Sebastianistas. Para refrescar a memória e ajudar os nossos cronistas reais nas denominações possíveis em seus artigos, Dom Sebastião ficou conhecido como O Desejado; alternativamente, é também memorado como O Encoberto ou O Adormecido, devido à lenda que se refere ao seu regresso numa manhã de nevoeiro, para salvar a Nação.

Mas deixando de lado messianismos ou crenças milenaristas, tudo isso lembra aquela velha história de Garrincha. Estratégias definidas e explicadas e a pergunta: já combinaram com os russos?
No nosso caso, os russos são os eleitores; será que os estrategistas e nossos cronistas já combinaram com os eleitores?

domingo, 25 de março de 2012

Política Vila Velha: entrevista Antonio Claudino de Jesus

Essa entrevista com Antonio Claudino de Jesus é leitura obrigatória.
Claudino Jesus é uma referência do campo democrático do ES como exemplo de compromisso com um projeto de esquerda revisitado e reatualizado
Claudino faz parte de uma geração que teve papel crucial no processo da reconstrução do DCE/UFES no contexto da luta pela conquista da democracia. Infelizmente, hoje, parte dessas lideranças forjadas na luta democrática, ao ocupar papéis de centralidade na elite política passam a compor o campo do que pode se denominar a NOVA DIREITA do ES.
Para essas lideranças, a passagem pela esquerda pode ser explicada como arroubos da juventude. Hoje, em palestras, debates ou postagens nas redes sociais, buscam justificar a negação do passado no fracasso do socialismo como projeto de organização da sociedade e a ineficácia do marxismo para explicar a contemporaneidade ou como teoria "fora de moda", como se ideologia fosse uma coisa de moda.
Nada a estranhar, no contexto de um sistema constituído por partidos invertebrados ideológicos, em que valores e convicções são sacrificados no altar dos interesses espúrios, em que o pragmático se sobrepõe ao programático, e que em nome de uma concepção equivocada de governabilidade se reduzem as relações políticas a relações de clientelismo, fisiologismo e corporativismo.
Mas é na gestão estatal é que essa NOVA DIREITA pode ser percebida. Mas o problema e que essa nota de apresentação da entrevista ficou longa demais.

http://www.seculodiario.com.br/exibir_not.asp?id=57222

quinta-feira, 22 de março de 2012

O PT como condutor da expansão burguesa (Luiz Werneck Vianna)

Dilma Rousseff é uma grande racionalizadora, uma grande administradora. “A política não é o ramo dela”, constata o sociólogo. Ao avaliar o primeiro ano do governo Dilma Rousseff, o sociólogo Luiz Werneck Vianna defende que as questões que importam para a presidente são as de estado e de economia, de gestão, de racionalização. “Ela é muito desatenta em relação a esses problemas de tornar o governo mais poroso, mais próximo dos movimentos sociais, atraindo-os para o Estado e daí exercendo sobre eles uma tutela. A ênfase do governo Dilma é economia de gestão, racionalização”.

Werneck não concebe a ideia de que Dilma traia o mandato de Lula. “Ela procura ser fiel. O problema é que não é fácil ser fiel, pois ela é diferente dele”. Na entrevista a seguir, concedida por telefone para a IHU On-Line, o professor-pesquisador da PUC-Rio aposta no ressurgimento da política nos próximos anos com muita força. “Não há mais possibilidade de segurar a sociedade com esse jogo de manter os contrários em permanente equilíbrio”.

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, é autor de, entre outros, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002).

O senhor percebe a marca do chamado “coronelismo” na coalizão de governo com ministros oriundos de oligarquias?

Essa não seria uma designação adequada. O que ocorre é que os remanescentes desse sistema de controle político, que teve vigência durante décadas, estão ressurretos entre nós através da coalizão que o governo faz com os setores vinculados a práticas retardatárias e a formas de propriedade, especialmente o latifúndio, que predominaram e ainda predominam em boa parte do país, principalmente no Nordeste.

Por que o Brasil não consegue romper com as forças conservadoras e atrasadas? O senhor percebe a necessidade delas?

Não vejo como necessidade para a boa governança do país, mas isso é resultado de um cálculo. Para se dar um passo é preciso recuar dois, especialmente se olharmos para a agenda comportamental. E hoje é um dia especial (dia 8 de março, dia internacional da mulher), para pensar nas questões referentes a comportamento, a mulher mesmo e a questão do aborto. Nisso não se avança, não se discute. Não é a questão de ser ou não a favor do aborto. Pelo contrário, trata-se de uma prática de saúde pública que está levando à morte milhares de mulheres que são mal atendidas.

Como conciliar a cobrança de Dilma de postura republicana dos seus ministros num governo com figuras que se formaram politicamente em ambientes onde se pratica o patrimonialismo e o clientelismo como regras do jogo?

Essa é uma contradição. É difícil, porque são atitudes, comportamentos, expectativas republicanas que não são compatíveis com as formas como esses homens foram treinados, socializados e chegaram à política. E eles fazem política da forma mais tradicional. Não obstante, estão sendo mobilizados para realizar agendas modernas. Dilma escolhe apenas por cálculo político, para ter maioria governamental.

Há limites para a coalizão de governo?

Devem existir. As coalizões devem ser programáticas e não de oportunidade e instrumentais como são essas nossas. Na verdade, o governo acha que representa o moderno e os interesses gerais da nação e qualquer acordo que ele faça com a tradição, com o atraso, com o patrimonialismo, com o clientelismo não importa.

O PT guarda ainda alguma inovação para a política nacional ou rendeu-se ao pragmatismo?

Ele se rendeu. Mas há coisas importantes ainda no PT, que trouxe inovações, arejou e aproximou os movimentos sociais do governo, da administração, além de ter uma política muito atualizada e amável com a vida sindical. Os sindicatos têm uma participação importante ainda, não tanto no governo Dilma como tiveram no governo Lula, mas ainda têm alguns elementos característicos disso. Isso tudo são registros a serem feitos na agenda que o PT tem cumprido até aqui. O que ele perdeu foi o elã, a inspiração, o vínculo com as suas origens, com as suas grandes expectativas de produzir uma transformação no país. Na verdade, o PT se tornou uma força condutora da expansão burguesa no Brasil.

Em outras entrevistas o senhor sempre reiterou que o governo Lula havia cooptado os movimentos sociais, trazendo-os para dentro do Estado. Como está a situação levada por Dilma neste primeiro ano de governo?

Isso persiste, mas com uma atenuação, visto que com Lula esse processo avançou muito. As questões que importam para Dilma são as de estado e de economia, de gestão, de racionalização. Ela é muito desatenta em relação a esses problemas de tornar o governo mais poroso, mais próximo dos movimentos sociais, atraindo-os para o Estado e daí exercendo sobre eles uma tutela. É uma questão que existe, que continua, mas não é a ênfase do governo Dilma. A ênfase do governo Dilma é economia de gestão, racionalização.

Em que sentido podemos ver a marca da racionalização no governo Dilma?

Nesse sentido, ela vem merecendo o qualificativo de “gerentona”, a gerente do Brasil como empresa, como negócio e não como sociedade. O que traduz de forma mais incisiva é a natureza desse governo tendo como seu sistema fundamental de orientação o aprofundamento e a expansão da ordem burguesa no país. Daí os movimentos sociais estão articulados com o Estado, cooptados, os sindicatos não deixam de estar também jurisdicionados pelas políticas governamentais. A sociedade se deixa levar na medida em que a taxa de emprego está bastante razoável e os negócios prosperam. No entanto, a sociedade está órfã politicamente.

Em que medida Dilma difere de Lula em relação aos direitos humanos e aos sindicatos?

Em relação aos direitos humanos, a posição dela difere positivamente. De qualquer forma, o mundo que ela pegou é diferente do mundo de Lula. Esse era anterior à Primavera Árabe e a todos os acontecimentos depois deste grande acontecimento que ainda persiste. Dilma se aproximou de uma agenda de direitos humanos bem mais moderna e atualizada do que a de Lula. O que não quer dizer que ela tenha rompido, mas ponderou algumas ênfases do governo Lula. Em relação aos sindicatos, não é o estilo dela. Ela não veio desse mundo. Ela veio aí do Rio Grande do Sul, da administração pública. A carreira de Dilma é de gestora. Lula fez uma carreira na sociedade civil, de líder sindicalista, que sabe falar e sabe qual é a linguagem própria a ser usada. De qualquer forma, ele tinha uma proximidade forte com os pleitos sindicais e se reunia com eles quase que entre iguais. Já a Dilma delega isso. Não concebo a ideia de que Dilma trai o mandato de Lula. Ela procura ser fiel. O problema é que não é fácil ser fiel, pois ela é diferente dele.

Mas por que o senhor afirma que Dilma cada vez mais é constrangida à infidelidade?

Independentemente do sistema de valores dela, as circunstâncias atuais a obrigam a inflexões e mudanças, mesmo que elas não sejam lá muito compatíveis com o espírito e o sentido do que preponderou no governo Lula.

Como o senhor define a “cara própria” do governo Dilma?

Dilma é uma grande racionalizadora, uma grande administradora. A política não é o ramo dela.

O que marca a guinada introduzida por Dilma no presidencialismo de coalizão brasileiro? Como seria uma coalizão mais programática?

Essa guinada ela não fez nem ameaça fazer. As marcas visíveis, evidentes até então, são de que ela persiste no modelo anterior. Não é fácil erradicar, é preciso ter coragem política para erradicar. Importaria ter um programa de reformas real. Mas o que vemos é um governo dividido em todas as questões. Por exemplo, a reforma trabalhista: os empresários a querem, os sindicatos não. Tanto empresários como sindicatos estão dentro do governo.

Outro exemplo é a reforma do Código Florestal: a oposição entre o agronegócio e os ambientalistas é mortal. Os dois lados estão dentro do governo, assim como está também a estrutura da propriedade familiar. Como resolver isso? É um ministério para um, um ministério para outro, e assim vão se criando essas composições. Vejo que a reforma previdenciária, que parece que Dilma vai fazer, é algo que vai repercutir, por ser uma questão sensível e pelo fato de o PT ser um partido mais “funcionário público” do que qualquer outra coisa. A questão promete ser dolorosa. Não sei o quanto de dor, mas alguma dor isso acarretará.

A situação de Dilma também é delicada em relação à bancada evangélica no Congresso...

Isso. De um lado ela é libertária e de outro está comprometida com o que há de mais recessivo em matéria comportamental na sociedade brasileira. Para onde ela vai? Quer aprofundar o moderno ou quer fazer com que o moderno só passe? Imagino daqui para frente um quadro de muita exasperação da política. Na questão dos funcionários públicos, na questão do meio ambiente, na questão militar já há indícios disso, bem como na questão agrária e na questão sindical. A política tende a ressurgir nos próximos anos com muita força. Não há mais possibilidade de segurar a sociedade com esse jogo de manter os contrários em permanente equilíbrio. Uma hora dessas, assim como no número das varetas no circo, isso vai cair, o equilibrista perde o controle. Não estou anunciando agonias. Estou dizendo apenas que a sociedade não vai ficar com essa ausência de movimentação que hoje a tem caracterizado. Isso vai se energizar. Há indicações fortes na vida associativa de robustecimento dela, o que tende a se generalizar de forma autônoma, sem vínculos com o Estado.

O senhor aposta em iniciativas como o movimento dos indignados, ou o Ocupe Wall Street, por exemplo?

Cada forma de protesto tem a sociedade que merece. Não sei se vamos chegar a ações desse gênero. Estou falando de coisas mais tópicas, mais localizadas. Por exemplo, está muito difícil manter a força sindical dentro do governo do jeito que as coisas se encontram.

FONTE: IHU ON-LINE & GRAMSCI E O BRASIL.

quarta-feira, 21 de março de 2012

“18 de brumário” de Luis Inácio Lula da Silva (Chico de Oliveira)

Para Francisco de Oliveira, o governo Dilma é a amostra da impossibilidade de manter-se, no longo prazo, o tipo de conciliação ampla dos dois mandatos do governo Lula
“A sociedade brasileira é cada vez mais complexa para que seus interesses contraditórios sejam envelopados numa fórmula carismática”. “As chamadas qualidades da presidente (Dilma) têm sido consumidas no ‘apagar fogo’ de uma coalizão que não tem qualquer identidade programática”. Essas são algumas das ideias que o professor Francisco de Oliveira esboçou ao refletir sobre o primeiro ano do governo Dilma a partir de uma série de questões enviadas a ele pela IHU On-Line. O professor preferiu respondê-las resumidamente, em um bloco único, e enviou por e-mail o texto que segue.

Francisco de Oliveira formou-se em Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia da Universidade do Recife, atual Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. É professor aposentado do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo – USP.

Confira o comentário.

O governo Dilma é a amostra da impossibilidade de manter-se, no longo prazo, o tipo de conciliação ampla dos dois mandatos do governo Lula. A sociedade brasileira é cada vez mais complexa para que seus interesses contraditórios sejam envelopados numa fórmula carismática. Já as dificuldades da candidatura Haddad estão demonstrando que Lula não é o mago que ele mesmo acredita ser e sua segunda clonagem tem todas as chances de falhar estrondosamente. Daí Dilma ter que demitir, ou aceitar a renúncia de uma quantidade de ministros que, no todo, daria para formar um time de futebol: o time Dilma. E todos não foram por corrupção, como é anunciado. Nelson Jobim não saiu do governo por corrupção, mas porque sua opção de interesses se compatibiliza mais com Serra do que com Lula/Dilma. Daí, Dilma não é propriamente inábil, ou trator, ou faxineira. É que Lula abafou e conciliou numa escala que não dá para manter por muito tempo.

Quanto à política econômica, Dilma mantém o mesmo ritmo, as mesmas opções que, aliás, estão aí desde Fernando Henrique Cardoso. Lula mesmo não mudou nada das orientações neoliberais de FHC; apenas injetou mais dinheiro no BNDES, seguindo assim, as orientações da Economia da Unicamp, da qual Luciano Coutinho é um dos mais representativos: fazer as empresas brasileiras serem internacionais, atuando fortemente para fora, e não para dentro.

Quanto à classe trabalhadora, Lula foi uma espécie de Bonaparte : enquanto exportava a Revolução Francesa na ponta de suas baionetas, Bonaparte arrasou com o ímpeto revolucionário interno da Revolução Francesa, anulando o poder da novel classe trabalhadora francesa. Lula foi um Bonaparte reduzido, ou seu governo foi um “18 de brumário” de Luis Inácio Lula da Silva. A classe trabalhadora, por suas frações organizadas, não apita nada neste governo, como consequência da anulação de seu poder de classe operado por Lula da Silva.

Enquanto isso o Bolsa Família representa exatamente essa anulação: estendendo um pequeno subsídio para a subsistência dos mais pobres, ele anulou o poder reivindicatório das frações organizadas da classe. Na verdade, isso é o que se pode dizer do primeiro ano do governo Dilma. As chamadas qualidades da presidente têm sido consumidas no “apagar fogo” de uma coalizão que não tem qualquer identidade programática, e por isso seu governo pode ser chamado de “governo de combate ao fogo amigo”.

FONTE: IHU –On-Line

A arte política de incorporar o atraso sem prejudicar o progresso (Marco Aurélio Nogueira)

Para Marco Aurélio Nogueira, quanto mais democrático, republicano e sensível o governo for, mais chance teremos de ele ser uma espécie de líder da sociedade para o ataque aos problemas sociais que são os mais dramáticos hoje

Por: Graziela Wolfart

Para Marco Aurélio Nogueira, Dilma Rousseff “dedicou 2011 a fazer um estudo de como converter um modo político popular de governo em um modo mais técnico e político. Lula governou de um modo político popular. Ela, por estilo, por opção, por personalidade, quer fazer um governo que tenha uma natureza mais técnico-política, que se preocupe mais com gestão, com controle e com o caráter de políticas, coisas que aconteciam no governo Lula, apesar dele”. Em entrevista concedida por telefone para a IHU On-Line ele afirma que “deveriam existir limites programáticos, éticos, políticos, mas o sistema em que se vive no Brasil torna muito difícil a obediência a esses limites, de modo que a coalizão acaba sendo tão necessária para os governos que acabam aceitando como parceiros tudo aquilo que está disponível, e não aquilo que é selecionado em função de critérios políticos, programáticos. Daí fica-se até em dúvida para saber quem é oposição e quem é situação”.

Marco Aurélio Nogueira é doutor em Ciência Política, pela Universidade de São Paulo – USP. Obteve o título de pós-doutor na Università degli Studi La Sapienza, em Roma. Atualmente é professor da Unesp. Também é autor de Um Estado para a sociedade civil: temas éticos e políticos da gestão democrática (São Paulo: Cortez Editora, 2005) e Em defesa da política (São Paulo: Editora Senac, 2005), entre outras obras.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De forma geral, como avalia o primeiro ano do governo Dilma?

Marco Aurélio Nogueira – O primeiro ano foi de transição e de tentativas de ajuste do governo às características políticas de Dilma. Ela procurou usar o primeiro ano do mandato para fazer com que o governo tivesse a “cara” dela. Dilma recebeu uma espécie de legado dos oito anos do governo Lula. E isso acabou, por um lado, facilitando a sua vida, já que ganhou a eleição, de certa maneira, beneficiada também por esse fator, e, por outro lado, acabou por comprometer um pouco da sua movimentação, já que o “legado Lula” é pesado, não é só de coisas boas. Não que tenham sido transferidos para ela muitos problemas, mas foi transferido para ela o carisma de Lula. Esperava-se que ela fosse o “Lula de saias”, como muitas vezes se fala. Ela não teve condições de governar segundo um “modo Dilma de ser”. Está tentando isso ainda. O primeiro ano foi um período que ela usou para testar um pouco os espaços que tem para esse tipo de movimento. Ela dedicou 2011 a fazer um estudo de como converter um modo político popular de governo em um modo mais técnico e político. Lula governou de um modo político popular. Ela, por estilo, por opção, por personalidade, quer fazer um governo que tenha uma natureza mais técnico-política, que se preocupe mais com gestão, com controle e com o caráter de políticas, coisas que aconteciam no governo Lula, apesar dele.

IHU On-Line – O “coronelismo”, tal qual interpretado na transição dos séculos XIX e XX, já não existe, mas continua presente até os dias de hoje como se vê na coalizão de governo em que ministros são oriundos de oligarquias. Por que o Brasil não consegue romper com as forças conservadoras e atrasadas? Elas são necessárias para se governar o país?

Marco Aurélio Nogueira – São necessárias e importantes na vida do país. O que nós chamamos de atraso tem que ser incorporado às práticas de governo para que a democracia não corra o risco de ver crescer, em uma de suas margens, qualquer obstáculo para o prosseguimento do processo democrático. É preciso incorporar tudo, falando de forma mais abstrata. A política de estado tem que ser um movimento de incorporação. O próprio sistema democrático tem regras para fazer isso. Entendo o processo político como um movimento de inclusão. A questão é saber como se incorporam forças atrasadas e conservadoras sem prejudicar as forças progressistas. Esse é um jogo difícil de ser resolvido teoricamente. É operação política do dia a dia e que passa pela habilidade do governante. Essa é uma questão que está posta no Brasil desde sempre. Nossa forma de progredir tem uma marca particular, que é justamente a de ter sido feita sem o esmagamento ou a neutralização radical das forças conservadoras. Sempre incorporamos as forças conservadoras mediante a atenuação das reformas. Mesmo assim nós progredimos, ou seja, não foram as concessões que impediram o progresso; elas apenas o condicionaram.

Coronelismo

Acho que nós não temos mais uma situação coronelista no Brasil. O coronelismo é um arranjo entre o poder público e o poder privado de certos latifundiários; e um pacto desse tipo acabou por facilitar uma série de coisas no Brasil. Mas esse processo acabou. Os políticos conservadores, que têm força no Estado brasileiro, não são coronéis. Eles são outra coisa. Podemos dizer que eles, de certa maneira, privatizam o espaço público, a política estatal e o governo, ocupando espaços indevidos. E fazem isso por conta da força econômica e eleitoral que têm. Mas aí temos muita gente que faz o mesmo tipo de operação. Temos ministros que não são oriundos de oligarquia e que são tão nefastos para a vida governamental e democrática quanto os que são. Essa ocupação indevida e essa presença de forças que não são propriamente republicanas na vida do governo é algo que vai além do conservadorismo. E o conservadorismo que está presente nessas posições oligárquicas não tem sido capaz de impedir o progresso do Brasil.

IHU On-Line – Há limites para a coalizão de governo?

Marco Aurélio Nogueira – Deveriam existir limites, e eles até existem, mas são tênues, fracos, sem uma linha demarcatória clara. Tudo está sendo possível. E isso vem lá de trás. Tem a ver com o governo Dilma, com o governo Lula, com o governo Fernando Henrique. Todos eles tiveram muitas dificuldades e, até certo ponto, perderam essa briga no que diz respeito a fixar limites para a coalizão. Não conseguiram. Penso que deveriam existir limites programáticos, éticos, políticos, mas o sistema em que se vive no Brasil torna muito difícil a obediência a esses limites, de modo que a coalizão acaba sendo tão necessária para os governos que acabam aceitando como parceiros tudo aquilo que está disponível, e não aquilo que é selecionado em função de critérios políticos, programáticos. Daí fica-se até em dúvida para saber quem é oposição e quem é situação.

IHU On-Line – Isso não acaba enfraquecendo os partidos?

Marco Aurélio Nogueira – Lógico que acaba! É uma coisa muito louca isso. Enfraquece, mas, ao mesmo tempo, é o oxigênio que os partidos precisam para continuar vivos. Uma dimensão é a lógica do governo, que precisa dos partidos para ganhar maioria, ter condições de aprovar projetos, ganhar a chamada governabilidade. Por outro lado, os partidos também precisam das alianças, da coalizão, porque, no Brasil, eles se tornaram muitos estatalizados, muito pouco societais, ficando muito dependentes do controle de determinados recursos que são dados pelas posições de governo. Um partido que não tem controle de certos recursos políticos perde competitividade na sociedade, e nem precisa ser necessariamente na escala federal. Por exemplo, o PSDB está fora do governo federal há dez, 12 anos, no entanto, ele controla alguns governos estaduais e acaba detendo controles políticos importantes. No caso de partidos que se preocupam de modo particularmente forte com valores, programa, identidade, esse modo de fazer coalizão é uma tragédia. No caso do PT, na medida em que ele se entregou a esse jogo de coalizão, perdeu muito em termos do que pretendia ser quando surgiu.

IHU On-Line – Nesse sentido, o PT perdeu a capacidade de inovação?

Marco Aurélio Nogueira – Perdeu a capacidade de inovação tanto para a política do governo como para ele enquanto partido. O PT não se renovou, pelo contrário, estagnou. E se tornou um partido igualzinho aos outros, que não coloca mais como ponto de honra ser diferente. Mas tudo bem. Nunca achei que os partidos têm que ser diferentes. O ideal seria que todos os partidos fossem igualmente criteriosos, com programas, mesmo que uns fossem de direita e outros de esquerda. O ruim é quando todos se transformam nessa pasmaceira que estamos vendo. As diferenças não aparecem de maneira interessante e rica no debate público. O PSDB também se prejudicou com isso. Mas ele tem a característica histórica de ser um partido socialmente fraco, sem muitas pretensões. Já o PT tinha a pretensão de ser um partido social, com militância, bases, capilaridade, com gente que não tem cargo, mas que faz política. Enquanto que o PSDB sempre quis ser um partido com algumas pessoas especiais, qualificadas.

IHU On-Line – Quais seriam as possíveis soluções democráticas consistentes para os problemas que estão emergindo no Brasil atual? O que podemos esperar do governo Dilma nesse sentido?

Marco Aurélio Nogueira – Podemos esperar muita coisa do governo Dilma, sobretudo porque ela está se propondo (pode ser que ela não consiga) a dar um maior valor à dimensão técnica, gerencial no seu governo. Isso pode ajudar o governo Dilma a ganhar um posicionamento bom no país, levando em conta o fato de ser a Dilma quem é e do PT ser quem é. No entanto, não será um governo tecnocrático. Será um governo com maior preocupação técnica, o que pode ser um recurso importante para se ter uma política democrática. O grande problema que temos é o social, no sentido da desigualdade de renda. Isso exige uma solução que seja maior do que as políticas assistencialistas que têm sido feitas nos últimos anos, e aqui estou me referindo basicamente ao Bolsa Família, que foi o grande fator do qual se obteve ganho em termos de inclusão social no Brasil recentíssimo. O outro lado foi da política de crédito, que aumentou o poder de consumo das pessoas. Tanto uma (o Bolsa Família) como a outra (o crédito popular) não podem ser políticas de voo longo. A política de crédito tem um risco muito grande de ser suicida, porque ela pode, dependendo de como o resto vai andar, levar o tomador de empréstimo à inadimplência. Dessa forma, torna-se a pior solução de todas, porque não só o cidadão não terá mais crédito como também ficará com uma dívida que não conseguirá pagar.

IHU On-Line – Principalmente por causa dos prazos longos...

Marco Aurélio Nogueira – Exatamente. Para se obter um bom financiamento, prolonga-se o prazo: 60 meses, dez, 20 anos. Hoje em dia não se pode dizer que daqui a um ano vai dar para continuar pagando um empréstimo feito. Isso falando de uma pessoa que não tem muita “bala no revólver” para se jogar no mercado financeiro (estou “me lixando” para os que têm). Para quem ganha pouco, trabalhar com empréstimo e financiamento é complicado, visto que o emprego é instável e, de repente, numa virada econômica qualquer, pode perder o emprego. Esse é um critério do mundo em que vivemos. Todo mundo passou a ter empregos flutuantes. Pode ter hoje, não ter amanhã; não se tem muita margem de segurança. E a política assistencial também é assim, porque até quando o governo vai continuar transferindo X milhões de reais para os necessitados? Uma hora isso vai bater no teto também. E será preciso financiar o Bolsa Família. O melhor que os governos podem fazer é se comportar democraticamente. As soluções democráticas que podem vir do governo têm a ver com a conduta democrática dele. Quanto mais democrático, republicano, sensível o governo for, mais chance teremos de ele ser uma espécie de líder da sociedade para o ataque aos problemas sociais que são os mais dramáticos hoje.

IHU On-Line – Como a tensão entre representação e participação aparece no governo Dilma?

Marco Aurélio Nogueira – Acho que não aparece, para ser franco. No entanto, ela existe na sociedade. Porque, por um lado, há uma crise de representação, o que significa dizer que as pessoas não confiam muito nos seus representantes, e, por outro lado, há um certo desejo de participação, que é uma espécie de efeito colateral do modo como se vive atualmente. Esse modo exacerba a movimentação das pessoas. Nós todos somos pessoas inquietas. Não gostamos muito de ordens, ainda que acabamos por comprá-las. Não gostamos muito de receber um pacote de decisões e gostamos de nos movimentar fisicamente, quando possível, e nos movimentamos freneticamente no plano virtual. Isso tudo funciona como uma espécie de êmulo de participação, ainda que não seja necessariamente participação política.

IHU On-Line – Pensando na relação com os movimentos sociais e outras instâncias da sociedade civil, como o senhor avalia que Dilma tem reagido diante das capacidades coletivas de reação e emancipação no Brasil?

Marco Aurélio Nogueira – Em primeiro lugar, precisaríamos chegar a um acordo sobre quais são as capacidades coletivas de reação e emancipação no Brasil. Essas capacidades, que evidentemente existem, não estão sendo muito bem utilizadas no Brasil e estão meio adormecidas. Não estamos vivendo uma fase de ativação dos movimentos sociais. Eles existem, estão aí, mas teríamos que gastar um tempo para nomeá-los. Os governos têm que ser flexíveis em relação aos movimentos sociais, pois a sociedade está fragmentada, há muita insatisfação em várias áreas no que diz respeito à representação política, há um clima potencial de exacerbação de insatisfação. No momento, o que o governo Dilma está fazendo com relação aos movimentos sociais é conversar com eles quando aparecem.

IHU On-Line – Mas o senhor percebe uma abertura por parte do governo Dilma em relação aos movimentos sociais?

Marco Aurélio Nogueira – Depende de qual é o parâmetro que temos. Se for em relação aos primeiros meses do governo Dilma, a resposta é que parece que ela está sendo mais sensível. Se for em relação ao governo Lula, eu diria que não, já que o governo Lula era bastante aberto para os movimentos sociais, talvez mais do que a Dilma. O que não significa que o governo dele tenha sido melhor que o dela. Não é só porque você é mais flexível com os movimentos sociais que vai governar melhor. Mas é claro que se for repressor dos movimentos sociais já fica excluído do bom governo. Nós não temos notícia de que os governos brasileiros têm sido particularmente duros com os movimentos sociais. Posso dizer isso porque os movimentos no Brasil não têm sido particularmente ameaçadores. Estão contidos, ou pela sua dificuldade de organização ou pelas dificuldades estruturais de agir no mundo capitalista em que vivemos.

FONTE: IHU On-Line

Os filmes da semana em Vila Velha

O melhor da programação dos cinemas da cidade.

Cine Garoto:
‎"A volta ao mundo em 4 anos de mandato". Estrelando Neucimar Fraga e pagando a conta (ou o pato) o povo de Vila Velha.

Cine Poeira:
"O turista acidental". Estrelando Neucimar Fraga e na platéia, no papel de otario, o eleitorado de Vila Velha (que além de pagar ingresso ainda financia as comitivas do prefeito).

Cine Alagados:
"O homem da mascara de ferro" (ou cara de pau). Estrelando Neucimar Fraga contando a história de obras dos governos federal e estadual apresentadas como autoria e execução do prefeito

Cine Prainha:
‎"As aventuras de Pinoquio". Estrelando Neucimar Fraga e "suas" megaobras. Na platéia, Pinoquio fascinado e invejando tanta criatividade. E lá com seus botões: "como não pensei nisso antes, bastava ser prefeito".

segunda-feira, 12 de março de 2012

Da ética e da política (Renato Janine Ribeiro)

No ano que vem, "O Príncipe", de Maquiavel, completará meio milênio de sua primeira difusão em manuscrito. Nesses cinco séculos, a questão mais importante sobre a ética tem sido: como acontece que ela não seja suficiente? Quais são seus limites? O que fazer quando a ética não nos orienta sobre a ação que podemos julgar correta? Maquiavel e os utilitaristas provavelmente são quem mais elaborou essa questão, mas no século XX ela recebeu tratamento sofisticado, entre outros por pensadores do quilate do sociólogo Max Weber ou dos filósofos Merleau-Ponty e Isaiah Berlin. Nosso ex-presidente Fernando Henrique Cardoso citava Weber em profusão, quando discutia as fronteiras entre sua atuação como cientista social e como político. Num caso se procura conhecer; no outro, agir. Weber também servia a FHC para explicar por que este não fez tudo o que prometeu ou quis. O presidente sociólogo assim popularizou, entre nós, termos como ética de princípios e ética da responsabilidade.

Tendemos todos a concordar quanto a alguns preceitos éticos fundamentais: não matar, não furtar, em suma, não prejudicar o outro. Mas podemos divergir sobre o que eles significam. Por exemplo, "não matar" é apenas não tirar a vida de outra pessoa? Ou podemos matar outras pessoas por omissão, se não acudirmos alguém ameaçado por um agressor ou não socorrermos um faminto? Num caso, para eu ser ético, basta não fazer mal algum. Não preciso fazer o bem. É suficiente não fazer o mal. Não fiz nada de errado. Mas desta maneira terei feito o que é certo? Talvez não. Porque a ética é exigente. Nunca serei ético comodamente. A ética me incomodará. A ética exigirá que eu lute contra a fome. E quando começo a pensar desse modo, não paro mais. Para ser ético, precisarei dar comida a quem está esfomeado? E bastará isso, se eu não batalhar pela adoção de políticas contra a fome? E essas, serão eficazes ou contraproducentes? Esse é um ponto essencial da discussão ética. Ela é interminável. Não visa a nos confortar. Está aí para nos questionar. Se não o fizer, será falsa. Uma ética confortável é apenas um álibi.

Mas a discussão importante sobre a ética não é apenas sobre o que ela diz ou orienta, e sim sobre o que ela não pode dizer nem orientar. Há pelo menos cinco séculos que os observadores mais atilados da condição humana sabem que muito se faz à margem, ou mesmo contra, a ética. Maquiavel, tão mal entendido, percebeu que a ação política obedece a uma lógica diferente da moral, digamos, privada ou cristã. O pensador liberal Isaiah Berlin diz: Maquiavel não é anti-ético. Ao contrário, ele é um filósofo da ética: uma ética da cidade, da política, uma ética da vida neste mundo. Berlin a considera uma ética pagã, greco-romana. E por isso, em seu prefácio à edição brasileira d"O Príncipe, FHC apresenta Maquiavel como um cientista político de excelente qualidade, não como quem acharia que os fins justificariam os meios (o que, por sinal, ele nunca disse). Dizer as coisas como são, não como fantasiamos ou desejamos que seriam: isso é lucidez.

O que a ética não pode dizer é, exatamente, o que é mais difícil na vida social e política. Os dez mandamentos cristãos, ou outros princípios éticos, podem orientar em boa medida a vida privada de muita gente. Mas, quando passamos à vida coletiva e em especial quando o demônio do poder entra em cena, eles não dão conta. Os utilitaristas, como Jeremy Bentham, trataram disso com franqueza brutal. Exemplo célebre: seria justo matar uma pessoa para salvar cinco? Na falta de critérios absolutos, revelados por uma suposta divindade, cada vida vale o mesmo que outra. Cinco vidas valem mais que uma. Então, se para o Brasil prosperar é preciso avançar o sinal ético na privatização ou na obtenção de maioria no Congresso (por hipótese), o preço é nojento, mas pequeno. O bem comum assim causado supera de longe os danos.

Quais os problemas, nessa questão? São dois. Nunca se tem certeza de que o que chamamos de bem comum é, realmente, bom. Não há consenso a respeito. Uns aplaudem a privatização, outros não; o mesmo quanto aos sucessos do governo Lula. Os males causados podem ser tangíveis, reais. Mas há divergência sobre o bem comum que terão produzido. Este é o primeiro problema. Na política, não há certezas. Causamos males, indubitáveis, em troca de um bem maior, mas inseguro. Pagamos o preço, mas ganhamos algo em troca? Não sabemos.

O segundo problema é mais grave. É que na política se age como descrevi, mas isso não se discute. Um silêncio terrível paira sobre a generalização da corrupção - no mundo todo. Qualquer observador atento sabe que, na era do marketing, mais e mais dinheiro é preciso para as campanhas eleitorais. Papel vem de árvores; dinheiro, não. Vem de cofres públicos. É difícil um partido fazer sua campanha sem tais meios heterodoxos. Essa corrupção deve ser generalizada, porque todos os partidos necessitam de fartos recursos para suas campanhas. Mas é fácil usar esse fato seletivamente. Acuso o partido de que não gosto. É muito provável que o meu tenha agido da mesma forma, mas sobre isso me calo. Daí que a ética vire arma vil num debate que esconde sua real natureza política. Mas essa realidade sempre existiu; e a questão foi formulada há cinco séculos, por Maquiavel. O que fazer quando a ética usual, a do não-matarás, não basta para nos orientar? Seria melhor discutir isso, expor isso, quem sabe respondê-lo, do que manipular a ética e enganar os ingênuos. Em 2013, "O Príncipe" completa 500 anos. Quem sabe ser honesto e abrir o jogo seria um bom modo de celebrar a data?

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

Governo? Que governo? (Marco Antonio Villa)

O rei está nu. Na verdade, é a rainha que está nua. Ninguém, em sã consciência, pode dizer que o governo Dilma Rousseff vai bem. A divulgação da taxa de crescimento do País no ano passado - 2,7% - foi uma espécie de pá de cal. O resultado foi péssimo, basta comparar com os países da América Latina. Nem se fala se confrontarmos com a China ou a Índia. Mas a política de comunicação do governo é tão eficaz (além da abulia oposicionista) que a taxa foi recebida com absoluta naturalidade, como se fosse um excelente resultado, algo digno de fazer parte dos manuais de desenvolvimento econômico. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, sempre esforçado, desta vez passou ao largo de tentar dar alguma explicação. Preferiu ignorar o fracasso, mesmo tendo, durante todo o ano de 2011, dito e redito que o Brasil cresceria 4%.

A presidente esgotou a troca de figurinos. Como uma atriz que tem de representar vários papéis, não tem mais o que vestir de novo. Agora optou pelo monólogo. Fala, fala e nada acontece. Padece do vício petista de que a palavra substitui a ação. Imputa sua incompetência aos outros, desde ministros até as empresas contratadas para as obras do governo. Como uma atriz iniciante após um breve curso no Actors Studio, busca vivenciar o sofrimento de um governo inepto, marcado pelo fisiologismo.

Seu Ministério lembra, em alguns bons momentos, uma trupe de comediantes. O sempre presente Celso Amorim - que ignorou as péssimas condições de trabalho dos cientistas na Antártida, numa estação científica sucateada - declarou enfaticamente que a perda de anos de trabalho científico deve ser relativizada. De acordo com o atual titular da Defesa, os cientistas mantêm na memória as pesquisas que foram destruídas no incêndio (o que diria o Barão se ouvisse isso?).

Como numa olimpíada do nonsense, Aloizio Mercadante, do Ministério da Educação (MEC), dias atrás reclamou que o Brasil é muito grande. Será que não sabe - quem foi seu professor de Geografia? - que o nosso país tem alguns milhões de quilômetros quadrados? Como o governo petista tem a mania de criar ministérios, na hora pensei que estava propondo criar um MEC para cada região do País. Será? Ao menos poderia ampliar ainda mais a base no Congresso Nacional.

Mas o triste espetáculo, infelizmente, não parou.

A ministra Maria do Rosário, dos Direitos Humanos, resolveu dissertar sobre política externa. Disse como o Brasil deveria agir no Oriente Médio, comentou a ação da ONU, esquecendo-se de que não é a responsável pela pasta das Relações Exteriores.

O repertório ministerial é muito variado. Até parece que cada ministro deseja ardentemente superar seus colegas. A última (daquela mesma semana, é claro) foi a substituição do ministro da Pesca. A existência do ministério já é uma piada. Todos se devem lembrar do momento da transmissão do cargo, em junho do ano passado, quando a então ministra Ideli Salvatti pediu ao seu sucessor na Pesca, Luiz Sérgio, que "cuidasse muito bem" dos seus "peixinhos", como se fosse uma questão de aquário. Pobre Luiz Sérgio. Mas, como tudo tem seu lado positivo, ele já faz parte da história política do Brasil, o que não é pouco. Conseguiu um feito raro, na verdade, único em mais de 120 anos de República: foi demitido de dois cargos ministeriais, do mesmo governo, e em apenas oito meses. Já Marcelo Crivella, o novo titular, declarou que não entende nada de pesca. Foi sincero. Mas Edison Lobão entende alguma coisa de minas e energia? E Míriam Belchior tem alguma leve ideia do que seja planejamento?

Como numa chanchada da Atlântida, seguem as obras da Copa do Mundo de 2014. Todas estão atrasadas. As referentes à infraestrutura nem sequer foram licitadas. Dá até a impressão de que o evento só vai ser realizado em 2018. A tranquilidade governamental inquieta. É só incompetência? Ou é também uma estratégia para, na última hora, facilitar os sobrepreços, numa espécie de corrupção patriótica? Recordando que em 2014 teremos eleições e as "doações" são sempre bem-vindas...

Não há setor do governo que seja possível dizer, com honestidade, que vai bem. A gestão é marcada pelo improviso, pela falta de planejamento. Inexiste um fio condutor, um projeto econômico. Tudo é feito meio a esmo, como o orçamento nacional, que foi revisto um mês após ter sido posto em vigência. Inacreditável! É muito difícil encontrar um país com um produto interno bruto (PIB) como o do Brasil e que tenha um orçamento de fantasia, que só vale em janeiro.

Como sempre, o privilégio é dado à política - e política no pior sentido do termo. Basta citar a substituição do ministro da Pesca. Foi feita alguma avaliação da administração do ministro que foi defenestrado? Evidente que não. A troca teve motivo comezinho: a necessidade que o candidato do PT tem de ampliar apoio para a eleição paulistana, tendo em vista a alteração do panorama político com a entrada de José Serra (PSDB) na disputa municipal. E, registre-se, não deve ser a única mudança com esse mesmo objetivo. Ou seja, o governo nada mais é do que a correia de transmissão do partido, seguindo a velha cartilha leninista. Pouco importam bons resultados administrativos, uma equipe ministerial entrosada. Bobagem. Tudo está sempre dependente das necessidades políticas do PT.

A anarquia administrativa chegou aos bancos e às empresas estatais. É como se o patrimônio público fosse apenas instrumento para o PT saquear o Estado e se perpetuar no poder. O que vem acontecendo no Banco do Brasil seria, num país sério, caso de comissão parlamentar de inquérito (CPI). Aqui é visto como uma disputa de espaço no governo, considerado natural.

Mas até os partidos da base estão insatisfeitos. No horizonte a crise se avizinha. A economia não está mais sustentando o presidencialismo de transação. Dá sinais de esgotamento. E a rainha foi, desesperada, em busca dos conselhos do rei. Será que o encanto terminou?

*Historiador, é professor da universidade federal de São Carlos (UFSCAR)

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

sexta-feira, 9 de março de 2012

PP Mulher: parece piada, mas não é.

Parece piada, mas não é. A representante do PP/Mulher (Partido Progressista - sic) afirmando em comercial do partido: "muitas de nós perdemos a vida na luta por direitos iguais".
É a aposta na falta de memória de um povo.
Para quem não sabe, não lembra ou não associa, o PP é o partido herdeiro da velha Aliança Renovadora Nacional (ARENA), criada com a função de ser o sustentáculo político-eleitoral do regime militar e garantir a candidatura dos generais-candidatos no colégio eleitoral que garantia o simulacro de eleições democráticas.
Partido de figuras sinistras como Zézinho Bonifácio, Delfim Neto e Paulo Maluf.
E se a questão é a mulher, partido que não respeitou a dor de uma Eunice Paiva quando perambulava pelas instâncias de poder clamando e buscando pelo seu marido, Rubens Paiva, preso, torturado e desaparecido nas "casas da morte", mantidas pela "tigrada" da repressão nos subterrâneos do regime.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Coalizão dos céus? (Renato Lessa)

Um de meus queridos irmãos, aos seis anos de idade, sonhou que o pai havia se mudado para a casa do vizinho, logo a seguir incendiada, sem sobreviventes. Se todos os sonhos tivessem tal índice de opacidade, a psicanálise teria se tornado uma profissão inviável e A Interpretação dos Sonhos, de Freud, uma obra de ficção indecifrável. Afinal, tratou-se de um sonho que portava consigo mesmo a própria interpretação. Pois bem, vida que segue, a recentíssima nomeação do senador Crivella, prócer da liga evangélica, para o estratégico posto de Ministro da Pesca, possui complexidade assemelhada a do sonho de meu irmão. Assim como há fatos que contém sua própria metamorfose em piada, a nomeação clerical também traz consigo sua própria interpretação, de declinação tediosa.

Assim como o País não prescinde de um governo que "funcione", o governo precisa de uma "base" segura para enfrentar a oposição e cumprir seu programa. Duas suposições - além da premissa mãe de que o Brasil vive em estado permanente de oligofrenia cívica - são apresentadas como se autoevidentes fossem, a de que governos são "mecanismos" que dispõem de "funcionamento regular", e não resultado de escolhas e materializações de valores, e a de que há no País uma oposição política e parlamentar aguerrida, a ameaçar programas de governo, sem os quais o País colapsa. A pesca sob a égide evangélica é, pois, um esteio do bom governo e da normalidade nacional; feitas as contas, o governo pode "funcionar". Não se contabiliza, contudo, no fabricar das salsichas, danos produzidos pelo próprio processo de obtenção de sustentabilidade sobre a efetividade e a qualidade do governo. A assim dita base aliada, em estado de irredenção latente, quando não em rebelião aberta, exige tanto precioso tempo para "articulação", quanto emprego ininterrupto de escolhas autointerpretadas.

Observadores técnicos da montagem de governos de coalizão dispõem-se sempre a apaziguar os espíritos. Sustentam que isto tudo é normal; que do Togo à Dinamarca, em não sei quantas séries históricas, ocorreram governos de coalizão, nos quais a partilha do poder é condição para sossego legislativo por parte dos governantes. Tudo, portanto, é normal, e sempre há caos piores. Italo Svevo, em um pequeno e delicioso conto, descreveu diálogo havido entre infelizes usuários de um bonde que circulava próximo a Seveso, no norte da Itália, com atrasos e interrupções inacreditáveis. Quando o bonde, por fim, aparecia, sempre em ocasião e em horário caprichosos, os passageiros comentavam entre si a respeito de notícias ainda piores sobre atrasos do expresso da Sibéria ou da linha marítima Genova-Nova York, com lapsos muito maiores. No fundo, era uma felicidade viajar no bonde de Seveso.

A arte da comparação, com frequência, dá azo à inveja, mas não raro proporciona também paz de espírito. O filósofo Hans Blumenberg, certa feita, usou em belo livro a expressão "espectador incólume", inspirada em comentário de Michel de Montaigne que admitia não ser impossível usufruir de certa sensação de alívio na posição de espectador de uma calamidade: ao mesmo tempo que o sofrimento das vítimas produz empatia, de forma quase imediata faz sobrevir alívio por não ter estado na mesma condição. Diante do naufrágio alheio, pena e sentimentos sinceros pelo infortúnio e alívio pelo desfrute de incolumidade.

Michel de Montaigne vem bem a calhar. Coevo do massacre de São Bartolomeu, no qual a monarquia católica francesa mata, em 1572, dezenas de milhares de huguenotes, Montaigne foi um dos primeiros a indicar o horror da religião de Estado. Outros, como Paolo Sarpi e Pierre Bayle, serão no século 17, ainda mais radicais: uma república de ateus é não só viável, mas pode ser uma condição necessária para a proteção contra a intolerância religiosa. Trata-se de uma tese que pode chocar o leitor, pela aparente ausência de espiritualidade, mas pode ser interpretada de modo inverso: a garantia de incolumidade diante do que creio só pode ser dada se sou protegido da intolerância promovida por outras crenças. Só pode fornecer tal garantia um Estado indiferente a todas as crenças e, neste sentido, desespiritualizado.

A unção ministerial do senador Crivella, para além do que possui de autoevidente, é portadora de presságios ainda mais preocupantes do que o usual. Se associada a episódios recorrentes da ação da liga evangélica na política nacional, sugere ameaça à república laica. Em iniciativa recente o líder da Frente Parlamentar Evangélica, propôs decreto legislativo para proporcionar "tratamento psicológico" a homossexuais. É o caso de perguntar: é razoável que crenças particulares constituam base para legislação e políticas públicas? Se o clero católico, por exemplo, não admite o uso de preservativos e insiste na tese de que a vida sexual é um estorvo necessário à procriação, que diga isso do púlpito das suas igrejas, mas não transforme a doutrina em política pública, o que seria próprio de um estado teocrático.

As denominações tradicionais têm, a bem da verdade, entendido isto e têm-se mantido no limite do cuidado espiritual de seus adeptos. É o mercado religioso emergente, heterodoxo não apenas em matéria de doutrina religiosa mas sobretudo nos domínios penal e tributário, que vem se mostrando mais agressivo do que católicos e protestantes tradicionais, em pelo menos duas direções claras: no apetite patrimonial e na maximização de poder político e social. A república tem sido tolerante diante dessa pós secularização perversa, alimentada pelo alarmante déficit educacional e cultural das classes populares, pelo qual ela é a principal responsável. O controle das almas dá passagem à captura do voto, ao acesso a concessões públicas e à expansão patrimonial, política e financeira. O volume e a dimensão dessa calamidade em curso confere a seus operadores ares de respeitabilidade e imprescindibilidade. O pior de tudo é que a moeda de troca à fidelidade política da liga evangélica excede o prêmio habitual: pode estar em jogo um dos pilares da república democrática, o princípio da laicidade.

Renato Lessa é professor titular de Teoria Política da UFF, investigador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e professor visitante da Cátedra de História da Filosofia na Universidade do Piemonte Oriental, Vercelli, Itália.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO/ALIÁS

terça-feira, 6 de março de 2012

'Militares erraram, mas é preciso serenidade' (Carlos Fico - entrevista)

ENTREVISTA. Carlos Fico: 'Militares erraram, mas é preciso serenidade'
Para historiador, governo exagerou ao punir oficiais da reserva, pois assusta quem pensa ajudar Comissão da Verdade

Chico Otavio

O historiador Carlos Fico, ex-integrante do projeto Memórias Reveladas e um dos mais ativos defensores da abertura dos arquivos da ditadura, disse que o governo exagerou na dose ao determinar punição de militares da reserva. Para ele, a crise é um mau começo para a Comissão da Verdade, pois assusta e afugenta os que pensavam em contribuir com informações e documentos. Para ele, o ministro da Defesa, Celso Amorim, deveria ter entregado o problema aos comandantes militares. Fico não quer participar da comissão. Ele teme que o resultado leve a uma "verdade histórica" única, a exemplo do que ocorreu com outros países que tiveram o mesmo processo, enquanto "um historiador deve trabalhar com o conceito de que não existe uma verdade absoluta".

O GLOBO: A Comissão da Verdade conseguirá atingir o seu objetivo: a verdade?

CARLOS FICO: A expressão não pode ser entendida como estabelecimento da verdade oficial. O desafio da comissão é não cair em uma leitura unívoca. Comissões da Verdade em todo o mundo acabaram produzindo um relatório, associado a seus membros, que vira a narrativa oficial. Para os historiadores, o conceito de verdade não é absoluto.

O senhor, como historiador com extensa produção acadêmica sobre o regime, tem vontade de atuar na comissão?

FICO: A presença de um historiador na Comissão da Verdade é um problema. A Associação Nacional dos Historiadores acha que devemos participar, mas eu discordo. Não compete ao historiador entrar. Isso por conta da definição teórica do que é verdade para o historiador. Os historiadores podem, no máximo, colaborar com informações. Além do mais, na História do tempo presente, não podemos nos esquecer da dimensão ético-moral. A atrocidade cometida no período é indiscutível. Isso introduz um viés: não se pode ter uma atitude objetiva que desconheça os assassinatos e a tortura. Não se pode humanizar o algoz.

E quanto às críticas que minimizam a dimensão da ditadura no Brasil, sustentando que ela foi mais branda do que a dos países vizinhos que passaram pelo mesmo processo?

FICO: Muitos dizem que a ditadura brasileira não foi violenta. Eles não têm a menor ideia da quantidade de prejuízo que ela causou. São conhecidos os casos de mortes, desaparecimentos e tortura. Mas a ditadura militar atingiu a vida de muitas pessoas. Quando alguém estava para ser nomeado, por exemplo, o SNI mandava uma nota e dizia que aquele cidadão era isso e aquilo. Essa pessoa acabava rejeitada sem jamais conhecer as razões. Há casos em que os filhos de casais presos foram criados por outras pessoas por anos e anos. A questão é que, além da violência, houve uma interferência brutal da comunidade de informações no cotidiano das pessoas.

Qual seria o melhor começo para a comissão?

FICO: Se a Comissão da Verdade for bem conduzida, ficaria os seis primeiros meses trabalhando com a documentação. Ela é capaz de revelar o que não se sabe: essa ampla e violenta interferência na vida cotidiana, que é desconhecida e importante. Há muitos documentos. O grosso desse material é constituído do fundo do SNI, do fundo da CGI e das divisões de Segurança e Informação. A comissão tem possibilidade de requerer documentos.

Existe risco de crise institucional?

FICO: Existe, por um motivo: os militares erraram, mas o governo precisa ter serenidade. O manifesto interclubes foi uma espécie de provocação. Eles expressaram insatisfação num tom forte. O governo conseguiu uma vitória política: obrigar o Clube Militar a retirar o manifesto. Os militares da reserva têm direito a se manifestar. Mas a nota que saiu depois atinge a hierarquia e a disciplina. Diz que o Congresso pratica revanchismo explícito, é inconsequente. Isso, os militares da reserva não poderiam fazer. Contraria o estatuto militar. Mas, se o governo punir, um deles vai recorrer da decisão. Pode virar um imbróglio jurídico. O STM teria de se manifestar. O problema seria evitado se o governo, após a retirada do manifesto e a nota de ataque ao Congresso, pedisse aos comandantes militares que tomassem providências. Agora, ou pune e vira crise ou não pune, e desautoriza o ministro da Defesa (Celso Amorim). Transformar a questão em debate jurídico é receita certa para aumentar a crise.

Os clubes militares têm influência na tropa?

FICO: Até o Golpe de 64, os clubes militares tinham uma atuação politizada. Depois, entraram num longo período de recesso. Mas, na segunda metade dos anos 1990, voltaram a entrar com tudo nas questões políticas. Até então, porém, nunca houve reação do governo. A reação é novidade. É preciso conduzir esse assunto com serenidade na relação com os militares.

O senhor espera que a Comissão da Verdade abra caminho para punição de torturadores?

FICO: A Lei de 1979 também inclui a autoanistia. A ministra Rosário tem razão. Pode ser que o resultado do levantamento da comissão provoque uma mobilização capaz de levar o Congresso a rever a anistia. É uma hipótese bastante remota. Historicamente a sociedade tem preferido a conciliação. Não creio que haja uma mobilização capaz de levar o congresso a mudar a Lei da Anistia. Mas o debate em si já desencoraja os que pensavam em contribuir. Falar em punição agora não é a melhor estratégia para trazer o maior número de depoimentos à comissão. A crise não é boa para o trabalho. Há uma insatisfação grande entre os militares da reserva. Tem gente que atuou na repressão secundariamente, como datilógrafos, que poderia ser ouvida. Esses também foram perdoados.

FONTE: O GLOBO