terça-feira, 9 de setembro de 2014

"Nunca vi uma eleição como esta" (Jairo Marconi Nicolau/entrevista)





Sob o impacto da ascensão fulminante da candidatado PSB, Marina Silva, nas últimas semanas, o cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Jairo Nicolau afirma que nunca viu um fenômeno similar em nossa história política: "Nas eleições recentes, e mesmo antes, nunca tivemos nada do gênero dessa "onda" Marina. Em 15 dias, ela amealhou algo em torno de 38 milhões devotos. Foram quase 2 milhões de votos por dia". Nicolau arrisca dizer que é alta a probabilidade de uma vitória de Marina, mas alerta para os riscos que a ex-senadora ainda corre, tendo que se expor a debates, críticas e questionamentos. "Ela está ganhando de 2 a 0 no segundo tempo, tem um time bom, está jogando melhor, tem mais torcida, mas tem que segurar esse resultado até o final da partida", compara. No caso de Dilma Rousseff, o problema está no segundo turno: "Crescer e superar Marina, com esse forte antipetismo no ar, vai ser um enorme desafio para Dilma. O segundo turno é mata-mata. O eleitor zera o taxímetro. O PT vai ter que se organizar de outra forma", pontifica Nicolau.

Eduardo Miranda / Paulo Henrique de Noronha - Brasil Econômico

Marina Silva pode ser a próxima presidente do Brasil?

A probabilidade é alta. Eu acompanho eleição há muito tempo e nunca vi nada do gênero. É algo tão surpreendente quanto aquele 7 a 1 do Brasil e Alemanha. É totalmente fora dos padrões do comportamento eleitoral brasileiro. Mesmo se você lembrar, por exemplo, do Collor. Ele foi um outsider naquele momento, porque era filiado a um partido pequeno. Foi do PDS, depois se filiou ao PMDB, e depois desfiliou-se para entrar em um partido nanico, chamado PJ (Partido da Juventude). Trocou o nome para PRN e se candidatou à Presidência. A ascensão dele foi muito lenta, aconteceu em alguns meses. Virou um fenômeno de opinião pública, conquistou eleitores mais pobres, uma parte da classe média, e também do Nordeste. Nas eleições recentes, e mesmo antes, nunca tivemos nada do gênero dessa "onda" Marina. Em 15 dias, ela amealhou, nas minhas contas, algo em torno de 37, 38 milhões de votos.

Ela teve 19,6 milhões de votos na eleição de 2010.

Se a Rede tivesse saído e eu tivesse que apostar, em janeiro, projetaria que ela teria em torno de 20% a 25% dos votos válidos. Na estimativa que eu faço agora, excluindo os indecisos, ela estaria, hoje, com 37%, 38%. Os indecisos, brancos, nulos e candidatos dos pequenos partidos formavam 30%, e o Eduardo, 10%. Agora, eles somam10%, e Marina, mais de 30%. Ela tirou voto de todo mundo. Fez com que a Dilma tenha, hoje, o pior desempenho de um candidato do PT depois de 2002. É algo realmente impressionante para 15 dias. Foram quase 2 milhões de votos por dia que ela capturou. Dilma perdeu. Aécio, então, nem se fala. Os pequenos, que chegaram a somar 10 pontos, estão praticamente reduzidos a resíduo.

Como avalia as últimas pesquisas do Ibope e do Datafolha?

Acho que mudou pouca coisa, Dilma não cresceu, nem Marina. Elas apenas oscilaram na margem de erro. Mas a polarização é clara. Dilma parece ter se ancorado num patamar de votos válidos de 35% a 40%, o que lhe garante lugar no segundo turno. Para Marina, o desafio agora é saber se ela já atingiu seu teto devotos no primeiro turno, um teto que não é baixo, e se consegue se manter ali para evitar o risco de cair e ver o Aécio voltara crescer e ameaçar — o que é pouco provável, mas não impossível. Fazendo paralelo com um jogo de futebol, Marina está ganhando de 2 a 0 no segundo tempo, tem um time bom, está jogando melhor, tem mais torcida, mas tem que segurar esse resultado até o final da partida. Esse é o desafio dela agora, que pode se complicar porque ela está tendo que se expor, sendo criticada e questionada. E uma parcela significativa dos eleitores dela, que tem curso superior e quer uma nova política, e que migrou de maneira fulminante para Marina, vai querer saber quais são os programas, as ideias, o que ela pretende. Esse eleitor quer mais. Marina vai se expor, vai a debates, será criticada. Há uma série de críticas que vão aparecer, medos, coisas do gênero. Quando se embarca em uma onda emocional, não se pensa muito, as pessoas votam na Marina porque ela é moderna. Mas ela já recuou em alguns aspectos. De repente, o sujeito vê que estava embarcando no moderno, mas não era bem isso.

E a situação da presidenta Dilma Rousseff?

O grande desafio da campanha de Dilma será o segundo turno. O sentimento anti-Dilma é muito forte, se agravou bastante desde 2010, e a campanha do Aécio Neves concentra muitos votos desses eleitores antipetistas. No segundo turno, eles tenderão a migrar para Marina. Crescer no segundo turno e superar Marina, com esse forte antipetismo no ar, vai ser um enorme desafio para Dilma. O primeiro turno é por pontos corridos, o segundo é mata-mata. O eleitor zera o taxímetro. O PT vai ter que se organizar de outra forma.

Qual a ligação entre votos brancos, nulos, os indecisos, eleitores do Aécio, dos nanicos, e a ascensão da Marina?

Acho que os nacos que ela tirou são diferentes. Por exemplo: Rio e São Paulo estavam com 30% de eleitores dispostos a votar em branco e nulo na última pesquisa, antes da morte do Eduardo. O que já era algo espetacular, muito alto. Nas últimas eleições, os brancos e nulos ficavam na faixa de 10%. Quando o horário eleitoral começava, entre 8% e10% das pessoas diziam que iam anular o voto. Agora, a média era de 15%, mas, no Rio e em São Paulo, estava em 30%. No caso de São Paulo, o eleitor tradicional estava acostumado a ver uma polarização entre PT e PSDB, mas com um candidato a presidente tucano de São Paulo. Desta vez, não tem paulista na disputa. O candidato Aécio não teve tempo de se fazer conhecerem São Paulo. O eleitor do Rio e de São Paulo, que dizia que iria votar nulo e branco por desconhecimento, era antipetista, mas não conhecia direito nem o Campos, nem o Aécio. O Aécio teve interrompido seu processo de ascensão, sobretudo nas cidades médias do Sudeste para o Sul, onde o PSDB sempre foi muito bem desde 2002. Tudo indicava que, no mínimo, o PSDB empataria em São Paulo, com chances de vencer. Agora, está em terceiro lugar.

Mas as pesquisas indicam que o PSDB ainda está muito forte em São Paulo, deve eleger facilmente Geraldo Alckmin e José Serra.

O eleitor tucano de classe média, por alguma razão, antes de se transferir para o Aécio, migrou para a Marina. Isso aconteceu em outros estados, principalmente nos do Sul. É um fenômeno de opinião pública, que nunca aconteceu. Não só pela ascensão enorme, como pela velocidade. Todos os processos de expansão eleitoral que eu vi no Brasil foram mais graduais do que esse.

A comoção com a morte de Eduardo Campos contribuiu?

Acho que é um exagero essa avaliação. É claro que, pelo fato de ele ser um governador de um estado importante e um candidato competitivo à eleição presidencial, e a forma trágica como tudo aconteceu, acabou tendo um destaque grande na cobertura da imprensa. Eu não me lembro, nos últimos anos, de ter visto o velório de um político brasileiro que tenha mobilizado tanto. É um fenômeno... a própria cobertura da televisão, as redes sociais, a forma como tudo aconteceu, surpreendendo a todos. Ele dá uma entrevista no "Jornal Nacional" e, pela primeira vez, tem uma audiência de massa na campanha. No outro dia, de manhã... A Marina não fez nada para crescer assim tão rapidamente, ela nem teve tempo. Na verdade, teve a memória de seu desempenho em 2010. Mas é um paradoxo inacreditável. Como uma mulher que, em outubro do ano passado, não conseguiu registrar 500 mil assinaturas para organizar um partido, consegue 38 milhões de votos? É algo chocante para todos os parâmetros razoáveis. Enquanto ela não conseguia oficializar a Rede, o PEN, que é o Partido Ecológico Nacional, conseguiu. O que é o PEN? O Solidariedade também conseguiu, o Pros...

Dá para apontar uma causa para o crescimento da Marina, além dos 19,6 milhões de votos que ela teve em 2010?

É difícil de explicar. É um fenômeno que acontece, exclusivamente, na eleição nacional, não se reproduz nos pleitos estaduais. Independentemente da avaliação que se faça da Marina, das suas ideias, do que ela simboliza, há um fenômeno de contágio de opinião pública, epidemiológico. Uma coisa de "meme", para quem acompanha as redes sociais. Ela encaixou um sentimento de insatisfação como governo do PT. É um fenômeno muito pouco refletido, comum forte componente emocional. Não vejo uma reflexão, as pessoas pouco conhecem o que a Marina pensa do mundo.

Mas as pessoas têm uma imagem da Marina...

Têm. É um clichê a respeito dela, de que ela representaria uma nova política, uma política diferente. Uma mistura de correção pessoal com ideias novas no campo ambiental. Tem um clichê de sua biografia, que já tinha sido veiculado em 2010. Isso estava adormecido? O que foi isso? Mas acho que tem um fenômeno emocional, de contágio, que não está necessariamente associado à morte do Campos. Havia, no eleitorado, uma acolhida para alguém diferente, com esse perfil.

Quanto do sentimento anti-Dilma está nisso?

Se a gente lembrar daquela teoria dos conjuntos matemáticos,há várias interseções. Por exemplo, uma parte do voto anti-Dilma mais forte, que estava com Aécio, foi transferido, por razões muito simples. É um voto útil: Marina tem mais chances de derrotar Dilma. E parte da elite está embarcando na Marina como alternativa com condições de vitórias. Não acho que ela tenha tirado votos da Dilma. Ela pegou um sentimento antiDilma dos indecisos e do Aécio.

Dilma já está em um nível histórico mínimo de votos?

Ela está abaixo do que o Lula navegou, em 2002 e 2006, desde que o horário eleitoral começou, e que ela própria navegou, em 2010 — quando começou o horário eleitoral, na faixa dos 40% (dos votos válidos). Agora, tem a chance de ela embicar para baixo, chegando aos 35%, voltando para um patamar mais próximo do PT de 1998.

E o Aécio Neves, como fica?

O Aécio tem, hoje, pouquíssimas chances. Para o PSDB, este momento é um desastre total. Mas o partido ainda tem ambições de fazer uma boa bancada e, provavelmente, será decisivo para a base de sustentação de um eventual governo Marina.

O que PT e PSDB poderiam fazer para virar esse quadro?

O Aécio conseguiu abrir dez pontos em relação a Campos, estava administrando razoavelmente bem, mirando para cima. E o PT logo percebeu que disputaria o segundo turno com ele. Agora, os estrategistas dos dois partidos não têm saída, só bater na Marina. A probabilidade de uma vitória da Dilma sobre a Marina é baixa. Não diria que é impossível, mas, em termos de probabilidade, é muito pequena. A rejeição dela é muito grande, e o voto do Aécio no segundo turno irá quase todo para a Marina. Um dado interessante desta eleição é que, ao contrário do que aconteceu com Brizola em 1989, e com Garotinho e Ciro Gomes em2002, os votos do terceiro colocado não irão para o PT no segundo turno, porque Aécio representa o voto anti-Dilma.

E a propaganda negativa, as denúncias?

Eu acho que Marina vai sofrer um ataque pesado, não tem como não sofrer. Da blogosfera petista, da máquina petista, dos partidos da base governista que estão bem alocados. De milhares de pessoas que estavam razoavelmente tranquilas e cujas vidas não mudariam caso o PT se mantivesse no poder.

Marina falou que vai convidar PSDB e PT para compor seu governo, mas não o PMDB. É possível governar sem o PMDB?

Acho difícil. Historicamente, o PMDB é um partido que se divide. Ele sempre entra com uma ala, e a outra fica na oposição. O partido pode não entrar no governo, mas algumas lideranças, sim — Pedro Simon, Jarbas Vasconcellos, Geddel Vieira Lima.Acho difícil ela falar que não vai aceitar peemedebistas. O que vejo mais parecido com o que pode ser o governo Marina é o governo Itamar Franco. Um governo de centro-direita, com setores da esquerda. Por exemplo, o Itamar puxou a Luiza Erundina, ela foi expulsa do PT por ter sido sua ministra. Vai ser um governo com PSB, PSDB, DEM, alas do PMDB. Mesmo assim, provavelmente, um governo de minoria.

O PT aceitaria o convite?

Acho que não. Marina provavelmente atrairá muitos técnicos do PT, pessoas que estão em Brasília, à frente de programas, projetos, técnicos competentes do partido que devem continuar por razões até de oportunidade. Como uma ex-egressa do PT, ela tem contatos no partido. Agora, não acredito que o partido, formalmente, participará do governo. Porque ainda tem um mês de campanha, mais o segundo turno, quando a tensão, os conflitos, os ódios e as rusgas vão se aprofundar. Ainda que ela seja uma ex-petista, hoje ela é a principal adversária, e vice-versa. No final de outubro, a relação vai estar totalmente esgarçada,é inevitável. Com o potencial, sempre, da volta de Lula em2018, é mais razoável o PT apostar e ir para a oposição, esperando quatro anos. O problema é que a minha expectativa é deque o PT saia muito mal dessas eleições. Pode se salvar um pouco em Minas, mas deve encolher sua bancada na Câmara, no Senado e em muitas assembleias. Há muita rejeição ao PT.

O PSB parece que não está se beneficiando da "onda" Marina... o partido corre o risco de não ganhar nenhum governo estadual. Aparentemente, o fenômeno Marina não se reproduz nos estados.

Pela primeira vez na história, o PSB possivelmente vai reduzir sua bancada. Ele é o único partido no Brasil que sempre aumentou sua bancada na Câmara em relação à eleição anterior. Sem Campos, ele não tem aquela força. Nas eleições estaduais, deve acontecer o de sempre. O PMDB vai crescer sua bancada, porque tem muitos candidatos a governador, e a gente vai continuar nesse cenário da hiperfragmentação, com partidos com 25, 30 deputados. O PSDB deve aumentar, vai voltar para um patamar mais condizente com seu tamanho. Deve somar, nacionalmente, uma bancada maior do que tem. Mas os demais partidos não vão ficar muito diferentes. O PT está perdendo para a oposição e vai ter que se reconfigurar internamente e fazer sua autocrítica, apostando em 2018.

No programa de governo da Marina, algo lhe chamou a atenção?

A política econômica é muito semelhante à do PSDB. Tem um ponto ou outro de políticas públicas, mas não tem nenhum diferencial significativo. Desde o governo Lula, a gente discute mais programas do que projetos. Não se fala em projeto de desenvolvimento, projeto para a educação. O que temos são programas. Acho que o programa de governo do Campos foi desenhado lá atrás por alguns técnicos de partido, com ideias socialistas. Só que, agora, o programa passou a ser algo que as pessoas vão ler. Em nenhuma outra eleição as pessoas tiveram tanto interesse em ler um programa como terão, agora, como da Marina, porque ela nos colocou nessa incerteza total do que ela é. A gente entrou em um território de muita incerteza, em termos de ideias.

Dá para dizer se a Marina é de esquerda, direita ou centro?

Não acho que ela seja uma pessoa de direita. Ela veio da esquerda, militou no PT a vida inteira, mas, desde que saiu do PT— e não tem muito tempo, foi em 2009 — tem procurado um espaço. Buscou abrigo no PV e não conseguiu ficar. Quis organizar a Rede e não conseguiu. E buscou o PSB por uma pura estratégia de viabilizar seus quadros, de modo que os candidatos ligados a ela pudessem se eleger e criar uma base mínima. A ideia era muito mais fortalecera Rede para, depois, ela ter um partido, do que propriamente uma vitória. Não acho que seja de direita, mas terá que fazer um governo de centro-direita. Talvez, com um diferencial de uma agenda com temas ambientais. O meio ambiente nunca foi o tema central do PT, que sempre foi um partido desenvolvimentista clássico, com o tema ambiental entrando pela lateral. Talvez, ela possa, em uma política pública aqui, outra acolá, colocar essa marca ambiental. Mas, seu governo deve ser parecido com o que seria um governo liberal na economia, conservador nos costumes e progressista nas questões ambientais. Pelo menos são os sinais que está dando.

E a resistência do agronegócio?

O agronegócio encontrou no Aécio seu candidato mais natural, outra parte foi acolhida no governo petista e Marina deu declarações fortes. Acho que eles não odeiam, mas não têm simpatia por ela. O que ela poderia fazer? Um presidente pode muito pouco. Mandar uma lei proibindo o alimento transgênico? Isso é com o Congresso, que no Brasil é de centro-direita. Ela não pode muito contra o agronegócio.

Marina é a "nova política"?

Não se faz uma nova política sem um novo partido. Talvez se a Rede tivesse se viabilizado com uma agenda nova, quadros novos, fazendo bancada... O que percebo é alguém que encarnou essa renovação da política, mas não tem o lastro do carisma e do que ela representa. O Lula, por exemplo, sempre foi muito maior que o PT e conseguiu se comunicar com a sociedade de maneira muito mais eficiente do que o partido. A Marina é uma figura que acentua esse aspecto da renovação, mas o que me preocupa é que ela subiu sem nada embaixo. Para mim, é muito sintomático que ela não tenha conseguido organizar a Rede. É uma expressão de inépcia política não conseguir 500 mil assinaturas para registrar um partido no Brasil. Marina não tem um movimento, e as renovações da política acontecem com movimentos. Acho que ela está chegando à Presidência em função de um sentimento geral de insatisfação como governo que aí está, sem que a população tivesse tido chances de conhecer outras alternativas. Acho que ela é uma candidata que vai se cercar de quadros bons, terá de fazer aliança com quadros tradicionais, mas não tem o lastro da renovação.

Beto Albuquerque, vice de Marina, defendeu que a população vá às ruas pressionar o Congresso pela reforma política. Isso é viável?

Não é viável. Eu quase diria que é patético. Primeiro, a população não vai para a rua por esse exemplo particular. A população só vai para a rua discutir reforma política quando isso envolve a corrupção. Foi assim na Itália e no Japão, em 1993. São os únicos exemplos que eu conheço, em um regime democrático, para a reforma política. Temas da reforma política são técnicos, envolvem uma discussão ouvindo especialistas. É o mesmo que pedir à população para ir às ruas pela reforma tributária. Exige um conhecimento técnico-orçamentário. Acho isso uma fantasia. A população brasileira não tem esse hábito de pressionar Congresso nenhum para tema nenhum. Se, eventualmente, em um tem a chave, tivermos que fazer algumas passeatas, como os cariocas fizeram para o pré-sal, e os evangélicos por uma lei das células-tronco, é da vida. Agora, pressupor uma mobilização permanente, não cabe no modelo democrático brasileiro. É uma tolice achar que, para o governo ser eficiente, você tem que criar uma espécie de democracia de ruas. Nem o Lula tentou isso.

O horário eleitoral gratuito no rádio e na TV ainda tem peso na eleição? Dilma tem 5,5 vezes mais tempo do que Marina...

O horário eleitoral fixo, que é o latifúndio da Dilma, de 12 minutos, praticamente não está sendo mais assistido pela população. No começo dele, bateu 30 pontos de audiência, 10 abaixo do que a última eleição. Agora, quatro anos depois, muito mais gente tem TV a cabo, Netflix, banda larga em casa, formas de pensar uma utilização do tempo que não seja ficar diante da TV. O formato do programa se exauriu, não está mais funcionando como canal de comunicação. Diferentemente daqueles spots de 30 segundos, que passam em meio à programação normal, que têm uma utilidade, de fazer com que candidatos sejam conhecidos pelo eleitor. Por exemplo, o Miro Teixeira, que eu achava que não seria mais candidato, de repente, no meio do futebol, da novela, entra o spot do Miro, com seu número. Aí a pessoa descobre que ele veio a candidato. Para o PT, que tem que enfiar a Dilma falando coisas em 12 minutos, um tempo gigantesco, esse horário rígido não irá reverter o cenário. O que poderia reverter é o contencioso: a Marina ter que se explicar, participar dos debates e não ir bem.Para o segundo turno, o PT tem uma expectativa muito grande de que a Marina deslize, por ambas terem tempos iguais no rádioe TV. A Dilma teria muitas coisas para mostrar, e Marina, não. O problema é: o eleitor já conhece os programas e está avaliando o governo mal. Uma parte da população não quer mais esse governo. Cansou, por uma série de razões. Com a economia parada, o governo mal avaliado, o PT está muito queimado.

O PSDB vai embarcar no governo Marina, se ela ganhar?

Não tem outro jeito. O PSDB acaba se não for para o governo da Marina. Apesar de ter São Paulo, deve perder o governo de Minas,e isso já é um golpe muito forte.Do ponto de vista político, o PSDB sai arrasado. Mas pode fazer uma bancada de 50 a 60 deputados federais. E Marina vai precisar de centenas de técnicos para fazer a máquina andar. O PSDB tem esses técnicos em seus quadros, nos estados. Acho que o PSDB vai em peso para o governo,como base de sustentação, e vai querer influenciar nas decisões.


Sobre o fim de uma era (Fernando Gabeira)





No livro de Milan Kundera “A festa da insignificância”, um personagem disse: “Ninguém em torno de Stálin sabia mais o que é uma brincadeira. É por isso, a meu ver, que um grande novo período da história se anunciava”. O personagem, chamado Charles, referia-se a uma piada que Stálin contava e nenhum dos seus ministros conseguia rir, com medo de que o ditador estivesse falando sério.

É muito difícil prever fins de era. Mas quando o país entra numa recessão econômica é razoável prever o fim de uma longa política que resultou num desastre: foi a pior performance da História, pior que a do Marechal Floriano, em tempo de guerra.

No Flamengo, um amigo me perguntou o que era recessão técnica. Repeti o que tenho lido: o país não cresceu nos dois últimos trimestres. É como um time que passasse meio ano sem vencer.

— Se é a recessão técnica, por que não demitir o técnico, como no futebol? — concluiu o amigo.

No jogo democrático troca-se o grande técnico de quatro em quatro anos, com direito a mais quatro. O amigo perguntou: quem e como vai nos tirar desse buraco? Se fosse só a recessão econômica as coisas seriam mais simples. Minha resposta seria limitada aos projetos e equipes econômicas.

Mas há uma crise de outra natureza: o imenso abismo entre o sistema político e as aspirações cotidianas. Para milhões de brasileiros, o programa eleitoral na tevê não interessa. Muitos limitam-se a se divertir um pouco com mensagens e figuras que parecem de outra galáxia.

O clima em Brasília é de terra arrasada. O governo e seus aliados tiveram o maior empenho em nivelar por baixo. A frase da velha senhora, na peça de Friedrich Dürrenmatt, foi o guia da esquerda no poder: “O mundo fez de mim uma puta. Vou fazer do mundo um bordel”.

Contei ao amigo do Flamengo que durante muitos meses mostramos que havia algo de errado na economia, que o ciclo estava esgotado.

Dilma e a artilharia do PT nos chamavam de urubus. Tinham e têm, até hoje, confiança de que estão no caminho certo. O que fazer? Se no Planalto animalizam a oposição, o que esperar dos militantes na planície? Sou meio vegetariano, mas admiro a elegância do voo do urubu.

Mesmo sem crise econômica, já seria delicado o momento de rejeição aos políticos. Com ela, aumentam as chances de mudança. Os caminhos para superar a crise econômica, de uma certa forma, já estavam implícitos nesses anos de crítica. Não há uma grande invenção no horizonte.

Para superar a crise de confiança na política, as alternativas são bem mais complicados. Desejo profundamente uma reforma que restabeleça em nosso pais um mínimo de confiança na democracia representativa. Tenho reservas quanto ao rótulo de uma nova política. Sou escaldado com aquele conceito do novo homem, na revolução cubana. Quantos não foram fuzilados ou presos porque não cabiam no modelo?

Se o leitor de Guevara se dedicar a algumas peças de Shakespeare vai compreender que as pessoas, de uma certa forma, são sempre as mesmas ao longo do tempo: imperfeitas, contraditórias, comoventes, limitadas. No entanto, é possível fazer algo melhor no Brasil. A sinceridade de alguns líderes, por exemplo, é algo que pode contribuir para a redução do abismo.

Não há mágicas para criar um novo mundo político. Mas há possibilidades de algo melhor. Por que não aceitar isto? Quem esperou um novo mundo, amanhãs que cantam, sociedades perfeitas, aprendeu, desde que tenha suportado as dores, que o buraco é mais embaixo. A existência de razões para o fim de uma era não basta para inaugurar uma outra. Os atores são importantes, sobretudo se concordarem com alguns pontos essenciais e mantiverem a unidade diante dos anos difíceis que virão.

De um ponto vista econômico a experiência chavista na Venezuela é um fracasso. Mas ainda assim, na últimas eleições, a maioria preferiu Nicolás Maduro. Hoje, na Venezuela, os consumidores passam por uma identificação digital antes das compras. É para evitar que comprem duas vezes no mesmo dia. Com todo o fracasso econômico, Maduro ainda se equilibra conversando com Chavez transfigurado em pássaro ou desenhado numa caverna do metrô.

O Brasil não tem os excedentes do petróleo, é mais complexo que a Venezuela. Os dois estão numa encruzilhada. A nossa é menos assustadora, menos presente no cotidiano. Costumo dizer que a nacionalidade não é uma segunda pele. Você pode se desfazer dela, vivendo no estrangeiro. Mas o Brasil tem um peso na identidade de cada um. Quando murcha, murcha uma parte de nós.

Há uma chance real de mudança que encaro com um otimismo moderado, fiel ao mundo de Shakespeare, ao mundo das pessoas reais que, modestamente, querem controle da corrupção, serviços públicos decentes e políticos, ainda que tediosos, razoavelmente confiáveis.
Fonte: O Globo (7/9/2104)

sábado, 6 de setembro de 2014

Não é fácil perder uma reeleição (Alberto Carlos Almeida)




Desde 1936, somente três presidentes americanos que disputaram uma reeleição foram derrotados. Naquele ano, Franklin Delano Roosevelt foi reeleito pela primeira vez. Ele viria a disputar novamente com sucesso o cargo de dirigente máximo dos EUA duas vezes, em 1940 e em 1944. A reeleição era então permitida sem limite para o número de mandatos. O sucesso avassalador de Roosevelt fez com que a reeleição passasse a ser limitada a somente uma vez. Roosevelt morreu no cargo e Truman assumiu, disputou a reeleição em 1948 e venceu.

A lista daqueles que disputaram com sucesso a reeleição é longa: Dwight Eisenhower (1956), Lyndon Johnson (1964), Richard Nixon (1972), Ronald Reagan (1984), Bill Clinton (1996), George W. Bush (2004) e Barack Obama (2012). Os presidentes pós-Roosevelt que não conseguiram se reeleger foram Gerald Ford (1976), Jimmy Carter (1980) e George H. W. Bush (1992). O placar foi de 11 a 3: de todos que disputaram uma reeleição, 11 saíram vitoriosos e três foram derrotados. Ou seja, em mais de 73% das disputas nas quais alguém disputava a reeleição, venceu aquele que ocupava o cargo. Essa enorme assimetria está devidamente incorporada nos modelos estatísticos de previsão de resultados eleitorais, conferindo-se maior probabilidade de vitória a quem disputa a reeleição.

No Brasil, Fernando Henrique foi reeleito em 1998 e Lula, em 2006. Nos dois casos, vitória folgada: FHC ganhou no primeiro turno e Lula venceu com aproximadamente 20 pontos percentuais de vantagem no segundo turno.

No parlamentarismo, em que o voto não é na pessoa de um líder, mas em um partido, a reeleição também é mais frequente. Apenas para lembrar alguns casos: Tony Blair disputou e venceu duas reeleições; na Alemanha, o chanceler Helmut Kohl foi reeleito três vezes, seu sucessor, Gerard Schroeder, foi reeleito uma vez (e perdeu uma) e, mais recentemente, Angela Merkel foi reeleita duas vezes. De volta ao presidencialismo, mas ficando na Europa, perder uma reeleição é tão mais raro do que sair vitorioso. Em 2012, Nicolas Sarkozy foi o primeiro presidente da França a perder uma reeleição nos últimos 30 anos.

Um dos objetivos da reeleição é permitir que o governante dê continuidade a iniciativas e projetos que precisam de tempo para que sejam consolidados. Na atual campanha eleitoral no Brasil, Dilma fala das vantagens dos 12 anos que compreendem os dois governos Lula e seu governo. Essa fala de Dilma só é possível por causa da reeleição. Marina e Aécio - Marina mais do que Aécio - citam virtudes dos governos Fernando Henrique e Lula. Isso só é possível por conta da reeleição. Muitos analistas chamam atenção para o amplo consenso existente, tanto em termos de política econômica quanto na política social. É evidente que a continuidade possibilitada pela reeleição teve um papel central para a formação desse consenso.

Tão importante quanto isso é a perspectiva do eleitor. Para ele, é mais fácil julgar o desempenho de um governo quando aquele que o representa disputa a reeleição. Quando um governante é amplamente aprovado, seu destino mais provável é ser reeleito. Isso aconteceu com Aécio em Minas Gerais em 2006 e com Sérgio Cabral no Rio de Janeiro em 2010. Parte importante do atual discurso de campanha de Aécio na eleição presidencial se deve à possibilidade que ele teve de dar continuidade ao trabalho iniciado em 2002, quando foi eleito pela primeira vez governador de Minas.

Há indícios fortes de que a combinação entre reeleição e Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) é benéfica ao país. A LRF é clara quanto às punições aos governantes que não a cumprem. O instituto da reeleição, porém, estabeleceu um incentivo bastante concreto para que todos se tornassem responsáveis no uso dos recursos públicos. Quando não havia reeleição, era possível endividar o estado ou município de maneira catastrófica porque o problema cairia no colo do sucessor, que não seria o mesmo governante que teria gerado o endividamento. Maluf é o exemplo clássico desse comportamento.

A possibilidade de se reeleger fez com que os políticos que ocupam cargos executivos passassem a governar considerando a necessidade de não gerar dívidas para si próprios e, ao mesmo tempo, fazer coisas que atendessem às demandas do eleitor. A pressão sobre os governantes aumentou: passaram a ter que gerar para o eleitor o bônus de atendê-lo, sem, contudo, passar para a frente o ônus de jogar uma imensa dívida sobre o eventual sucessor.

Os dados de pesquisas eleitorais revelam que, quando um governante disputa a reeleição, a taxa de conversão entre avaliação positiva e voto no governo é bem maior do que quando esse mesmo governante indica e apoia um sucessor. Em nossas eleições presidenciais, Fernando Henrique em 1998 e Lula em 2006 converteram aproximadamente 80% daqueles que avaliavam seus governos como "ótimo" e "bom" em votos para si próprios. Quando Lula fez campanha para Dilma em 2010, essa taxa de conversão foi de pouco mais de 60%.

A adoção da reeleição foi uma imensa reforma política que não levou esse nome. Ela alterou os incentivos na direção certa, facilitou a vida do eleitor e permitiu que políticas que exigem mais tempo para dar resultados passassem a ser adotadas com entusiasmo. Nem mesmo os eventuais aspectos negativos da reeleição foram suficientes para anular seus efeitos positivos para o sistema. Alguns consideram que a reeleição permite o uso desmedido da máquina pública, de maneira a criar uma grande assimetria em favor de quem a disputa. Todavia, de nada adianta ter a chance de se reeleger se a avaliação do governo não for suficientemente boa para fazer do governante o favorito. A eleição de 2014 nos estados deve comprovar essa afirmação.

A maior parte dos governadores que disputam a reeleição será derrotada. Apresentamos anteriormente, nesta coluna, um estudo de dezenas de eleições para governos de Estado, nas quais todos que disputaram a reeleição com mais de 46% de "ótimo" e "bom" foram vitoriosos. Foram derrotados todos os que tiveram às vésperas do pleito menos que 34% de "ótimo" e "bom". Se aplicarmos a regra para os governadores que hoje disputam a reeleição, vamos prever com facilidade (e com acerto) que a maioria será retirada do cargo pelo eleitor. A conclusão é simples: de nada adianta ter a máquina pública se o desempenho do governo for mal avaliado pelos eleitores. Alias, nesse caso, o melhor mesmo é ser de oposição.

Já há tempos venho mostrando nesta coluna que a avaliação "ótimo" e "bom" do governo Dilma a colocava em uma situação arriscada sob a perspectiva de ser reeleita. Afirmei inúmeras vezes que a avaliação do governo Dilma estava no limbo, isto é, qualquer piora da soma de seu "ótimo" e "bom" a colocaria no inferno, que é sinônimo de perder a eleição, e qualquer melhora nesse indicador a colocaria no céu, que é ser reeleita como fizeram Fernando Henrique, Lula e a grande maioria dos presidentes americanos.

A entrada de Marina na disputa eleitoral passou a exigir de Dilma uma avaliação "ótimo" e "bom" mais elevada do que seria a necessária para derrotar Aécio. O motivo é simples: Marina, como tem imagem pessoal semelhante à de Lula, como é considerada pelos eleitores "gente como a gente", que "entende os problemas dos pobres", é mais capaz do que Aécio de obter votos junto a quem avalia positivamente o governo Dilma. É o que está ocorrendo no momento.

Até o momento, a propaganda eleitoral de Dilma não fez com que a avaliação positiva de seu governo melhorasse. A mídia concorreu muito com a propaganda eleitoral e foi dominada, desde o início, na TV e no rádio, pela entrada de Marina na corrida presidencial. A vantagem de Marina sobre Dilma é grande e por isso a campanha de Dilma corre contra o tempo. O favoritismo está do lado de Marina. Seus atributos de imagem fazem com que ela roube eleitores que tenderiam a votar em Dilma. Os atributos de imagem de Dilma, porém, não permitiram até agora que ela conseguisse o mesmo junto aos eleitores oposicionistas que já decidiram votar em Marina.

Caso Dilma venha a ser derrotada, ela fará companhia, na galeria de presidentes que disputaram a reeleição, a Gerald Ford, Jimmy Carter e George H. W. Bush. Trata-se de um acontecimento raro.

Alberto Carlos Almeida, sociólogo, é diretor do Instituto Análise e autor de "A Cabeça do Brasileiro".
Fonte: Valor Econômico (Eu & Fim de Semana)

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Das velhas e novas vivandeiras (Roberto Beling)

A velha UDN (União Democrática Nacional) representava uma classe média ressentida, rançosa e golpista. Verdadeira vivandeira dos quartéis, a cada derrota eleitoral batia na porta dos militares pedindo o golpe do estado como forma de reverter a livre expressão da vontade popular. 
Seu principal tribuno perpetrou a máxima sobre Juscelino Kubtschek: "não pode ser candidato; se candidato, não pode ser eleito; se eleito, não pode tomar posse; se tomar posse, não pode governar (se não corresponde ao exato teor, o espírito da coisa foi mais ou menos por aí).
 Juscelino foi eleito, mas a UDN civil e militar partiu para o golpe para impedir a posse, através da manobra da "licença" do então vice-presidente,  Café Filho, para "tratamento de saúde". A manobra foi abortada e derrotada com o "11 de Novembro", contra-golpe ou o "golpe contra o golpe", liderado pelo General Henrique Lott, então Ministro da Guerra, que derrubou o então Presidente da Câmara, Carlos Luz, que exercia interinamente a Presidência da República, e garantiu a posse do presidente eleito.
Juscelino, o "presidente bossanova", não foi apenas o protagonista 
do processo de modernização e desenvolvimento da nossa economia, mas um estadista que buscou governar sob o signo da conciliação e da pacificação. Mesmo assim, sofreu duas tentativas de golpe, através das aventuras brancaleones de Aragarças e Jacareacanga. Concluiu seu governo e transmitiu o cargo a seu sucessor, eleito pela oposição. Não fez terrorismo político ou verbal, não ameaçou, não tentou nenhum golpe ou manobrou contra a posse do eleito.
Agora, parece que o espírito da velha UDN retorna em novas roupagens com os aliados do Planalto. A beira de uma inesperada derrota e de uma crise de nervos (como diria Almodóvar: mulheres histéricas a beira de um ataque de nervos), eis que as novas vivandeiras e carpideiras das crises, agora sem os quartéis como retaguarda, assumem o discurso lacerdista e tentam atemorizar e chantagear o eleitorado no seu direito de escolha.
É o que posso depreender ao abrir os jornais de hoje e me deparar com as declarações do governador do Ceará, Cid Gomes, que em entrevista ao jornal Diário do Nordeste, disse que Marina Silva não vai concluir o mandato se for eleita: "Eu não dou dois anos de governo para Marina. Ela será deposta, pode escrever."
Só faltou esclarecer quem a deporá e quem será o Lacerda da vez. (no meu facebook, em 03/09/14)

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Os paradoxos não resolvidos da campanha eleitoral (José Álvaro Moisés)





As tentativas de desconstrução da candidatura de Marina da Silva é algo até certo ponto normal. Campanhas eleitorais têm sempre a função de mostrar diferenças entre os candidatos, comparar vícios, virtudes, desempenhos e propostas. O esforço é para os candidatos se apresentarem ao eleitor e, ao mesmo tempo, se distinguirem uns dos outros. Contudo, no caso da atual campanha é notório que quanto mais batem em Marina – algo que o PT e Dilma Rousseff estão fazendo de forma desonesta, intolerante e às vezes brutal – mais ela se consolida e cresce na opinião dos eleitores. Sem deixar de responder aos ataques, Marina rebate mostrando que, em realidade, os verdadeiros problemas estão do outro lado, quer dizer, do lado de quem se revela incapaz de reconhecer erros e apontar caminhos confiáveis para o país, como Dilma.

A nova pesquisa do IBOPE consolidou o crescimento de Marina. Os resultados confirmam a possibilidade de ela vencer as eleições, senão no primeiro, no segundo turno. Isso tem várias implicações, mas a primeira, embora não seja a mais importante, indica que a tradicional polarização PT X PSDB pode ter perdido sentido para os eleitores – ao menos nessas eleições – e que, para além dessas alternativas, o cenário político brasileiro conta com um novo polo, aquele que associa a posição de uma esquerda moderada, comprometida com a estabilidade econômica e com o aprofundamento das políticas sociais, às teses do desenvolvimento sustentável. Não é pouca coisa, isso coloca os eleitores brasileiros, e toda a sociedade, em face de uma nova leitura dos principais desafios estratégicos enfrentados pelo país na atual conjuntura nacional e internacional.

O fato é que, depois do acidente que vitimou Eduardo Campos, a campanha presidencial foi invadida por um novo fenômeno político. Esse fenômeno, representado ou vocalizado por Marina Silva, diz respeito ao mal estar que acomete a democracia brasileira há anos e que desde junho do ano passado passou a ocupar as ruas das principais cidades do país. O mal estar tem dois lados: por uma parte, diz respeito à frustração com o governo do PT, incapaz de manter o crescimento econômico, a modernização social e a melhoria dos costumes e métodos políticos, aí incluídas a eficiência e a competência da gestão de políticas de segurança, educação e saúde públicas. Por outra, se refere à crise da representação e, em especial, ao sentimento de amplos segmentos sociais de que, para além da corrupção que atinge todas as esferas da vida pública, seus interesses e problemas não são levados na devida consideração pelos partidos políticos e pelo Congresso Nacional. Isso pode ser devido a déficits de informação e de cognição, mas as taxas de desconfiança quanto aos partidos e o parlamento são muito altas e crescentes no país, colocando em questão a legitimidade dessas instituições – algo que as pesquisas que tenho conduzido nas últimas décadas comprovaram.

Um dos aspectos mais interessantes – e paradoxais – dessa situação é que o mal estar da política está sendo canalizado por um movimento que é quase um outsider do sistema político brasileiro. Marina, embora tendo o PSB como coadjuvante, não tem, contudo, um partido próprio por trás de si; mas diferente de outras lideranças ou partidos políticos, ela tem sido capaz de dialogar com os protestos que deram voz às avaliações negativas da política e que galvanizam milhões de brasileiros. Como mostraram pesquisas recentes, mais de 70% de entrevistados declaram desejar mudanças na política, nos seus rumos e nos seus procedimentos; ou seja, como diria Norberto Bobbio, a questão não é apenas quem governa, mas como se governa. Até recentemente, no entanto, nenhum partido ou liderança política tinham sido capazes de se conectar com esse sentimento de frustração com os rumos da política, e menos ainda de oferecer uma saída construtiva para o impasse. As tentativas de Dilma Rousseff nesse sentido foram desastrosas, e Aécio, do PSDB, apesar de defender uma gestão moderna, até agora não disse nada de efetivo que o ligasse com os sentimentos de perda e frustração de milhões de eleitores com os rumos da política; andou bem em garantir a continuidade das políticas sociais, mas sobre o modo de fazer política, o papel dos partidos e o enfrentamento da corrupção – que também atingiu o seu partido – não disse sequer uma palavra; isso talvez explique porque, desde o início de agosto, ao invés de crescerem, seus índices de apoio eleitoral só fazem diminuir.

Isso remete a outro paradoxo da atual situação. Em certo sentido, o fenômeno que está assolando a campanha de 2014 é uma espécie de indicador da crise do sistema partidário brasileiro. O que isso quer dizer? Quer dizer que, em que pese o fato de os partidos continuarem atuando no Congresso Nacional – ou seja, na chamada arena decisória -, na hora de sinalizarem rumos para a sociedade padecem de sentido, perdem a eficácia ou emudecem; é sinal de um semi-colapso. Senão, como explicar que tanto o PT, depois de 12 anos na direção do Estado, e o PSDB, com sua experiência no governo federal e em vários governos estaduais importantes, não consigam reagrupar os seus apoiadores para continuarem ou voltarem ao governo? O que explica que não consigam mais mobilizar as suas bases tradicionais de apoio, nem serem capazes de motivar novos segmentos do eleitorado? Isso sem falar do PMDB que, apesar de sempre encontrar meios para se aliar a qualquer governo que se forme, demonstra pouca ou nenhuma vocação para influir na disputa pelo principal cargo majoritário do país.

A crise do sistema partidário pode ser vista por diversos ângulos, mas aqui importa chamar a atenção para a sua incapacidade de operar eficazmente na chamada arena societária, ou seja, para o significado que eles têm para a função de representação política da sociedade. A democracia representativa só funciona bem – e com qualidade – quando os partidos significam, para os eleitores, algo mais do que a simples luta pelo poder e sua permanência nele; em última análise, se não representarem atalhos adequados para as difíceis escolhas dos eleitores sobre as políticas públicas, isso significa que os cidadãos têm pouca ou nenhuma importância no funcionamento da democracia. O risco dos partidos que perdem conexão com a sociedade é de se transformarem em facções fechadas ou oligarquias desvinculadas dos interesses públicos e, assim, rebaixarem a qualidade da democracia.

Uma terceira observação sobre o quadro político também é necessária. Em certo sentido, o atual cenário eleitoral desenha outro paradoxo de difícil solução. Marina e a avalanche de apoios que está recebendo sinalizam claramente a necessidade e o desejo da sociedade por mudanças na política brasileira – e um estrategista do mundo dos negócios já disse que, por isso, talvez ela seja “o nosso Obama”, ou seja, a alternativa que defende, apesar de tudo, que “yes, we can”, isto é, que podemos mudar o nosso modo de fazer política e podemos melhorar a qualidade da nossa democracia. Isto, por um lado, tem a capacidade de sugerir a possibilidade de um novo começo, o que não é pouco em situações que envolvem a descrença e a desesperança de muitos. O problema, contudo, é que isso é insuficiente para assegurar que déficits e distorções institucionais e de comportamento que afetam a democracia brasileira serão enfrentados a partir de 2015.

Mudanças na governança e mesmo nas orientações quanto a políticas estratégicas – como a retomada do crescimento econômico e o aprofundamento das políticas sociais – sempre são possíveis se forem adotadas logo de partida e se o novo governo for capaz de negociar os apoios necessários à sua aprovação. Ao contrário dos ataques que tem recebido, Marina tem indicado que deseja adotar uma perspectiva ampla, capaz de convocar a participação dos melhores quadros de vários partidos.

Embora não vá ser uma negociação fácil, se vier a ocorrer, isso não é impossível, em especial, se a nova liderança política for capaz de conduzir os entendimentos em torno de objetivos claros, transparentes e que tenham amplo apoio da opinião pública. Riscos como os representados pela experiência Collor são menores agora porque todos aprenderam com as lições do passado, e Marina não parece ser alguém que repete erros de mais de 20 anos atrás, seus olhos estão voltados para frente.

Outra coisa, no entanto, é a efetiva concretização da chamada nova política. Por tudo que se viu nos debates – e nos protestos de 2013 -, isso não diz respeito apenas à necessária mudança de comportamento das lideranças. Claro, novas atitudes são indispensáveis e alguns aspectos ficaram evidentes no curso desta campanha: a necessidade de os líderes não mentirem e falarem claramente sobre os problemas do país, de reconhecerem seus erros e se responsabilizarem por eles, e de o país enfrentar – como lembrou Eduardo Jorge – os temas espinhosos que, permanecendo em silêncio, continuam a vitimizar milhares de pessoas: o aborto sem assistência, a realidade das prisões, a violência doméstica contra crianças e mulheres, os assassinatos e agressões contra homossexuais e outras minorias.

Uma nova política, no entanto, é muito mais do que isso, e deve envolver mudanças substanciais no funcionamento das instituições e no modo como as decisões relevantes são tomadas no país. Aqui entramos em um território diferente, que foi tocado apenas de leve nos debates, mesmo por Marina: diz respeito a como aumentar a participação dos cidadãos, a como dar-lhes mais poder na democracia e a como melhorar tanto as instituições de representação como a justiça. A pauta é ampla e complexa e não se resumem ao mero enunciado de que as decisões de políticas públicas devem ser submetidas a controle social. As propostas têm de responder às distorções do financiamento de campanhas eleitorais, à distância que existe entre representados e representantes, às necessárias mudanças no sistema de representação proporcional, à dificuldade de acesso à justiça pelas pessoas comuns, à assimetria das relações entre Executivo e Legislativo, e assim por diante – mas nada disso entrou, de fato, no debate dos candidatos.

Dilma Rousseff, embora tenha retomado a tese do plebiscito para fazer a reforma política, pouco disse sobre o conteúdo da reforma que proporia caso seja reeleita. Aécio, diferente dos demais, quase não se referiu à necessidade da reforma política, a não ser no que se refere ao fim do instituto da reeleição, e nem mesmo sobre o tema da corrupção indicou, por exemplo, como enfrentaria a questão da impunidade, caso eleito. Marina foi quem mais avançou no tema das mudanças, mas mesmo assim a sua defesa da nova política não é suficiente para esclarecer o impulso que ela daria à reforma das instituições democráticas. Além dos conselhos criados pela Constituição de 1988, dos referendos e plebiscitos, como melhorar a participação dos cidadãos e a sua representação política? Como aumentar a presença das mulheres e outros outsiders nos parlamentos? O voto distrital, majoritário ou misto, entrará na pauta? A cláusula de barreira para o funcionamento dos partidos será retomada?
E no caso dos partidos políticos, muitas vezes dominados por oligarquias, haverá alguma preocupação com a sua necessária democratização interna? O país deveria adotar o sistema de primárias para aumentar a influência dos eleitores nas disputas eleitorais?

Todas essas questões permanecem sem esclarecimento ou debate, na atual campanha eleitoral, apesar de que um de seus impulsos mais importantes esteja sendo, precisamente, a defesa da necessidade de o país fazer mudanças na vida política. Ainda há tempo para que esses paradoxos sejam enfrentados, mas não está inteiramente claro quem vai assumir, de fato, a missão de esclarecer melhor a sociedade sobre tudo isso e que liderará o país na direção das mudanças.

José Álvaro Moisés, cientista político e professor da USP
Fonte: O Estado de S. Paulo

terça-feira, 2 de setembro de 2014

A minoria estável de Marina Silva (Raymundo Costa)



A ideia da renúncia seguida do apoio a Marina Silva ronda o candidato Aécio Neves. Em áreas afins de sua campanha e do próprio PSDB, esta saída é vista como a melhor maneira de despachar o PT já no primeiro turno, sem correr o risco de uma eventual virada no segundo turno.

Aécio tem prazos. Assim como o PT, o candidato do PSDB apostou na polarização e se deu mal. O candidato do PSDB ainda acredita numa resposta positiva do eleitorado, em meados de setembro, quando avalia que sua propaganda eleitoral começará a apresentar resultados. De qualquer forma, o programa de Aécio, cada vez mais, fala para Minas Gerais.

Mal na disputa presidencial, Aécio também enfrenta problemas em Minas, onde seu candidato ao governo do Estado, Pimenta da Veiga, está comendo poeira no rastro de Fernando Pimentel, o único petista a liderar a corrida para o governo do Estado, nos quatro maiores colégios eleitorais. O próprio Aécio não tem o desempenho esperado em Minas. Em algum momento da campanha, o candidato terá de se concentrar na campanha mineira, de modo a assegurar sua base de regional de apoio para as próximas eleições.

Também não é certo, à esta altura, que se Aécio desistir e apoiar Marina a fatura será liquidada no primeiro turno. Hoje a presidente está consolidada no segundo turno, graças sobretudo ao forte apelo que seu nome mantém nas regiões Norte e Nordeste. O problema da presidente é que ela não amplia nem para o primeiro nem para o segundo turno, conforme demonstram as últimas pesquisas.

É improvável que Aécio aceite algum tipo de acordo com Marina já no primeiro turno, mas o simples fato de a proposta circular nas áreas afins ao candidato, eleitores fiéis que agora pensam no voto útil em Marina, dá uma ideia do tamanho do apoio que se delineia em torno da candidata do PSB. Na hora que o PT perder a eleição, a disponibilidade dos outros partidos para se aproximar é grande.

No segundo turno, a tendência do PSDB é apoiar Marina Silva e ajudá-la a governar, se ela for eleita, como apontam as pesquisas. Ao contrário do que aconteceu em 1992, quando era oposição e se recusou a compor com o governo Itamar Franco, o PT tem muitos interesses em jogo e deve pensar com mais receptividade a ideia de dar apoio congressual a Marina. O problema é que Marina se tornou a primeira opção ao PT. O mercado financeiro é parceiro de Marina porque não quer o PT no governo.

Nos cálculos dos políticos mais experientes, Marina não precisará compor com o PT. Ela pode fazer maioria tranquila com partidos médios e apoios nos maiores, mas, sobretudo, vai jogar luz sobre o Congresso. Pelo que se diz na campanha, Marina terá uma agenda dura, a fim de levar as pessoas da rua, os manifestantes de junho. É evidente que haverá gente no Congresso tentando esconder com mão de gato, mas será muito mais difícil com uma relação transparente.

Dilma, no momento, tem maioria instável no Congresso. Pode-se afirmar que Marina deve ter uma minoria estável. Ela também vai contar com o apoio da mais tradicional sigla brasileira, o PG, o Partido do Governo, aquele que está com qualquer que seja o presidente no Palácio do Planalto. Mas a candidata do PSB também quer inverter a lógica adotada pela presidente para a nomeação dos ministros.

Assim, não será o PSDB, por exemplo, que vai dizer "eu quero fulano". Marina vai escolher, até porque poderá dizer que não tem interesse na reeleição. É uma negociação que não está sobre a mesa. E quando fala que não quer disputar um segundo mandato, Marina Silva desarma os partidos e seus eventuais candidatos em relação a ela. Pode montar um ministério de melhor qualidade. Eduardo Campos, o candidato cuja morte virou de ponta cabeça a sucessão presidencial, era mais gestor e menos equipe. Marina, que o sucedeu, é menos gestora mas tem mais equipe.

O PSDB deve declarar apoio a Marina Silva no segundo turno da eleição, se as pesquisas atuais forem confirmadas em 5 de outubro. A dúvida no entorno da candidata do PSB é sobre o apoio do PT. Afinal, Lula é candidato declarado em 2018. O fato de Marina não querer disputar um novo mandato ajuda um entendimento, se houver convencimento de que ela não cederá a pressões para permanecer, caso faça um bom governo.

A situação do PT hoje é muito diferente daquela vivida quando o partido teve de decidir se apoiava ou não Itamar Franco, após o impeachment de Fernando Collor. Não se trata simplesmente de uma questão de manter cargos, isso também existe, mas de projetos e políticas em andamento que são muito caras ao partido. Diz um integrante da coordenação da campanha de Dilma: "Na época do governo Itamar nós éramos oposição. Agora, com um monte de gente no governo, nós vamos ficar".

Em meio ao pessimismo que se abateu sobre o PT, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva diz que "ainda" é possível a presidente Dilma Rousseff conquistar a reeleição em outubro. Lula também é mais condescendente com a candidata do que muitos de seus companheiros de partido e da coordenação da campanha eleitoral da presidente.

Segundo Lula, há pelo menos três outros fatores, além da candidata, que jogam contra a presidente, nesta eleição. A primeira é a má avaliação que a população tem da classe política, o que acaba atingindo também quem está no poder, que de certa forma representa o status quo condenado pela maioria dos eleitores.

O segundo aspecto destacado por Lula, em conversas no Instituto Lula, é "o monte de rejeição" do PT, um partido cujos principais líderes estão presos, condenados que foram no julgamento do mensalão. Líderes, aliás, cuja experiência em campanhas eleitorais está fazendo falta agora ao PT, sobretudo em São Paulo

O terceiro aspecto é a "economia desandando", na prática já em recessão técnica. O ex-presidente achava que o PT poderia chegar à eleição com a situação econômica um pouco melhor. E o Volta, Lula? "Não tem jeito". É Dilma até o fim. Lula só gostaria que a candidata fosse um pouco mais afável.
Fonte: Valor Econômico

O novo programa do PSB (Renato Janine Ribeiro)



Confesso: o programa de governo que li com maior atenção foi o de Marina Silva. Posso criticá-lo e o farei, mas jamais ocultei a admiração por ela e pelo que traz para a discussão pública. Vejamos as propostas políticas do início de seu Eixo I, "Estado e democracia de alta intensidade". Recomendo a leitura do programa. Um dos maiores elogios à candidatura é que ela escreve e assina o que realmente quer. Não é um documento só para a Justiça eleitoral. Tenho ouvido gente dizer que programa se compra ou se encomenda, e depois se esquece. Advirto: não é essa a intenção da candidata.

O melhor da Rede é a vontade de empoderar a sociedade para discutir o que, hoje, é monopólio dos partidos e dos políticos. O projeto acerta ao dizer que não bastam choque de gestão ou eficiência gerencial, pois conferem mais poder ao gestor e desconhecem o caráter essencialmente político, até popular, da reforma do Estado - que deve aumentar seu teor de democracia, assim como democratizar mais a sociedade. A democracia atual é de baixa qualidade porque avessa às formas de participação: diagnóstico de esquerda, com o qual o PSDB dificilmente concordaria. Marina quer mais povo, não menos, no Estado. Critica a concentração de poder. Exige transparência, facilitada pelos recursos digitais hoje disponíveis. Não é fortuito que só ela, dentre as lideranças de oposição, não tenha atacado o decreto de Dilma Rousseff sobre a participação popular. Propõe "plebiscitos e consultas populares, conselhos sociais ou de gestão de políticas públicas, orçamento democrático, conferências temáticas e de segmentos específicos". Elenca um rol admirável de formas de participação.

O projeto de fazer a política sair dos gabinetes, das câmaras, para estar na sociedade, seja em reuniões presenciais, seja em formas de atuação virtuais, é ético e oportuno. É enorme o atual desinteresse pela política, o desdém pelos políticos; quer-se reverter isso. O PT na oposição falava em democracia direta, a Rede em democracia de alta intensidade. Não são a mesma coisa. O PT pensou na democracia direta a partir de movimentos sindicais, aos quais se associavam, com igual legitimidade, movimentos sociais e de vizinhança, grupos unidos por queixas e projetos comuns, como homossexuais, negros, mulheres, usuários de drogas, artistas, em suma, quem acreditasse que outro mundo é possível. A Rede saúda os movimentos sociais "históricos" e quer combiná-los com "as mobilizações que surgem por meio das novas tecnologias", em referência às assim chamadas revoluções do Twitter e do Facebook. É um pouco vago, mas saúdo esse aprofundamento do projeto de democracia participativa de Franco Montoro ou essa retomada da democracia direta do PT em suas primeiras décadas.

Mas, quando chegamos à página 15, um "box" pretende traduzir este arrazoado - sério, correto, prioritário - em medidas que devam "deflagrar" a reforma política. Contudo, esse minirresumo executivo não bate com a filosofia antes exposta. Os meios não dialogam com os fins! Da filosofia se passa para medidas práticas - mas sem relação com ela. No "box", é só política institucional. O que se propõe de prático e de imediato? Primeiro, a coincidência de todos os mandatos, inclusive municipais, numa única eleição a cada cinco anos, sem reeleição. Já defendi a reeleição e não volto ao tema. Mas há no país uma queixa constante sobre as eleições federais e estaduais que, sendo simultâneas, nos fazem preencher ao mesmo tempo cinco ou seis cargos. Somar-lhes as municipais fará elegermos de uma só vez sete ou oito cargos. Ora, se este ano a campanha presidencial nublou a dos governadores, para não falar dos legislativos, como será se renovarmos todos os cargos ao mesmo tempo? E por que eleições mais espaçadas, e não mais frequentes? Tudo isso despolitiza. A escolha será menos meditada do que já é hoje. O que vai contra os ideais do programa.

E uma contradição: quer-se preencher os "cargos proporcionais" segundo "a Verdade Eleitoral", definida como a regra de proclamar eleitos os candidatos individualmente mais votados, sem levar em conta o partido ou coalizão a que pertençam. É curioso que isso seja exatamente o "distritão" proposto pelo vice-presidente Michel Temer. Aliás, assim os cargos deixam de ser preenchidos proporcionalmente, portanto a expressão "cargos proporcionais" deveria ser trocada por "deputados e vereadores". Mas isso acaba com os partidos. Na verdade, as candidaturas avulsas, adiante recomendadas, deixam de ser a exceção e se tornam a regra. Todas as candidaturas serão avulsas. Não conheço país no mundo que adote esse critério, dado que esses cargos são preenchidos pelo voto ou distrital ou proporcional.

Há duas más consequências: primeira, cada candidato terá como adversários todos os demais candidatos, não sendo de seu interesse aliar-se ou somar suas forças a ninguém que dispute o mesmo cargo. Segunda, os partidos se liquefazem.

Assim o mandato deverá pertencer ao eleito, não ao partido. Daí, a troca de partidos estará na lógica do sistema. Há o risco de que, em vez de criar canais paralelos aos da democracia representativa, esta última fique mais frágil, mais vulnerável ao canto de sereia do Poder Executivo. Isso pode até piorar nossa política! Porque, enfim, o programa tem um descompasso entre a meta nobre da maior participação popular, mas que não se traduz em nada concreto, e as reformas concretas, só que confusas e possivelmente com efeitos indesejados. Ainda estamos longe do ideal, que aprovo, de uma democracia de alta intensidade.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico