quinta-feira, 11 de junho de 2020

Ir às ruas como em 1984 e não como em 2013 (Fernando Abrucio)

 As mobilizações de massa de 2013 fazem aniversário neste mês. De um modo ou de outro, elas mudaram a política brasileira. A origem estava na reivindicação de redução das tarifas de ônibus, mas o que veio depois foi uma miscelânea de reclamações: contra a corrupção, a má qualidade dos serviços públicos, a Copa do Mundo (e nem sabiam do 7 a1!) e, sobretudo, os governos, os partidos e os políticos.

É difícil dizer quais foram os resultados relacionados diretamente a essas manifestações, pois muita coisa aconteceu no meio do caminho. Não obstante, seu sentido despolitizador ajudou a criar um caldo de cultura autoritário que permitiu a ascensão de Bolsonaro ao poder.
A chegada de junho promete trazer novas manifestações sociais, agora mais voltadas à defesa da democracia. Não é mais uma crítica à política em geral, como em 2013. Ao contrário, trata-se de uma luta pela preservação da política democrática definidora dos rumos do país. O alvo é mais específico: as ideias do bolsonarismo, identificadas com uma visão autoritária ou até fascista.
Embora tenha um sentido de oposição contra o atual presidente, não se orienta exclusivamente por seu impeachment, como ocorreu em 1992 com os “cara-pintadas”. Poder viver e respirar sob o regime democrático, em todos os seus significados, é o lema que está juntando todos os que estão querendo ir para as ruas.
É difícil prever o tamanho que essas manifestações vão ter, afora ser mais complicado ainda definir qual será o seu destino. Mas há vários fatores que apontam para uma necessidade social de ir às ruas e que deverão mobilizar muita gente no domingo. É preciso entender o contexto gerador desse fenômeno, bem como seus desafios. De antemão, fica uma provocação: seus organizadores e os manifestantes deveriam utilizar mais os referenciais que orientaram 1984 do que a lógica de 2013.
Sete fatores devem impulsionar as mobilizações de rua pela democracia. O primeiro deles é que, gradualmente, alguns estão se organizando para defender a democracia. Sem a liderança e a tomada de iniciativa, nenhuma ação coletiva acontece. São grupos e pessoas que não descreem das instituições políticas, como muitos em 2013, mas perceberam que a defesa do jogo democrático já não pode ficar circunscrita à esfera do Congresso Nacional ou do STF.
Um segundo fator chama atenção: há uma diversidade de posições políticas e sociais que buscam se juntar. À liderança inicial de pessoas ligadas às torcidas de futebol se somam alguns manifestos pluralistas escritos em defesa da democracia. As jornadas de junho de 2013 atraíram pessoas de diversas visões de mundo, porém, seu resultado final foi a criação de uma enorme polarização na sociedade brasileira, cujo desfecho eleitoral foi o PT versus o antipetismo de Bolsonaro.
As consequências negativas desse processo, vistas agora com o crescimento do autoritarismo do presidente e seus apoiadores, estão congregando uma miríade de pessoas que estavam brigando poucos meses atrás.
A aproximação de grupos e pessoas com visões diferentes de mundo está vinculada à defesa comum da democracia, mas também à piora no sentimento geral em relação ao governo Bolsonaro. Sua rejeição vem crescendo e seus níveis de péssimo e ruim estão em patamares muito altos. Eis aqui um terceiro fator: a impopularidade crescente aumentou a irritação de grande parte dos brasileiros (os 70%, segundo certos líderes) com o desgoverno atual.
O lugar onde essas manifestações vão começar a se expressar são as grandes cidades brasileiras. Mais um fator impulsionador aparece aqui: as periferias urbanas estão sendo muito atingidas pela combinação da pandemia (e do fracasso do Ministério da Saúde nesse processo) com a crise econômica. Há espaço para o crescimento desse sentimento em outras partes do país, mas as capitais devem ser o centro dessa onda de mobilizações pela democracia.
De todo modo, vale ressaltar que a situação sanitária e social tende a piorar nos próximos dois meses, porque a flexibilização do isolamento social está sendo feita de forma precipitada em parte do Brasil, com muita gente ainda morrendo de covid-19, e as medidas econômicas do governo federal parecem insuficientes para tirar o país da crise até o fim do ano.
Outro aspecto de curto prazo deve impulsionar a ida às ruas: as mobilizações nos Estados Unidos em relação à questão racial. O cruel homicídio de George Floyd pela polícia americana gerou uma onda de revoltas por lá que tende a causar impacto em parcelas da população urbana brasileira, especialmente nas áreas mais periféricas. Afinal, o racismo à brasileira gera a morte de muitos negros pelo país, com casos paradigmáticos de necropolítica do Estado, como o caso do jovem João Pedro no Rio de Janeiro.
O impulso às mobilizações passa, ainda, pelo apoio e disseminação de informação feita pelos principais órgãos de imprensa, por organizações da sociedade civil, por artistas nas redes sociais e lideranças intelectuais. É importante realçar que qualquer violência ou obstáculo colocado contra essas manifestações de rua será criticado pelos meios de comunicação de massa. O que antes era opinião difusa e desorganizada contra os disparates do bolsonarismo, poderá se transformar numa bola de neve, sobretudo se houver violência contra os manifestantes.
Para completar essa gama de fatores, há uma sensação de cansaço em grande parte da sociedade brasileira com as provocações do bolsonarismo em meio à pandemia. Aqueles que cumpriram o isolamento social eram criticados por Bolsonaro, ao mesmo tempo em que o presidente e seus fiéis iam às ruas fazer suas mobilizações contra a política sanitária e as instituições democráticas. Foram vários fins de semana rindo da maioria da população que seguia a ciência e respeitava a democracia.
As investigações contra os bolsonaristas e a família presidencial os fizeram dobrar a aposta em formatos autoritários de discurso e ação, com marchas imitando a Ku Klux Kan, além de usar simbologias vinculadas ao nazismo e ao fascismo. Criou-se um clima político extremista e tenebroso, algo que está sufocando e indignando parcelas importantes da população.
Ao longo dos três meses da pandemia, que afetou fortemente uma sociedade extremamente desigual como é o Brasil, lideranças institucionais e a mídia tiveram de defender a democracia brasileira das ações de Bolsonaro e seus aliados em várias ocasiões. Mas esse tipo de ação terá de se somar ao reforço das ruas, ganhando assim maior poder para limitar o poder presidencial - ou ao menos mostrar os custos políticos vinculados ao comportamento bolsonarista, principalmente aos militares.
A volta de manifestações populares em defesa da democracia traz muitas oportunidades de melhorar o ambiente político, garantindo que o país não caía nas garras do autoritarismo. Entretanto, também há riscos relacionados a esse processo. O primeiro é que a junção de tanta gente, mesmo que em nome da liberdade de todos os brasileiros (e não só dos bolsonaristas), pode piorar a situação da pandemia.
A disseminação do vírus deveria ser evitada ao máximo e, por isso, todos os cuidados para evitar contrair ou repassar a doença deveriam ser tomados. Como isso é possível no meio da avenida Paulista ou na faixa estreita da praia de Copacabana? Essa séria ameaça é uma arma dos bolsonaristas desde março, uma forma de o presidente se colocar como o “dono das ruas”. Será preciso fazer um cálculo de custo/benefício que deve enfrentar o cinismo bolsonarista e garantir a proteção às instituições democráticas.
O segundo risco está nos possíveis confrontos com manifestantes bolsonaristas e/ou com a Polícia Militar. Bolsonaro aposta no caos para se colocar à sociedade como o defensor da ordem. Haverá muitas provocações de rua, pois o bolsonarismo contém hoje gente treinada para arranjar confusão e gerar violência. São verdadeiras milícias políticas. Conseguir lidar com essa situação vai exigir muita maturidade política.

A maior das ameaças está na perda da unidade e de foco dessas mobilizações. Agora, não adianta mais ficar discutindo se PSDB, PT, DEM, PSol ou Novo estão certos, se o melhor para o país é ter Ciro, Huck, Lula, Doria, Amoedo ou qualquer outra liderança no lugar de Bolsonaro. Todos devem estar juntos em prol da democracia, pois, do contrário, não terão o que debater e com quem disputar a Presidência da República em 2022. Quem não entender isso, será engolido pelos fatos e ficará no museu da história política brasileira.

Por tudo isso, o modelo que os manifestantes deveriam utilizar como bússola deveria ser o da Campanha das Diretas em 1984, e não a experiência desagregadora e despolitizadora de 2013. Naquele final do regime militar, houve uma frente ampla de políticos que buscou apoio popular em todos os segmentos sociais. O objetivo foi valorizar a política e os políticos, em vez de depreciar o jogo institucional. Foi feita aliança com os governos estaduais, de modo que governadores e líderes sociais mostraram à PM a importância do momento. E a palavra de ordem era uma só: a democracia é o ponto de partida para resolver todos os problemas do país. Essa é uma lembrança importante para os dias de hoje: o combate à pandemia e à crise econômica não poderá se dar por fora nem contra as instituições democráticas.
Valor Econômico/ 

5 de junho de 2020

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