O ministro Paulo Guedes misturou as palavras “AI-5”, “Lula”, “povo na rua” em sua entrevista de Washington. É evidente que nada disso faz sentido. Não há ninguém quebrando nada pelas ruas, a retórica de Lula serve para animar sua base militante, o país tem uma pauta imensa de reformas a fazer no Congresso e há sinais claros de retomada econômica.
A fala de Guedes, como seria previsível, serviu como prato cheio a nossa algazarra digital. Qualquer fala sugerindo, ou aventando a hipótese absurda de um ato de exceção no Brasil deve ser repudiada como uma irresponsabilidade. Há menções desse tipo todos os dias, aos milhares, nas redes sociais. Mas elas não podem vir de quem ocupa posições de Estado.
O ministro Paulo Guedes durante entrevista à imprensa na embaixada do Brasil em Washington - Olivier Douliery-25.nov.19/AFP
Diria que a leitura política do país feita por Guedes é equivocada (não há uma “ameaça chilena” no Brasil), assim como sua menção a uma época que o país soube superar, a duras penas. Além disso, há o dito popular: não se fala em corda em casa de enforcado.
A fala de Guedes incomoda por uma razão peculiar: nosso ministro é um liberal e comanda a economia em um governo que não faz mistério de suas simpatias pelo ciclo autoritário na América Latina. Imagino que tenha sido isso que levou um analista a sugerir que Guedes se mostrava cada vez mais como um pinochestista.
Descontando o óbvio exagero, há um ponto interessante aí. Pinochestista é alguém que preza a liberdade de mercado, mas dispensa a democracia política. Por estranho que pareça, há muita gente que simpatiza, nos dias de hoje, com variantes dessa tese. Ela foi alimentada, à direita e à esquerda, pelo sucesso econômico do modelo chinês.
Jason Brennan e sua epistocracia, isto é, o governo dos que “sabem”, em vez de um sistema refém da irracionalidade da multidão, navegam por essas águas. A tese é estranha à grande tradição liberal, por muitas razões. A ideia de que um ditador benevolente e racional serviria para garantir nossos direitos e uma vida tranquila no mercado não responde a uma questão muito simples: como fazemos para mandar embora o ditador quando ele perde sua racionalidade e benevolência?
James Madison matou essa charada à época da formação americana. É porque os homens não são anjos que precisamos de uma engenharia complexa de freios e contrapesos para garantir nossos direitos. O Brasil, entre idas e vindas, vem construindo uma engenharia desse tipo. Ela ainda é tremendamente falha, mas (como diz o próprio ministro Guedes) somos uma “democracia vibrante”, e seria muita burrice abrir mão do caminho que já percorremos.
Há uma razão mais profunda que torna o liberalismo e a democracia irmãos siameses. O exercício da palavra e da política expressam, em si mesmos, um direito individual. Vale o mesmo para as demais esferas da liberdade humana. Não faz sentido determinar (a partir de que lugar?) que a liberdade de empreender é mais importante do que a liberdade de opinar, criar uma obra de arte ou professar esta ou aquela religião.
É isto, no fundo, que define uma sociedade liberal: um delicado respeito aos infinitos modos de realização humana. Isso inclui o cidadão que deseja “mudar o mundo”, a jovem empreendedora da pet shop e um casal, não importa o sexo, que deseja criar os filhos de uma certa maneira. Infinitos modos de vida capazes de se expressar sem que as pessoas se matem pelas ruas.
É por ai que dançam tanto a esquerda como certo conservadorismo de costumes, muito em moda por aqui. Este último tem um problema com a ideia de “diversidade”. Bolsonaro expressa isso quando sugere que o governo deveria financiar apenas filmes compatíveis com nossa “tradição judaico-cristã”.
À esquerda, o problema congênito é aquele que John Tomasi chama de “excepcionalismo econômico”. Em resumo: liberdades são importantes, desde que elas não envolvam a palavrinha “mercado”. Tipo particular de conservadorismo que põe à sombra uma esfera “não relevante” da liberdade individual. E não me refiro às distopias socialistas, que seriam um alvo fácil, mas ao que se vê no dia a dia do debate público e nas votações no Congresso.
A verdade é que o velho e bom liberalismo é uma via estreita no Brasil. Sua recusa simultânea do autoritarismo político, do mandonismo econômico e da tutela do Estado sobre a cultura faz de seus simpatizantes aves raras por estes trópicos. Se somarmos a isso certa disposição para o diálogo e aversão à gritaria política, a imagem que surge é a de um quase deserto.
Folha de S. Paulo/28 de novembro de 2019
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