Minha geração teve a sorte de ver o retorno do Brasil à democracia. Foram algumas décadas de eleições e avanços no campo dos direitos, tornando-se o período mais longo de manutenção de instituições democráticas em toda a história brasileira. Mas, desde de 2013, o sistema político entrou em crise. O pior vem agora, com a eleição do presidente Bolsonaro e a volta de discursos em prol do autoritarismo. Sombras terríveis do passado, inesperadamente, parecem rondar a nação.
Fazer esse diagnóstico é ainda mais dolorido por causa da morte do mestre Wanderley Guilherme dos Santos, o cientista político brasileiro que mais se preocupou, em profundidade e número de textos, com a questão democrática. Ele começou sua carreira escrevendo um texto premonitório. Era o ano de 1962 e a obra intitulava-se “Quem Dará o Golpe no Brasil”. Wanderley acertou em cheio: os militares tomariam o poder, mas ele também realçou, para desgosto de parte da esquerda da época, que todas as forças políticas não eram então, digamos, muito democráticas.
Wanderley Guilherme iniciava uma geração de cientistas sociais brasileiros defensores da tese de que a democracia importa em si e sem qualificativos. Antes dele, com raras exceções, os pensadores políticos tinham outras preocupações maiores, como a formação da nação ou o desenvolvimento, e para atingir tais objetivos o regime democrático não era necessariamente o caminho desejado. Talvez pudéssemos lembrar de Sérgio Buarque de Holanda e, sobretudo, de Vitor Nunes Leal como precursores da visão democrática professada por Wanderley, mas ambos ainda não tinham investigado tão a fundo de que maneira pode se construir um regime democrático.
O diferencial de Wanderley Guilherme foi, então, não só defender a democracia como um fim em si mesma, mas também procurar compreender as bases políticas que constituem o regime democrático.
Essas bases políticas não prescindem de condicionantes sociais estruturais, mas não se esgotam neles. Eis aqui mais uma novidade que Wanderley trazia ao debate brasileiro, algo que certamente se consolidou em seu doutorado nos Estados Unidos, feito em Stanford e defendido em 1969.
Foi um trabalho pioneiro que depois recebeu várias modificações até ser publicado anos mais tarde como livro (“Sessenta e Quatro: Anatomia da Crise”), e que mostrava o papel dos atores políticos no processo que levou ao golpe de 1964.
A leitura que fazia de 1964 abriu uma avenida enorme para os pesquisadores que queriam estudar as escolhas dos atores políticos e sociais, e não apenas como as estruturas definiam o que deveria acontecer. Lembro de trabalhos vigorosos sobre o golpe, que mexeram com a historiografia brasileira, como o de Argelina Figueiredo, ou mesmo a saga do regime militar contada por Elio Gaspari. Ambos os trabalhos beberam na fonte analítica inaugurada por Wanderley.
Da defesa incondicional da democracia e da importância dada ao seu aspecto intrinsecamente político seguiu-se outro caminho: estudar o funcionamento das instituições. Aqui não podemos dizer que Wanderley foi um precursor, pois antes dele houve importantes pesquisadores dessa matéria, como os que publicavam na “Revista Brasileira de Estudos Políticos” (criada em Minas Gerais em 1956), que falavam dos vários mecanismos do sistema representativo e como eles funcionavam no Brasil.
A novidade foi menos em dar a importância ao assunto e mais em aprofundar o entendimento dessa temática com novos instrumentos e saberes da ciência política, gerando uma mistura robusta entre teoria normativa e modelos empíricos de pesquisa.
Em outras palavras, Wanderley ajudou a criar a ciência política brasileira moderna, uma combinação de preocupações normativas amplas, mas que não perdem a especificidade do Brasil, com instrumentos rigorosos de investigação empírica e cujo foco central se tornou a questão democrática. Claro que há outras vias de pesquisa e temáticas interessantes que vêm sendo desenvolvidas por estudiosos brasileiros, mas o eixo principal se tornou o entendimento dos resultados, possibilidades e dilemas da democracia brasileira.
Foi seguindo essa trilha que gerações de cientistas políticos se formaram nos últimos 40 anos. O próprio Wanderley participou de maneira institucional desse processo, com sua atuação decisiva para a criação e desenvolvimento do Iuperj. Isso influenciou outros centros universitários e o debate público também. Diria que esse modelo centrado no agir político e na construção institucional da democracia foi essencial para o desenvolvimento dos dois principais partidos da redemocratização, o PSDB e o PT.
Embora sejam adversários entre si, Fernando Henrique e Lula, como lideranças políticas, diferenciaram-se dos políticos do pré-1964, e de muitos dos que ainda estão entre nós, porque entenderam com precisão a forma como deveriam atuar democraticamente dentro do jogo institucional.
Ao longo dos anos, ouvi muitas críticas ao trabalho de Wanderley Guilherme. É provável que algumas delas estejam corretas - ele próprio gostava de dizer que o bom argumento precisa dar espaço ao contraditório e à possibilidade de refutação. Entretanto, é preciso limpar os exageros.
Em primeiro lugar, muito se afirma que ele era apenas um conservador institucional, contrário à qualquer mudança do sistema. Creio que o mais correto seja dizer que ele defendia firmemente um modelo de sistema representativo. Tratava-se do paradigma proporcionalista, tomado como o mais adequado para garantir a participação dos mais diversos grupos sociais na disputa pelo poder político. Seu foco era aumentar a competição e o respeito ao jogo competitivo derivado das eleições.
Claro que um modelo proporcionalista, ou consociativo, pode ter mais de uma feição institucional, de modo que não há uma única forma de realizá-lo. Pode-se dizer que Wanderley deu menos importância à variável da republicanização e da “accountability” do sistema político, de matriz mais liberal. Só que estava mais preocupado com a constante oligarquização do poder político no Brasil, principal forma de reduzir a igualdade entre os cidadãos.
A matriz democrática de Wanderley pode ser claramente casada com uma proposta mais liberal de controle do poder. Criar uma impossibilidade lógica de união aqui é deixar de avançar no conhecimento do sistema democrático. Contudo, como o mestre sempre avisava, isso deve ser feito respeitando as preferências derivadas do processo eleitoral. Propor mais controles dos governantes derivados de instituições não eleitas pode ser perigoso casos estas não respeitem a legitimidade inscrita no voto.
Mais do que antirreformista, Wanderley era um incrementalista, que temia mudanças bruscas e totalizantes, pois é preciso ter muito cuidado com consequências institucionais que geralmente ignoramos ao propor mudanças legais. Talvez por isso ele ficava tão bravo com a ideia de que a reforma política é a mãe de todas as reformas.
Não é necessário concordar com sua proposta de modelo institucional nem com a velocidade da transformação que ele acreditava ser a mais sensata. No entanto, é inegável que ele estava certo de que é preciso ter cuidado com experimentos institucionais, avaliando antes se o modelo existente foi realmente bem testado. Aliás, aqui ele realçava um ponto essencial: as elites políticas brasileiras costumam só seguir as regras quando essas lhes favorecem. Nesse sentido, se o país conseguisse respeitar as instituições democráticas, o que dizem as leis e os votos, isso já seria uma revolução.
Convivi mais intensamente com Wanderley no período em que ocupávamos o mesmo espaço com colunas no Valor - eu às segundas e ele às quintas - durante a primeira metade dos anos 2000. Conversávamos por e-mail sobre nossos textos, sendo que ele falava mais sobre os meus artigos, elogiando, criticando e criando alguma forma de debate. Sinto, quase de maneira psicanalítica, que deveria ter comentado mais os textos dele, demonstrado minha admiração.
Todavia, aprendi muito mais com ele quando discordava de suas posições - e isso aconteceu algumas vezes. Discutíamos sempre de uma forma leve e bem-humorada, com estocadas mútuas convivendo com um respeito que só existe entre aqueles que seguem a máxima de Jurgen Habermas sobre a democracia: só é democrata quem supõe mudar de opinião.
O último comentário que fez sobre uma coluna minha foi mais recentemente. Entre elogios e críticas, ele se mostrou preocupado com o momento atual. Algo como se tivéssemos que repensar as condições políticas que garantiriam a democracia brasileira depois dos furacões que nos assolaram - as manifestações de 2013, o impeachment e a ascensão do bolsonarismo. Afinal, o regime democrático que ele lutou para compreender e construir estava, pela primeira vez em décadas, sendo desprezado pelo núcleo principal do poder, a família Bolsonaro, cada vez mais fazendo discursos e atos perigosamente autoritários.
É por isso que temos de seguir o principal legado intelectual que Wanderley Guilherme nos deixou: a reflexão sobre a democracia e sua defesa. E isso nunca foi tão importante como agora.
Valor Econômico (1 de novembro de 2019)
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