As tão famosas ADCs — que, afinal, resultaram em que só se possa cumprir pena depois do trânsito em julgado — estavam prontas a serem votadas desde dezembro 2017. Lula ainda não fora preso. Por covardia, porém, o Supremo — supondo poder se adiar para driblar o calor das ruas — permitiu que o que deveria ser uma deliberação impessoal relativa ao controle abstrato de constitucionalidade aos poucos se convertesse em veredicto fulanizado sobre o destino do ex-presidente.
Aqui estamos. O STF, temendo a impopularidade, quis fugir das ruas — e, com isso, só fez trazê-las para sua porta, por ora com tomates projetados contra as faces impressas dos ministros. Aqui estamos. Agora com o Parlamento pressionado a dar resposta por meio de emenda constitucional que se lance contra cláusula pétrea da Carta — do que decorreria veto do Supremo, choque entre Poderes e nova reação popular. O bolsonarismo agradecerá.
Aqui estamos. Novamente, a vida pública brasileira se orienta em função do ex-presidente. O STF, com medo da impopularidade de um julgamento cuja repercussão geral o beneficiasse, quis escapar das ruas — e às ruas ora entrega uma decisão impopular percebida como tomada especificamente em benefício de Lula.
O ex-presidente agradece. O bolsonarismo também.
Lula está solto; o STF, enfraquecido. O projeto de poder bolsonarista não saberia pedir presente melhor. Lula na rua, a manter o tom beligerante de suas primeiras declarações, a chamar um Chile de irresponsabilidade, é combustível para inflamar a ideia de novo AI-5. A mentalidade bolsonarista opera. Lula solto, por intermédio de um golpe desferido pelo establishment contra o desejo da população, projeta a desordem de que o bolsonarismo precisa para manter a tropa autocrática mobilizada. Lula solto é — para plena influência do imaginário bolsonarista — o Foro de São Paulo agindo.
Lula livre é bolsonarismo livre.
A polarização já encontrou a trilha para radicalizar. A depressão política em que o Brasil se encontra tende a se aprofundar. O tecido social se esgarçou desde há muito. Existe um ímpeto para a convulsão. Elegeu-se a convulsão. Já assim era no retrato — suprassumo da disfuncionalidade — do segundo turno de 2018: um autocrata contra o cavalo de um presidiário.
Não havia como dar certo. O país pagaria a conta. Pagará. O fetiche do liberal econômico não resiste a chão rachado como este. A instabilidade do terreno se agrava. À forja de crises artificiais com centro no próprio presidente da República, este multiplicador de inimigos, soma-se agora a fábrica de “nós contra eles” de um ex-presidente capaz de pregar que o atual governa para milicianos. É o vale-tudo. Não tem como dar certo. O país pagará a conta. Já paga. O megaleilão do pré-sal deu o recado. Vamos às vias de fato? Soco com mão de alface é soco do mesmo jeito. Alguma hora encaixa. A linguagem da violência já se encaixou. Tornou-se o normal. Nunca tantos psicopatas foram tão influentes no Brasil.
A tentativa de plantar aqui uma cultura plebiscitária prospera. Prosperou na Venezuela. É gente na rua. Dos dois lados. Todo mundo cheio de razão. As tribos vão se medir. Democrático, né? Sim. Democrático tanto quanto garantia de país paralisado. Que reforma econômica andará? Quem botará dinheiro aqui, senão para especular?
Advirto, contudo, que a campanha eleitoral não foi lançada. Para tanto, deveria ter acabado em algum momento. Nunca acabou. Bolsonarismo é campanha permanente. Lulopetismo, idem.
O ex-presidente ditará o ritmo. Ele sabe dançar essa dança. Já provou que não precisa estar elegível para — mais do que ser competitivo — escolher a música. Vai esticar a corda da beligerância — associando Bolsonaro às milícias, atacando o lavajatismo e batalhando pela anulação de suas condenações, com o que mira a credibilidade de Moro — e, ao mesmo tempo, tentar se mover para o centro falando em combate à desigualdade.
Não é difícil projetar como o bolsonarismo processará o presente que o Lula Livre oferta. O discurso já está na pista. Uma aposta no sentimento antilulopetista para reproduzir circunstância radicalizada como aquela de 2018: a de união dos virtuosos contra o mal que colocou outrora racionais para se cegarem ante o que o oportunismo bolsonarista encarna e sempre encarnou.
O investimento no adesismo incondicional vai escalar. “ Ou se fecha com Bolsonaro, ou a esquerda volta” — este é o texto. “Veja o que ocorreu na Argentina” — este, o exemplo. A adaptação superficial, para o Brasil, do que se passa na América do Sul não seria complicada. O roteiro está dado. Vem sendo ensaiado faz tempo. Lula solto é o gancho. É o gatilho para a mais perfeita teoria da conspiração. A ameaça está solta. José Dirceu também.
Não tem como dar certo.
O Globo/12 de novembro de 2019
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