Os governantes modernos adotam slogans como seu principal símbolo junto aos cidadãos. O mais conhecido na história brasileira foi o de JK: 50 anos em 5. Com esse lema sintético, Juscelino soube expressar claramente seu bem-sucedido projeto de desenvolvimento. Personagem tipicamente midiático, como foram Collor e Lula, Bolsonaro também propôs dois que podem ajudar o entender o perfil de seu mandato. Um é o oficial do governo: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos. Mas há outro que é emblemático dessa nova era: Mais Brasil, menos Brasília.
Ambos os slogans expressam a visão que Bolsonaro tem do poder. O primeiro é o mais óbvio: o presidente quer simbolizar tanto uma postura patriótica como uma comunhão da política com a religião. O segundo é uma crítica, ao mesmo tempo, à centralização política e ao mundo oficial da política brasiliense - em outras palavras, à velha política, nos termos bolsonaristas.
É possível ler o significado desses lemas sob três óticas. A primeira é a da relação com o eleitorado. A segunda diz respeito ao relacionamento com o sistema político. E a terceira, não menos importante, vincula-se ao modelo de governança das políticas públicas.
O slogan Brasil acima de tudo, Deus acima de todos captou um sentimento conservador forte na população brasileira, que tem raízes antigas, mas que ganhou força com a profunda crise dos últimos anos. Em particular, essa visão de mundo prosperou no ambiente de combate à corrupção e de antipetismo.
Num primeiro plano, o patriotismo foi colocado como antípoda da era petista, com o "verde e amarelo" substituindo o "vermelho comunista". Mas o sentido patriótico vai além: ele é peça-chave frente ao descrédito da classe política frente à população. Nessa linha, é preciso ter um líder que pense no país, e não nos interesses menores e comezinhos predominantes na velha política.
Chama a atenção como Bolsonaro foi muito sagaz de captar essa demanda por patriotismo advinda originalmente das jornadas de junho de 2013. A crítica aos governos e à própria realização da Copa do Mundo da Fifa no Brasil iniciou-se com movimentos mais à esquerda, para logo a seguir ser captada por organizações e ativistas mais à direita. Quando o país parecia caminhar numa tempestade perfeita rumo ao buraco, recuperar a exaltação à Pátria, mesmo após a famosa derrota dos 7 a 1, tornou-se um mantra para várias parcelas da população.
A ligação da política com a religião não é nova no Brasil. Reza a lenda que o presidente Dutra acabou com os cassinos no Brasil para agradar aos sentimentos carolas da primeira-dama. Histórias não faltariam aqui, como a da derrota de Fernando Henrique à Prefeitura de São Paulo porque teria dito num debate que não acreditava em Deus. E os principais candidatos a presidente no país no período recente nunca ignoraram a importância da religiosidade e suas instituições. Basta lembrar o comportamento de Serra e Dilma na eleição de 2010, quando ambos se colocaram contra o aborto de uma forma bastante diversa da trajetória de suas ideias. Porém, mesmo com todos esses cuidados, nenhum dos principais líderes desde a redemocratização tinha abraçado a temática religiosa como Bolsonaro fez em 2018.
O presidente vê nessa vinculação religiosa uma forma de garantir um eleitorado fiel e crescente, em particular os neopentecostais. Mas o propósito é maior do que isso: alçar Deus ao lugar central do discurso político capta um enorme universo do eleitorado brasileiro, que, em meio a uma enorme crise que já dura seis anos, deposita na fé uma de suas maiores esperanças.
Já quanto ao lema Mais Brasil, menos Brasília, a principal característica que salta à vista do ponto de vista eleitoral é a crítica à política tradicional sediada na capital do país, particularmente no Congresso Nacional.
A ideia de centralização versus descentralização não ocupa um lugar central no imaginário político dos brasileiros tal como ocorre nos Estados Unidos. Embora as pesquisas mostrem o aumento da relevância dos municípios na visão dos eleitores, a responsabilização sobre os grandes temas do país continua sendo debitada na conta do governo federal, como se pode perceber na discussão acerca da segurança pública na eleição de 2018, questão constitucionalmente mais a cargo dos governos estaduais.
Só que o patriotismo, a centralidade de Deus e a crítica ao mundo político brasiliense não substituirão a necessidade dos bens básicos à sobrevivência, como emprego, segurança, saúde, educação, moradia e comida no prato. Dito de outro modo, o discurso bolsonarista só terá durabilidade se o seu governo, e não o seu discurso de campanha, der certo. Por isso, é muito importante ver como seus slogans se relacionam com as instituições e as políticas públicas.
A lógica dos slogans bolsonaristas bate de frente com o modelo político-institucional construído nos últimos 30 anos. Na relação com o Congresso, por exemplo, evocar o patriotismo é uma forma de colocar contra a parede a política e os interesses que os parlamentares e seus partidos representam. Obviamente que ninguém tem sentimentos patrióticos descolados de suas ideias e trajetória social. Como diriam os pais fundadores dos Estados Unidos, os homens não são anjos, isto é, seres políticos neutros, e por essa razão é melhor apostar no diálogo, na negociação, na competição e no controle mútuo entre os atores. Qualquer outro caminho para além desse modelo liberal democrático é concentrador de poder, com possíveis consequências autoritárias.
Já a crítica ao oficialismo brasiliense e ao centralismo do país precisam se amparar numa visão mais consistente, pois não está claro ainda como se pretende passar o poder ao Brasil profundo, que seriam o povo e os governos locais. Por vezes Bolsonaro namora com um chavismo pós-moderno, que junta a aglomeração das ruas com as manadas virtuais. Contudo, quando essas formas de mobilização se chocaram com as instituições, até o momento o vencedor tem sido o lado oposto do bolsonarismo, ou seja, o Legislativo e o STF. Basta ver o número de derrotas na produção de decisões legais que o presidente tem sofrido.
A opção por um modelo antissistêmico de governar cabe bem nos dois slogans principais do bolsonarismo, sem que se apresente um outro modelo factível de governabilidade. A sorte do presidente Bolsonaro é que a reforma da Previdência está moderando políticos no Congresso e na Federação. Na hora em que ela for aprovada, e provavelmente o será mesmo com mais cortes do que Paulo Guedes gostaria e numa velocidade mais lenta do que quer o Ministério da Economia, começará uma nova fase do governo, em que os eleitores e os políticos ficarão mais exigentes em relação às políticas públicas.
E aqui entra o ponto mais problemático contido nos dois lemas bolsonaristas aqui analisados. Estes slogans trazem dificuldades para a governança das políticas públicas, pois em vez de orientarem o governo em prol da busca de resultados, produzem um modelo baseado em discursos mobilizadores de guerras culturais. Isso fica mais evidente quando se constata que toda a orientação patriótica e religiosa carrega consigo um forte ranço contrário à experiência governamental e às evidências científicas. Alguns Ministérios setoriais estão seguindo esse padrão, de amadorismo e achismos e provavelmente fracassarão na provisão dos bens que os cidadãos desejam.
Se o governo seguir, a ferro e fogo, o lema Mais Brasil, menos Brasília, talvez produza o contrário do que imagina, dado que a Federação é muito desigual, e muito mais importante do que a dicotomia centralização versus descentralização é a construção de mecanismos mais efetivos de coordenação e cooperação entre União, Estados e municípios. Um exemplo ilustra esse argumento: o pouco caso que o presidente tem tido com a possibilidade de os governos subnacionais ficarem de fora da reforma da Previdência - afinal, isso não deve ser responsabilidade de Brasília, diria Bolsonaro. Ora, caso esse destino se materialize, os serviços públicos do país vão se deteriorar ainda mais, e os governadores e prefeitos vão tirar ainda mais recursos do governo federal, reduzindo o impacto do ajuste fiscal. A melhor tradução de Mais Brasil, no federalismo brasileiro, está na articulação de esforços entre os níveis de governos e não numa separação radical entre eles.
Os dois principais slogans do governo, em resumo, batem de frente com as instituições e geram uma governança capenga das políticas públicas. O lema de JK deu certo porque foi ele capaz de juntar a demanda eleitoral com um modelo governativo efetivo. A campanha eleitoral permanente que Bolsonaro e seus filhos gostam de fazer tem prazo de validade. Quando for aprovada a reforma da Previdência, começará uma nova (e mais difícil) fase - o período Bolsonaro 2 -, marcada pelas eleições municipais e pela maior competição dos partidos com o bolsonarismo, inclusive por parte de alguns aliados atuais. Mas o pior vem depois, quando se iniciar a segunda metade do mandato - o período Bolsonaro 3. Nesse novo estágio temporal após a escolha dos prefeitos, quando o povo já não terá a mesma paciência e esperança, governar será algo muito mais amplo e complexo do que a produção de simbologias.
Valor Econômico/28 de junho de 2019
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