Seis ex-ministros da Educação, em recente nota, falam do grande consenso que teria sido construído no Brasil sobre o setor, que o atual governo estaria desconsiderando. De fato, existe um forte consenso sobre a prioridade que a educação deve ter, e o governo até agora não mostrou uma política para o setor que vá além de cortes orçamentários e posturas ideológicas, diferentemente do que ocorre na economia e na segurança, onde, concordando ou não, existem propostas claras formuladas com o apoio de fortes contingentes de economistas, juízes, promotores e funcionários públicos qualificados.
Mas o consenso é ilusório. Tal como na economia, a educação brasileira, depois de um período de crescimento descontrolado, chegou a um impasse, com milhões de jovens concluindo a educação fundamental semianalfabetos; o ensino médio estagnado e com altíssimas taxas de abandono; um ensino superior público caro, desigual e que não consegue atender a mais do que 25% das matrículas; e um sistema de pós-graduação e pesquisa em grande parte voltado para si mesmo, que cresceu em quantidade, mas não em impacto e relevância científica e econômico-social, com as boas exceções de sempre.
O ponto mais alto deste consenso, segundo os ex-ministros, teria sido o Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado por unanimidade pelo Congresso Nacional em 2014, com planos filhotes para cada Estado e município e que se desdobrava em 10 diretrizes e 20 grandes metas, divididas em 244 estratégias específicas, a serem financiadas com 10% do Produto Interno Bruto (PIB). Para acompanhar tudo isso, contava-se com uma grande parafernália de comissões tripartites estabelecidas com as associações de secretários de Educação estaduais e municipais e fóruns permanentes de negociação. Foi um consenso construído à custa de botar no papel todas as demandas de todos os interessados, e, como escrevi na época com alguns colegas, não havia chance de dar certo, mesmo sem a crise econômica que veio depois. O PNE é um zumbi que se recusa a morrer, e até que seja devidamente enterrado e substituído por um conjunto pequeno de objetivos realistas e bem definidos não há como a educação brasileira avançar.
Dois exemplos recentes do suposto consenso foram a elaboração da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a reforma do ensino médio. A ideia de que todos os estudantes, até determinado nível, precisam compartir um conjunto mínimo de conhecimentos, sobretudo no domínio da linguagem, do raciocínio matemático e de familiaridade com as ciências naturais e sociais, é hoje reconhecida em todas as partes. Mas nenhum país, que eu saiba, tem um documento semelhante à BNCC brasileira, com suas 600 páginas e centenas de habilidades e competências que os estudantes deveriam adquirir. É um texto recheado de linguagem empolada, incompreensível ou meramente retórica, como na introdução, na qual se diz que o objetivo é levar à “educação integral”, a partir de uma “visão plural, singular e integral da criança, do adolescente, do jovem e do adulto – considerando-os como sujeitos de aprendizagem – e promover uma educação voltada ao seu acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e diversidades”.
Compare-se com o Socle Commun francês, de 30 páginas, ou o currículo da Nova Zelândia, resumido em 8 quadros, em linguagem direta e sem adjetivos. A grande lista de assessores, especialistas, colaboradores, pesquisadores, comissões de discussão e leitores críticos mencionados ao final mostra o esforço do MEC de construir um consenso a favor do documento. Só não foram consideradas as críticas mais profundas que chamavam a atenção para a necessidade de chegar a um documento sintético, compreensível e compatível com o estado da arte internacional sobre os processos de aprendizagem.
O outro exemplo foi a reforma do ensino médio, que começou com uma tentativa de quebrar o consenso do currículo único tradicional e propor a implantação de trajetórias escolares diversificadas a combinadas com um núcleo comum. À medida que o projeto ia sendo discutido, o tamanho deste núcleo comum aumentava, atendendo às demandas dos professores das diversas disciplinas, até se transformar numa versão reduzida do currículo tradicional, deixando as trajetórias curriculares em segundo plano e diluindo a proposta inicial. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que deveria ser reformulado para corresponder ao novo formato, continua como está. O novo ensino médio entra em vigor em 2020, e as escolas não sabem o que fazer.
É preciso construir um novo consenso, baseado na ideia de que deve ser possível fazer muito mais com os 5% do PIB que o Brasil já gasta em educação. Com a queda da natalidade, serão menos estudantes e será possível ter menos professores e pagar mais. A profissão docente precisa ser reformada, com melhores cursos de formação, carreiras associadas ao desempenho e facilitando o acesso ao ensino de pessoas com outros perfis. A educação infantil deve deixar de ser meramente assistencialista e ser tratada como etapa essencial de formação. A tolerância com o analfabetismo funcional deve acabar, com o uso de métodos comprovados de alfabetização e acompanhamento de resultados. O segundo ciclo do ensino fundamental precisa ser repensado, e a reforma do ensino médio precisa ser efetivamente implementada, inclusive pela ampliação e fortalecimento da educação técnica. O formato do ensino superior precisa ser revisto, criando mais alternativas de formação em diferentes níveis, e a pós-graduação e a pesquisa precisam se tornar menos acadêmicas e mais vinculadas às necessidades do País. E, em todos os níveis, os papéis do setor público e do privado precisam ser revistos, para que se tornem complementares e livres dos predomínios simétricos do corporativismo e do mercantilismo.
(*) Sociólogo, é membro da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (Conaes)
O Estado de S.Paulo/14 de junho de 2019
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