O Atlas da Violência no Brasil, do Ipea, relativo a 2019, com dados de 2017, nos põe diante da ocorrência de homicídios, que prosperaram enquanto o país se atrasou. Sabemos matar, mas não sabemos viver.
É um alívio saber que nos últimos anos a taxa da violência letal foi atenuada no Sudeste, no Centro-Oeste e no Meio-Norte. Prosperaram as ações em favor dos direitos humanos e a eficácia das instituições que zelam por eles.
Os números, índices e análises apresentados no Atlas não nos tranquilizam necessariamente, mas nos ajudam a compreender aspectos muito problemáticos da criminalidade letal no Brasil e da desagregação da sociedade brasileira, que persistem. O Atlas mostra que 5,9% do PIB brasileiro é gasto com questões de segurança, não só pelos governos, mas também e sobretudo pelos particulares. Praticamente o mesmo que se gasta com educação, que é 6,0% do PIB. A violência rouba do país o mesmo que o país despende na sala de aula. O suficiente para duplicar o sistema escolar ou para duplicar sua qualidade e competência. Uma disputa sem escolha e desmoralizadora para todos nós.
Ainda no capítulo do preço da vida, as maiores vítimas da violência letal está na faixa etária dos jovens entre 15 e 29 anos, próxima ou acima de 50%. E a taxa dessa violência contra adolescentes de 10 a 14 anos, que é de 14,1%, é tão alta quanto a contra o total de todos os homens, 14,7 %. Um jeito brutal de se tornarem adultos na morte antes do tempo.
O Brasil começa a matar cedo suas novas gerações, antes de dar-lhes uma oportunidade de viver e de saber o que é a vida. São pessoas que nasceram e cresceram à espera da morte, e não para viver.
A maior ocorrência de homicídios nos sábados, tanto de homens quanto de mulheres, mostra que perdemos o sentido da festa. Expressão de que a desumanização que se tornou característica de nossa sociedade em decorrência dos vários mecanismos de alienação e de descarte social, como o desemprego, que atinge especialmente os jovens, fez da festa o mero e sumário ardil da morte. É tal a proporção de vítimas fatais da violência e sua regularidade que se pode dizer que nasceram para ser cobaias de um genocídio.
Um capítulo obrigatório, na ocorrência de homicídios por 100 mil habitantes, é o da cor da pele para compreendermos a incidência diferencial da violência letal. Classificando as vítimas em negros e não negros, como faz o Ipea, é possível ter indicações indiretas significativas de uma modalidade de preconceito que é histórica entre nós e que chegou mais intensamente à consciência dos brasileiros nas últimas décadas. Já não se trata apenas de estigmatizar e discriminar pela cor, mas de agregar-lhe o ódio que se consuma no homicídio.
É tema difícil de avaliar no Brasil. O Ipea juntou os pardos aos negros para definir a categoria "negro". No Brasil, historicamente, pardo não é negro nem sofre a mesma modalidade de estigmatização e discriminação que o negro. O que não quer dizer que, em algumas regiões, mulatos (descendentes de negros e brancos) e pardos (descendentes de índios) não sejam confundidos entre si, mais entre os brancos do que entre os próprios negros.
Se os negros estão reivindicando identidade específica para ter direitos compensatórios, os pardos também o fazem em nome de outras compensações. Há algum tempo, quando o Supremo Tribunal Federal examinou a questão da eventual inconstitucionalidade das cotas raciais temporárias na Universidade de Brasília, apresentou-se à corte, como "amicus curiae" uma representante de um movimento dos pardos do Norte do Brasil para reivindicar que não fossem incluídos no grupo dos negros. Seu estigma é peculiar e sua identidade, também. Os pardos têm uma história social propriamente sua. Na escravidão não foi raro vê-los empregados como feitores de escravos.
Não obstante essas diferenças, pardos e negros são vítimas de incidência de violência letal maior do que a dos não negros e essa violência vem aumentando muito em relação a eles. No Pará, onde é mais significativo o grupo dos pardos, a taxa de homicídios nesse grupo subiu de 35,1 por 100 mil para 61,7, entre 2007 e 2017. Enquanto entre os não negros, subiu de 11,2 para 20,4.
Em São Paulo, a dos negros caiu de 21,3 para 12,6 entre os dois períodos. E a dos não negros caiu de 12,7 para 8,7, entre os mesmos períodos. O fato de ser região com maior diversidade de origem étnica e racial do que outras regiões brasileiras e ser região mais urbanizada pode explicar esse fato positivo. Explica-o, também, a maior vigilância dos grupos discriminados quanto a seus direitos e quanto às iniquidades que os vitimam. Mesmo assim, a violência letal aumentou em relação aos negros.
(*) José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP.
Valor Econômico/14 de junho de 2019
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