Nas últimas semanas, o Congresso aprovou a MP das Companhias Aéreas, a nova lei geral das agências reguladoras e a MP do pente-fino no INSS. A reforma da Previdência, aprovada com 73% dos votos na CCJ da Câmara, avança com boas chances de sucesso.
Enquanto isso, boa parte da crônica política continua a demandar que o governo forme uma coalizão majoritária, no Congresso, na base do “ou isso, ou o caos”. Pois anotem: não teremos nenhum dos dois, nem a grande coalizão nem o caos.
Ocorre que vivemos o fim de um modelo. Ele poderá ser reconstruído, à frente, em novas bases, mas por ora vive sua época de destruição criadora, marcada por uma permanente sensação de instabilidade.
O modelo que se esgotou é o descrito por Sérgio Abranches, a partir da fórmula da coalizão majoritária, como mecânica do presidencialismo brasileiro. Tese não por acaso formulada no final dos anos 1980, na primavera da redemocratização.
O ponto é que a experiência histórica se mostrou cruel com a teoria. O custo do sistema de coalizão majoritária se revelou alto, nestas três décadas, e recentemente tornou-se ética e politicamente insustentável.
O modelo sempre esteve ao gosto de nossa tradição centralizadora, que só concebe a dinâmica política a partir da iniciativa ou do mando presidencial. E de nosso vezo patrimonial, que normalizou a prática de formar maioria distribuindo ministérios e posições em estatais, para não falar em moedas de troca menos republicanas.
Modelo que, nas últimas duas décadas, procrastinou reformas estruturais, levou ao colapso fiscal e a um quadro agudo de fragmentação e clientelismo partidário.
É evidente que é preciso repensar essas coisas. De certo modo, a inteligência difusa na sociedade correu à frente da elite pensante. O modelo a partir do qual aprendemos a ler e pensar nosso sistema político simplesmente envelheceu, tendo sido amplamente rejeitado nas últimas eleições.
Emerge em seu lugar, ainda desajeitado, um sistema de corresponsabilidade. O governo permanece como propulsor mais relevante da agenda política, mas abre mão da tutela e cede espaço a novos atores. Forma maiorias, mas o processo deixa de ser automático. É assim que caminha a reforma da Previdência.
O modelo não é uma criação do governo. Ele surge como consequência não intencional do processo político, do cansaço do sistema, do vácuo, da ruptura eleitoral, de um misto de ação e inação do governo.
O novo modelo se afasta de duas visões comuns em nosso debate. Uma delas, comum no governismo, aposta no chamado "going public", na ideia algo mística de que o líder popular possa, com a pressão social, derrotar o sistema (seja isto o que for).
Outra, popular na oposição, profetiza o abismo a cada deslize do governo e sugere que estejamos sob o risco de um presidencialismo plebiscitário, autoritário e destinado ao fracasso.
O sistema de corresponsabilidade ocupa um hiato no tempo, entre o modelo que naufragou e um sistema cujos contornos ainda não conhecemos exatamente. O que ele faz, por ora, é abrir espaço ao protagonismo compartilhado, que por certo reforça a autonomia do Parlamento. Algo bem expresso na reiteração de Paulo Guedes, no Congresso: o poder é dos senhores, assumam a responsabilidade.
É evidente que tudo funcionaria melhor se tivéssemos um governo e uma oposição mais dispostos ao diálogo, um país menos polarizado e afeito à guerra cultural.
No mundo ideal, nosso presidente poderia combinar o pragmatismo de Angela Merkel com o charme intelectual de Obama. E a oposição, quem sabe, poderia ser liderada por Lord Anthony Giddens, direto da sala de chá do palácio de Westminster.
Não temos nada disso. O presidente é Bolsonaro e a oposição é o que sabemos que é. Não voltaremos ao passado e não veremos um rolo compressor governista no comando do Congresso. Se isso é ruim ou não, cada um pode julgar. Digo apenas que, para quem imaginou que nos tornaríamos uma autocracia, pode não ser má ideia que o país avance sob um sistema bem estabelecido de freios e contrapesos e compartilhamento de responsabilidades.
(*) Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Folha de S. Paulo/6 de junho de 2019
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