Desde o dia 1º de janeiro, a formação da opinião pública no Brasil oscila nas incertezas de palavras redefinidas pelo conflito ideológico. Com as que ontem se queria dizer uma coisa, hoje se quer dizer outra. Conceitos viraram preconceitos e, nessa forma, encheram a boca dos que dizem o que já não sabem. O não saber ganhou aqui uma linguagem.
Por seu lado, os que ouvem esse dizer indizente estão mais confusos do que suportam, acostumados que estavam com uma linguagem simples e clara que todos conheciam. A nova linguagem é a da incerteza com que nos fazem pensar sem querer e querer sem pensar. O real está desencaixado, anômico.
Essa linguagem nos tem sido apresentada como se fosse a de uma nova era, direita e de direita, contra uma era só de esquerda. Mas estamos confusos até mesmo quanto ao que quer dizer direita e, mais ainda, quanto ao que quer dizer esquerda. Fica evidente que quem perdeu o poder, perdeu-o porque sua fala foi esvaziada pelo desenraizamento. Em todas as eleições dos últimos anos, as esquerdas foram derrotadas porque não sabiam dizer o que eram. Nem ao que vinham. Perderam-se no desencontro entre linguagem e alianças esquisitas.
A confusa direita acabou revelando que é de direita sem saber o que a direita é, votada por um eleitorado que tampouco o sabe. Tudo o que as esquerdas e o centro fizeram no poder passou a ser avaliado e concebido como o que deveria ser banido eleitoralmente. O não dessa direita é apenas um não sem um sim alternativo.
Os partidos, de esquerda e de direita, esqueceram-se de que a classe média é apenas média. Como toda média, é apenas um ponto na escala de vacilações da sociedade. Para a classe média, direita é o setor político que pode saciar o que a esquerda não lhe deu, no muito mais de sua voracidade, do que queria e até do que a esquerda dissera que carecia.
Essa direita, que não é uma convicção político-ideológica, é em boa parte apenas disposição para seguir quem personifica os urros do ressentimento. Esta confusa direita do poder foi criada na corrosão dos partidos no processo eleitoral, que emergiu das urnas com uma cara desconhecida, sem doutrina nem direção.
Portanto, nesse vocabulário dominado pela incerteza, os significados vão sendo inventados de um dia para o outro. Vários dos membros do governo não têm hoje, sobre o próprio governo, as mesmas certezas que diziam ter no dia 1º de janeiro. Mesmo o presidente da República vem desenvolvendo a peculiar linguagem de desdizer no dia seguinte o que dissera no dia anterior. O vocabulário da dúvida está implantado na alma do poder. É uma técnica antidemocrática de dominação.
Não só lá, mas também nos diferentes âmbitos da sociedade. Num grupo de conversação, testemunhei alguém dizer que a coisa está ficando preta. Na hora, alguém da seita dos politicamente corretos reagiu e repreendeu quem dissera a verdade ao definir a situação com a cor que melhor cabia. "Isso é racismo", acrescentou.
As nuvens negras anunciadoras de temporal, raiz desse dito popular, são apenas nuvens negras. Na boa e quase sempre correta e poética meteorologia popular, esse dito não ofende ninguém, não discrimina as nuvens e nada diz além do fato de que, provavelmente, vai cair um temporal. Ou, em português claro: vai chover, independentemente da cor de quem prognostica ou a de quem se molhará.
Nesse quadro de mudança de sentido das palavras, no incômodo que nos provoca o fato de que o que dizemos já não é o que queremos dizer, há um efeito desconstrutivo e revelador, formador de consciência social e política: capitalismo sem ética não é capitalismo - é crime organizado. Por isso está mais nas páginas policiais dos jornais do que nas páginas econômicas.
Economia que gera 13 milhões de desempregados e fome não é fruto de ciência e competência empresarial, é falta de respeito pelo outro. Partido político sem ética não é partido político: é quadrilha. Por isso, alguns dos nossos estão mais nas mesmas páginas policiais do que nas páginas políticas. Movimentos sociais que não reconhecem o direito à singularidade do outro não são movimentos sociais: são hordas. Por isso escaparam da linha reta do possível para cair prisioneiros do aparelhismo partidário, o peleguismo carneiril da renúncia ao protagonismo histórico a que os simples têm direito.
Socialismo sem liberdade de pensamento, de crítica, de individualidade, de discordância, não é socialismo: é barbárie. Democracia em que todos são iguais perante a lei, mas em que alguns são mais iguais, os de "A Revolução dos Bichos", de George Orwell, não é democracia. É usurpação política. Governo em que os governantes se acham acima da lei e da ordem não é governo, é golpe.
(*) José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras.
Valor Econômico/7 de junho de 2019
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