A aspiração brasileira de termos no poder alguém que faça uma "limpeza" ideológica no país, um faxineiro da República, no lugar de um estadista, mais uma vez pode não dar certo. Já não deu em caso anterior. Jânio da Silva Quadros ascendeu politicamente tendo como símbolo de sua proposta política a vassoura. Toda suposta renovação por ele representada reduzia-se ao refrão de uma musiquinha de campanha: "Varre, varre, vassourinha...". Ganhou para perder. Poucos meses depois de assumir, renunciava.
Varrer e demolir não resolvem problemas sociais, políticos e econômicos nem aqui nem em Xiririca. Até porque varredor é profissão respeitável e nobre, depende de discernimento para saber o que varrer e o que preservar.
O golpe de 1964 veio de histórica ambição de poder dos herdeiros do tenentismo. Aliados aos que achavam que o Brasil só tomaria rumo se fossem varridos da política brasileira os supostos subversivos e os corruptos, nessa ordem, presumivelmente inimigos da pátria e da civilização cristã. Incoerente, para legitimar o poder usurpado, a ditadura teve que associar-se justamente aos corruptos. Tornou-se refém das oligarquias retrógradas, sujeitos históricos da corrupção institucionalizada. A corrupção era e ainda é um poder.
O governo resultante do golpe de Estado inovou no campo econômico, mas rendeu-se no campo político. Politicamente, então como agora, venceu o Brasil arcaico. Como agora, o regime sucumbiu à falsa inovação da cópia e da imitação. Faltou criatividade política e imaginação. Uma cópia foi a consigna "Ame-o ou deixe-o", plagiada de um dos ditos do macartismo americano, que perseguiu intelectuais, estimulou delatores e disseminou o obscurantismo. O povo brasileiro pode ser distraído, mas não é tolo. À vista das primeiras ações do regime autoritário, a frase se tornou "Mame-o ou deixe-o".
Uma das cópias de hoje é uma tosca Estátua da Liberdade, que vi no pátio de uma empresa à margem da Via Dutra. Aqui aquela estátua é um símbolo do copismo sem imaginação, da alienação e da intolerância política e ideológica. O contrário da Estátua da Liberdade que os franceses ofereceram aos americanos para celebrar a liberdade histórica, fundadora de uma nação.
Nunca ouvi tanta gente, como nestes dias, confessando-se de direita, embora gente que não saiba qual é a radical diferença entre nazismo e socialismo, entre a direita como organização política da ideologia da supressão daqueles que a incomodam, e a esquerda como expressão política da ideologia da emancipação do gênero humano de todas as misérias: a da fome, a do desabrigo, a da ignorância, a da miséria política.
O regime de 1964 foi complacente com os corruptos e implacável com os progressistas e democráticos, moral e politicamente inimigos da corrupção. Curiosamente, a ignorância oficial da época associava corrupção e esquerdismo. Para os recém-chegados ao poder, era a esquerda que facilitava a corrupção, não eram os políticos, os partidos nem o capitalismo geneticamente corrupto herdado da colônia. No entanto, a própria esquerda, com o seu nacional-desenvolvimentismo, tentava transformar esse capitalismo predatório num capitalismo de verdade. Do qual ainda estamos longe, como se vê pela situação atual.
O regime mandou para a cadeia ou mandou para o exílio pessoas que poderiam ter tido um papel renovador na política e no desenvolvimento social e econômico brasileiro. Foi além das maldades próprias das ditaduras. Implantou o medo e disseminou o terrorismo de Estado. Violou as leis e os princípios do direito e da liberdade, anulando-os ou desrespeitando-os.
Como hoje se bane do protagonismo político os capazes, que evitassem a transformação dos Ministérios da Educação, das Relações Exteriores e da Família em ministérios de impasses descabidos.
Agora, temos um governo que se confessa anti-ideológico. Mas essa é sua ideologia, a da nulificação das ideias consistentes a respeito do país e dos destinos do país. Os conceitos emitidos pelos governantes atuais são a-históricos e sem raízes na realidade brasileira. Um país que não tem passado não tem futuro. Um país que empresta o passado e a quimera meramente ideológica de futuro de um país hegemônico para ser o que não é nem poderá ser, torna-se ideologicamente estrangeiro, alienado de si mesmo.
No caso do Brasil de agora, a nova ideologia, ao se propor como ideologia do nada, vem se evidenciando na verdade como desarticulado sistema de lugares comuns. É a realização política de "Muito Além do Jardim" (1979), na maravilhosa performance de Peter Sellers, como guru de um presidente americano despistado. Aqui, o poder chegou, enfim, à pós-modernidade de colagem sem ter sido moderno.
Valor Econômico/12 de abril de 2019
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