À luz de determinação de Bolsonaro para que o golpe de 1964 seja comemorado, historiador questiona mitos sobre a ditadura militar e analisa a força do autoritarismo na sociedade brasileira
A orientação do presidente Jair Bolsonaro para que unidades militares comemorem neste domingo o golpe de 31 de março de 1964, que iniciou a ditadura no país, suscitou polêmicas que merecem análise mais equilibrada, evitando-se “histórias oficiais” à direita e à esquerda.
Vamos por partes. Em fins de março de 1964 instaurou-se no país uma ditadura através de um golpe de Estado. Trata-se de um fato objetivo. Um presidente legítimo, João Goulart, foi deposto pelas armas, ao que se seguiu um regime de exceção, em que o direito da força prima sobre a força do direito. Em outras palavras: em que a vontade do poder se sobrepõe, ou nega, à existência das leis, (re)criando legislações a seu bel-prazer.
Entretanto, a ditadura não se tornou vitoriosa apenas pela ação militar. Foi um golpe civil-militar. Houve apoio social, que se exprimiu nas Marchas da Família com Deus e pela Liberdade no país, na força das tradições conservadoras e autoritárias.
Naquele momento encontramos as raízes que explicam, ao menos em parte, a ascensão atual da extrema direita no país. Além disso, dirigentes civis, políticos, empresários e religiosos participaram do golpe, além instituições, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e as principais mídias.
A simpatia suscitada pelo golpe era consequência do medo de uma ditadura comunista. A chamada Guerra Fria, entre os EUA e a União Soviética, estava no auge. Na América Latina, a Revolução Cubanaacontecera. No Brasil, um amplo movimento reformista propunha mudanças estruturais, visando a “democratização da democracia”.
Aparentemente, havia ali um equilíbrio de forças, contribuindo para o acirramento das contradições.
Assim, a vitória fulminante do golpe de 1964 foi uma surpresa, mesmo para os golpistas mais otimistas.
Como compreender a derrota das esquerdas? Seria resultado de vacilações de suas lideranças mais importantes, que temeriam enfrentamentos imprevisíveis? De organizações populares muito dependentes do Estado e de suas iniciativas? De dúvidas de militantes acerca de engajar-se ou não numa luta decisiva para defender aquela República? Um pouco de tudo isto? O fato é que, até hoje, a derrota das esquerdas carece de melhor compreensão.
Muitos que apoiaram a instauração da ditadura a desejavam de curta duração. Ela eliminaria as forças de esquerda e as eleições do ano seguinte se realizariam. Aí houve uma surpresa. Os chefes militares apropriaram-se do poder por longo tempo, afirmando a preeminência indisputada das corporações (Exército, Marinha e Aeronáutica). Daí ser exato conceituar o regime como uma ditadura militar.
O primeiro governo ditatorial, chefiado pelo general Castelo Branco, apostou numa orientação liberal. A ideia era enterrar as heranças varguistas e a cultura política nacional-estatista. A aposta foi perdida. A propósito deste governo, brotou a formulação de que teria sido uma ditadura branda, uma “ditabranda”.
Como então classificar, entre outras arbitrariedades, as prisões e cassações de direitos políticos e civis, as torturas acobertadas, a dissolução dos partidos políticos, o fechamento do Congresso e a alteração arbitrária da legislação eleitoral? Recusar evidências não é rever a história, mas negá-la. É negacionismo, a eliminação da história.
Os governos ditatoriais seguintes, principalmente no período Médici-Geisel (1969-1979), retomaram o parâmetro nacional-estatista, mas excluindo o povo. Isso não os impediu de conservar e ampliar apoios civis.
Daí ter surgido a ideia de uma ditadura civil-militar, para aprofundar a reflexão sobre as complexas relações entre a ditadura e a sociedade, e evidenciar as cumplicidades de segmentos civis, inclusive de camadas populares. Muito já se fez para desvendar essas cumplicidades, muito ainda há que se fazer para compreender como se comportaram os cidadãos comuns sob a ditadura. Mais pistas poderão daí advir para entender o “mito Bolsonaro”.
A ditadura, porém, sempre suscitou oposições, moderadas e radicais. No grupo dos moderados estavam muitos apoiadores iniciais do golpe, depois decepcionados com os militares, e os que nunca aceitaram a ditadura, mas também não acreditavam em enfrentamentos violentos. Entre os radicais encontravam-se as correntes revolucionárias, armadas, que tentaram derrotar os militares, destruir o capitalismo e construir uma sociedade alternativa. Almejavam uma ditadura revolucionária que asseguraria a transição nos moldes do socialismo autoritário plasmado pela Revolução Russa e confirmado pelo exemplo cubano.
A ditadura massacrou os radicais —com o uso e o abuso da tortura como política de Estado— e neutralizou os moderados, alguns dos quais também presos e torturados. Mais tarde, muitos destes últimos contribuiriam no processo de transição rumo à restauração democrática.
Entre os críticos da ditadura houve um triplo equívoco. Imaginaram-na destinada à estagnação econômica, à subserviência aos EUA e à pura e simples repressão violenta, exercida por boçais. Não foi o que aconteceu. O capitalismo mudou de patamar, embora à custa de desigualdades sociais e regionais. Recuperou-se o nacional-estatismo como programa. E a própria repressão, sempre impiedosa, combinou-se com políticas de conciliação e de acomodação. Anos de chumbo, certamente. Mas também de ouro, e para não poucos.
A transição começou no início do governo Geisel, em 1974, e foi até a aprovação da Constituição de 1988. Foi transicional, estendendo-se no tempo, e transacional, baseada na negociação. A primeira fase terminou com a extinção dos atos institucionais, em 1979. Estendeu-se, a partir daí, outra etapa, em que já não havia ditadura, mas ainda não surgira um Estado democrático de Direito. A tese, ainda dominante, de que a ditadura terminou com a posse de José Sarney, em 1985, tende a privilegiar a preeminência militar e ocultar a participação civil no processo ditatorial.
É certo que o último general presidente, João Figueiredo, tomou posse ainda nos marcos da ditadura, mas governou sem o apoio dos atos institucionais. Sua gestão se conciliava com os aparelhos repressivos e com atentados terroristas de extrema direita, mas os tribunais agiam com autonomia. Não havia presos políticos. A imprensa não era mais censurada. Os partidos políticos e os sindicatos funcionavam em liberdade.
Nas eleições de 1982, elegeram-se candidatos das oposições, e os resultados não foram questionados. Houve ainda greves parciais e gerais, além do gigantesco movimento pelas eleições diretas para a Presidência da República em 1983 e 1984. Tudo isso aconteceu às claras, nas ruas, sem repressão sangrenta. Como falar, então, em ditadura? Trata-se de uma impropriedade.
Em outubro de 1988, a nova Constituição encerrou a transição, mas não agradou a todos. Conservando a cultura nacional-estatista, irritou os liberais. Desagradou também as esquerdas, ao não priorizar a reforma agrária e reivindicações históricas, como a estabilidade no emprego e a semana de trabalho de 40 horas.
Por outro lado, junto a inovações concernentes aos direitos civis, políticos e sociais, nela permaneceram as marcas da transição longa e negociada, os legados da ditadura. Entre outros, a hegemonia do Poder Executivo e da União, o modelo econômico, o monopólio dos meios de comunicação e da terra, a hegemonia do capital financeiro e a tutela —mal disfarçada— das Forças Armadas. Uma Constituição híbrida. Chamá-la de “cidadã”, como quis Ulysses Guimarães, foi uma licença poética.
De 1988 a 2018, 30 anos se passaram. O que se fez em relação à memória da ditadura? Infelizmente, muito pouco. Como em relação à ditadura do Estado Novo (1937-1945), prevaleceu a ideia de que “olhar pelo retrovisor” revolveria “feridas abertas”. É verdade que pesquisas foram empreendidas nas universidades e que a mídia divulgou controvérsias.
Nada capaz, todavia, de fazer a sociedade ver que a ditadura não era um passado que passara, mas algo que permanecia, através de seus legados. Não se convocaram as Forças Armadas para um debate sobre suas funções numa sociedade democrática. Ao contrário, só foram chamadas para assegurar a ordem pública, cumprindo papel de polícia, o que só fez aumentar seu prestígio. É certo que uma Comissão Nacional da Verdade funcionou, mas suas resoluções cedo caíram no esquecimento.
Enquanto isso políticos e partidos, de esquerda e de direita, compraziam-se em dizer, por motivos variados, que a democracia no país estava consolidada. Seus erros geraram consequências, com o ressurgimento, à luz do dia, das tradições conservadoras e autoritárias que permaneciam subterrâneas, mas vivas.
Compreendê-las e superá-las, através do debate e das lutas políticas, é um desafio e tanto. Esconder evidências históricas ou distorcê-las não será um bom caminho para a sempre necessária “democratização da democracia” brasileira.
Gostaria agora de explicitar de que ponto de vista falo, pois ninguém pensa sem premissas ou princípios. Depois de uma longa trajetória, identifiquei-me com o socialismo democrático, ainda por nascer, a ser alcançado pela persuasão, pela participação e pelo voto, distante do capitalismo, sempre desigual e injusto, e também do socialismo autoritário. Essas referências não devem incidir sobre o que é essencial no ofício do historiador —a busca da evidência e da verdade.
Atento a isto, Nikita Kruschev, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética entre 1953 e 1964, advertiu que a “história era muito séria para ser deixada nas mãos de historiadores”. Exprimiu a ambição do Estado de controlar a historiografia e fazê-la serva das “histórias oficiais”.
Aos historiadores cabe resistir, afirmando, para além de interpretações que podem e devem variar, os compromissos éticos com as evidências e as verdades —por mais fugazes e provisórias que essas sejam, apenas entrevistas como ruínas sob os relâmpagos das tempestades, na bela metáfora de Walter Benjamin.
Folha de S. Paulo/31 de março de 2019
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