O clima de instabilidade já era forte há três anos. Todo o governo de João Goulart se assentava em um acordo que mantinha um verniz fino de normalidade feito em 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros. Porém, entre 1963 e 1964, a tensão crescera exponencialmente. De um lado, Jango e uma parte dos políticos, militares e da sociedade civil, que advogavam a legalidade do mandato e que as reformas de base sairiam por bem ou por mal. No outro extremo, um grupo majoritário que acusava o presidente de comunista. Na noite de 30 de março de 1964, contrariando alertas de seus conselheiros, o presidente fez um discurso veemente no Automóvel Club do Rio de Janeiro, por ocasião dos 40 anos da Associação de Subtenentes e Sargentos da PM.
Tancredo Neves, líder do governo na Câmara, homem de reputação moderada, quando questionado sobre o que achava do discurso, respondeu a Jango que era muito bonito, mas que lhe custaria o mandato. Na fala, ele acusou setores da sociedade de estarem financiando ou instrumentalizando um golpe, defendeu seu mandato e a Constituição, e garantiu que cumpriria as reformas de base e traria mais justiça social. Foi aplaudido, mas boa parte de seus opositores via esses temas como sinal de adesão do presidente a um regime comunista.
Passava das 22h quando Jango saiu do evento e se dirigiu ao Palácio das Laranjeiras. Enquanto dormia (será que dormiu?), o general Olímpio Mourão Filho ordenava que suas tropas se movimentassem para o Rio. Eram 4h da madrugada. De Belo Horizonte, o general Carlos Guedes ordenou movimento similar a seus homens. Era manhã do dia 31 de março quando o presidente soube da sublevação, porém foi convencido pelo general Assis Brasil, chefe da Casa Militar, de que o movimento golpista seria rapidamente sufocado. O ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro, encontrava-se hospitalizado, mas mandou ler na Rádio Nacional uma mensagem alertando para o perigo dos sublevados, que estavam se deixando enganar por detratores da democracia. Deixava claro que reagiria de maneira dura contra uma tentativa de golpe.
Jango, ainda no Rio, tentava costurar uma aliança que evitasse o inevitável, pois temia uma guerra civil. O general Armando Âncora recebeu ordem direta do presidente para prender Castello Branco, visto (com imprecisão) como artífice militar da coisa toda, todavia não a cumpriu. Os militares que estavam ao lado de Jango, como o chefe dos Fuzileiros Navais, almirante Aragão, queriam uma ordem direta para resistir, armar a população se fosse necessário. Coronel Rui Moreira Lima sobrevoou a coluna golpista com um jato para observá-la. Diante de um único avião, os soldados, temendo o bombardeio, correram para o mato. Moreira Lima concluiu que seria fácil debelá-los. Jango hesitou. JK, senador à época, foi ao encontro do presidente no Palácio das Laranjeiras e, no quarto de Jango, sugeriu que o amigo deveria levar o movimento a sério, rechaçar qualquer ideia de comunismo, exonerar seu ministério e substituí-lo por um mais conservador, anistiar os militares golpistas e punir os marinheiros que haviam desafiado a autoridade do ministro da Marinha. Realpolitik mineira não funcionou para o gaúcho de São Borja.
Em uma conversa telefônica com o chefe do 2.º Exército, de São Paulo, seu amigo pessoal e ex-ministro general Amaury Kruel, Jango pediu ajuda. Kruel era igualmente um fervoroso anticomunista e, para não aderir ao movimento em curso, exigiu a dissolução do CGT e da UNE, a prisão de seus dirigentes e a demissão do ministério de Jango. O presidente recusou a oferta. Kruel foi convencido por Médici, no dia seguinte, a se juntar ao movimento.
Em frente ao Teatro Nacional, em Brasília, havia um rumor de que Darcy Ribeiro e o general Fico apareceriam e distribuiriam armas para a população resistir. As armas nunca chegaram, mas cerca de 10 mil pessoas se amontoaram para esperá-las. Jango volta à recém-inaugurada capital para se reunir com comandos militares que acreditava lhe serem fiéis. Quando soube que o Congresso Nacional já deixara tudo pronto para tirá-lo da Presidência, decidiu rumar para seu Estado natal, onde acreditava que poderia manter o governo intacto. Jango partiu no avião da Presidência tendo apoio declarado do comandante do 3.º Exército, o general Ladário Telles, e de Brizola, que, não mais governador, garantia que haveria resistência, como ocorrera em 1961 na vitoriosa Campanha da Legalidade. Sua partida foi apoiada por todos os seus seguidores.
Por telefone, deputados e senadores foram convocados para reunião conjunta das casas congressuais por ordem do presidente do Senado, Auro de Moura Andrade. Na madrugada do dia 2 de abril, o Congresso mostrava a tensão e o racha do Brasil: medo, xingamentos, cusparadas, ameaças, parlamentares armados com revólveres na cintura. Bocayuva Cunha anunciou que o governador do Rio de Janeiro fora preso por oficiais da Marinha. Houve tumulto no plenário e a sessão foi suspensa.
Ainda não ecoavam dois fatos mais concretos: Miguel Arraes, governador de Pernambuco, e Seixas Dória, governador de Sergipe, haviam sido depostos e presos como traidores da Nação. Retomada a sessão, Moura Andrade anunciou que a ida de Jango ao Rio Grande deixara a Nação acéfala e era dever do Congresso escolher novo presidente. Houve vaias e aplausos. Darcy Ribeiro leu mensagem de Jango explicando o deslocamento. Foi ignorado. A Presidência foi declarada vaga e, não sem muita confusão, o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, foi empossado como interino. Tancredo gritou: “Canalha, canalha, canalha”. A seguir, um pequeno grupo foi ao Planalto dar posse a Mazzilli.
O avião da Presidência que levou Jango ao RS voltou à capital. Empregados de sua fazenda estavam armados, mas não houve resistência nem tentativa de prendê-lo ou similar. Na Cinelândia e na sede da UNE, havia gente armada pronta para resistir. Costa e Silva declarou-se titular do Ministério da Guerra sem encontrar resistência por parte da oficialidade leal a Jango. A sede da UNE foi incendiada, sem que a polícia da Guanabara se mexesse e com conivência do governador Carlos Lacerda. Em Porto Alegre, no Rio e em outras capitais, pequenos focos de resistência foram rapidamente debelados. Ficava patente que não haveria governo Jango no Rio Grande ou em qualquer lugar. Em um aviãozinho da família, com piloto privado, ele se retirou para o Uruguai, onde pediu asilo no dia 4 de abril.
O Estado de S. Paulo31 de março de 2019
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