Fazer a roda da História girar para trás não é um exercício fácil, mas é esse o movimento tentado aqui e alhures. No cenário europeu com o Brexit do Reino Unido, nos EUA com o trumpismo, que recusa o fenômeno da globalização, dos grandes movimentos migratórios e da agenda ambiental, e em nuestra America, com o Brasil que refuga não só a história de construção da sua soberania como nação para se atrelar à política e aos objetivos do poderoso país do norte do nosso continente, como também conquistas civilizatórias na agenda comportamental, tais como na emergente questão feminina, que afeta tanto o mundo do trabalho como variadas dimensões da vida social, sujeitando-as a um nefasto patriarcalismo, uma das raízes do nosso autoritarismo político.
Esse movimento em marcha à ré, embora sua magnitude atual, não conta com bases sociais capazes de manter sua sustentação, uma vez que ele é mais uma construção de ideólogos e políticos que identificam no estado de coisas no mundo sinais de uma mudança de época que erodem a sua forma de domínio e suas fontes de reprodução. À margem do plano da consciência, contudo, vive-se uma mutação nas camadas mais fundas das estruturas sociais que não tem como ser revertida pelos esforços da política do presidente norte-americano, mesmo com os recursos de que dispõe.
O labirinto sem saída do Brexit testemunha a dificuldade que essa via retrô tem encontrado, assim como os embaraços que o próprio Donald Trump encontra em seu país para a edificação do muro com que pretende barrar o fluxo migratório dos latinos em seu território, principalmente em razão da resistência parlamentar a esse projeto xenófobo, na contramão de suas instituições democráticas. Na verdade, o que se pode qualificar como a política de Trump não passa de uma tentativa de deter os processos que estão em curso no mundo e sinalizam no sentido de impor limites, como na questão ambiental, à expansão de um capitalismo sem freios cujos efeitos perversos já se fazem sentir no clima e nos riscos de desaparição de espécimes vitais para a reprodução da vida humana.
Não por acaso, a ONU, instituição que alerta para a gravidade desses riscos e atua para conter os perigos a que todos estamos expostos, tornou-se um dos alvos principais do trumpismo, que, em nome de um nacionalismo anacrônico e de uma crença igualmente anacrônica na panaceia de que o bem-estar social virá da expansão das forças produtivas materiais do seu país, opera no sentido da corrosão da sua legitimidade. Mas o cenário de Trump não é de céu de brigadeiro nem internamente, onde conhece uma renhida oposição, e tampouco no plano externo, quando se defronta com rivais do porte da Rússia e seu poderoso arsenal bélico e da emergente China, mais os aliados de ambos, que não são poucos – nada, entretanto, que comprometa a hegemonia americana nos negócios do mundo, apenas a expõe a maior competição.
Tal contexto, longe de apontar para perigos que reclamem guinadas na posição do País em suas relações internacionais, se apresenta, ao contrário, como uma janela de oportunidades para sua afirmação na economia do mundo, tal como ocorreu nos anos 1930, quando soube aproveitar-se das disputas geopolíticas entre as grandes potências da época para implantar as bases da moderna industrialização, com a criação em Volta Redonda do nosso parque siderúrgico. Nesse sentido, um alinhamento automático do País aos Estados Unidos, como certos círculos oficiais alardeiam em nome de um espírito de cruzada em favor da defesa de um Ocidente de fantasia, desserve aos interesses nacionais.
A agenda comportamental recessiva, inspirada por um cediço fundamentalismo religioso, uma das fontes principais da votação que elegeu Jair Bolsonaro, aplica-se no mesmo movimento de girar a roda da História para trás, não só na questão feminina, como na vida privada em geral, com ênfase em simplórias concepções sobre a complexa sexualidade humana, denunciadas em voto histórico proferido pelo ministro Celso de Mello em julgamento recente sobre o tema no Supremo Tribunal Federal. Tais esforços, por mais ingentes que sejam, não têm o condão de devolver as mulheres à sua condição de subordinação na ordem patriarcal brasileira de outrora, minada, entre outras e ponderáveis razões, por um mercado de trabalho que as incorpora massivamente, assim como as exigências crescentes desde a Ilustração por autonomia pessoal de homens e mulheres. Ideais por autonomia que ao longo do tempo como que se incorporaram ao DNA da nossa espécie, o que a faz repelir, na construção da personalidade de cada qual, interferências do Estado e das religiões.
Não se pode ocultar que se vive tempo sombrio e que a atual corrida armamentista traz maus presságios. Mas há o outro lado da Lua, até mesmo aqui. O atual governo, em sua composição heteróclita, embora contenha em si um componente marcadamente ideológico, de raiz metafísica, exemplar no chanceler Ernesto Araújo, que desafia abertamente as tradições da política externa brasileira em suas concepções de soberania – vide notável artigo de Celso Lafer neste espaço –, admite outras presenças com distinta formatação histórica e diversas concepções do mundo, entre os quais os personagens do mercado e da corporação militar, esta quantitativamente a mais expressiva.
Essa mistura não dá boa química e será testada severamente, entre outras questões, na da Venezuela e das nossas relações com os países do Oriente Médio, clientes privilegiados do agronegócio, quando o mundo bruto dos interesses será confrontado com os da pura ideologia. Os impasses que daí surgirem vão nos defrontar com uma encruzilhada: uma via nos levará a uma ruptura radical com nossa História e nossas tradições de nação soberana, a outra, a retomar o seu leito, em novas circunstâncias, certamente mais complexas. O articulista aposta nesta última
O Estado de São Paulo /3 de março de 2019
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