terça-feira, 12 de março de 2019

Ambiguidades dos militares (Maria Cristina Fernandes)

As eleições diretas para presidente da República permaneceram interditadas no Brasil durante quase três décadas porque os militares acreditavam que os brasileiros não sabiam votar. Permanecem com a mesma visão sobre seus compatriotas, ainda que tenham voltado ao poder, 30 anos depois, desta vez, em grande parte, com o aval da maioria.
A mais abrangente pesquisa já realizada com militares, prestes a ser publicada em livro, "Para Pensar o Exército Brasileiro no Século XXI" (Eduardo Raposo, Maria Alice Rezende de Carvalho e Sarita Schaffel, PUC-Rio), detectou que esta é a percepção predominante entre militares de todas as patentes. O baixo nível educacional da população e a corrupção dos políticos somaram quase 90% das respostas quando o questionário elaborado pelos autores lhes apresentou uma cartela de alternativas para os fatores mais prejudiciais à democracia no Brasil.
As outras opções sugeriam que o jogo democrático poderia ser comprometido pela concentração de poder no Executivo, pouco permeável à pressão ou controle dos eleitores, ou a incompetência dos governantes. Levantavam hipóteses como a falta de organização política do povo e de tradição partidária, reveladores da fragilidade da cultura política. Propunham ainda o corporativismo e o clientelismo, sinais da captura do Estado por interesses encastelados. E, finalmente, a pobreza e a desigualdade social, sinais da baixa eficácia das instituições democráticas.
Todas essas alternativas, no entanto, tiveram adesão residual. Os militares, de aspirantes a generais, resolveram concentrar as explicações na inabilitação dos representados e nos vícios de seus representantes. Quanto mais alta a patente, maior a adesão ao binômio "falta de educação" e "corrupção" para explicar os males da democracia nacional. Entre generais de Exército, topo da carreira, 100% subscreveram a tese de que eleitor e eleito são inaptos.
A pesquisa precede a chegada ao poder do presidente Jair Bolsonaro e de seus oito ministros militares, mas é o que de mais próximo existe sobre os valores da corporação que voltou a mandar no país. Ampliou, em número de entrevistados e em temas abordados, a pesquisa, também publicada pela PUC-Rio, "A Construção da Identidade do Oficial do Exército Brasileiro" (Valor, 04/01/2019).
Fruto de uma parceria entre os ministérios da Defesa e da Educação e a PUC do Rio, a iniciativa se destinava, originalmente, a aproximar as Forças Armadas da vida democrática numa época de desinteresse generalizado pela temática militar. O pressuposto de que a apatia da opinião pública em relação às questões militares era um obstáculo à modernização da corporação havia sido incorporado à Estratégia Nacional de Defesa, aprovado em 2008.
Uma década depois, os militares se recomporiam com o ex-capitão rebelde, Jair Bolsonaro. De carona em sua popularidade, as questões militares se imporiam à agenda da nação para derrotar aqueles que, do centro à esquerda, haviam buscado reformular sua incorporação à agenda democrática pisando em dois vespeiros, a retirada de prerrogativas (MP 2215 sob FHC) e a Comissão da Verdade (sob Dilma Rousseff).
Às vésperas da sucessão presidencial de 2014 foi distribuído um questionário com 70 perguntas para mais de 20 mil oficiais, a grande maioria (93%) de carreira. No ano em que a pesquisa foi a campo, apenas o vice-presidente, Hamilton Mourão, e o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, entre os militares do primeiro escalão, estavam na ativa. Os pesquisadores receberam 2.726 questionários de volta. Os resultados levaram dois anos para ser tabulados e analisados e agora chegam ao público numa edição limitada a pesquisadores.
Se tudo depende do grau de instrução do eleitor e da punição dos corruptos, como sugerem as respostas colhidas, um povo que se organiza por uma mediação de interesses que favoreça a redistribuição de poder e renda flerta com a baderna. Esta percepção corrobora a disposição do presidente da República de tipificar ações de movimentos sociais, a exemplo das invasões de terras, como ato terrorista.
Essa perspectiva, no entanto, só parece ter sido revelada com a iminência do poder. Na época da pesquisa, a desigualdade social foi pouco valorada como fator de deslegitimação da democracia. Sete em cada dez oficiais que responderam à pesquisa não veem como o apartheid social em que vive o país poderia levar à emergência de movimentos extremistas. Os generais de exército aparecem aqui, mais uma vez, como um bloco uníssono, sem uma única discordância: todos descreem do poder de erosão da disparidade de renda.
Os militares mantêm, em grande parte, seus valores mais intocados do que outras corporações porque têm mais controle sobre a porta de entrada dos oficiais - a Academia Militar de Agulhas Negras (Aman) é o único caminho até o generalato - e também porque a estrutura da carreira favorece a convivência entre seus pares e suas famílias mais do que qualquer outro corpo de servidores do Estado.
O perfil colhido pelos pesquisadores da PUC-Rio, no entanto, mostra que, por outro lado, uma boa parte dos oficiais têm pais inseridos no mercado de trabalho formal e irmãos e cônjuges no meio universitário. É uma inserção capaz de reproduzir, na corporação, uma palheta mais aproximada das cores da população brasileira.
O Exército que vencera Guerra do Paraguai com a incorporação de muitos negros e mulatos forros passou por um processo de 'branqueamento' ao longo da República que se mantém até hoje. Enquanto o último IBGE/PNAD (2014) identifica uma minoria de brancos no país (45,5%), no Exército ainda são larga maioria (66,4%).
No perfil religioso, ao contrário, a mudança foi mais acelerada do que aquela que se deu no conjunto da população. Metade dos respondentes é de católicos, média inferior à da população (64%). Em segundo lugar, ao contrário do que acontece entre os civis, vêm os kardecistas e não os evangélicos. Os generais são mais católicos do que seus subordinados.
Por mais que a carreira absorva contingentes de fora das famílias da caserna, são os filhos de militares que mais frequentemente atingem o topo da corporação. Chega a 80%, entre generais, a cota que seguiu a carreira dos pais. A proporção cai pela metade entre os aspirantes.
O perfil colhido sugere antes uma aproximação entre os valores militares e a classe média brasileira do que a popularização da corporação. A proximidade explica, em grande parte, o êxito da carona dos militares na candidatura Jair Bolsonaro e fundamenta, ainda que parcialmente, a tese de um dos autores do livro, o professor Eduardo de Vasconcellos Raposo, sobre o fenômeno - a da confluência entre os valores da maioria eleitoral e aqueles predominantes no meio militar. Bolsonaro não foi eleito por ser ex-capitão, mas por ter sido identificado como algoz da corrupção, da violência e do PT. A pesquisa mostra que a identidade dos militares com os valores de um segmento expressivo da população corrobora a legitimação do seu poder crescente sobre o governo.
Mais de 70% daqueles que responderam à pesquisa são favoráveis à presença de mulheres nos postos de comando da carreira e um percentual ainda maior é favorável a que seja das mulheres, e não do Estado, a decisão de interrupção da gravidez. Maioria igualmente larga se manifestou favoravelmente à presença de professores homossexuais em escolas públicas. Em contrapartida, a existência de livros sobre homossexualismo nas bibliotecas públicas angariou menos apoio. A maioria, ainda que estreita (51,8%), se disse favorável à exclusão.
Essa identidade ambígua é explorada com mais habilidade pelo vice-presidente Hamilton Mourão do que pelo titular do cargo, mais afeito à cartilha do ideólogo Olavo de Carvalho. Na ambivalência dos valores da corporação, ainda cabe um verniz de contemporaneidade em relação à questão ambiental, surpreendente face ao histórico de embates com as organizações não governamentais verdes. Indagados sobre a necessidade de controles ecológicos limitados para favorecer o crescimento econômico, os militares também foram francamente contrários (68,5%). Rechaçaram, por uma maioria ainda mais larga (79%), a liberação de armamentos nucleares.
É igualmente ambígua a percepção de que os brasileiros, inaptos para o voto, continuam a escolher corruptos. Os militares acham que os partidos valem mais do que pesam, mas enaltecem o Parlamento. Em sua valoração das instituições, o Congresso Nacional é a único a ter praticamente as mesmas notas quando classificam a influência que, de fato, exercem (82%) e aquela que deveriam exercer (78%). Com os partidos, a relação entre a influência real e aquela tida por ideal é de quase o dobro.
A julgar pela tabela das instituições, ainda se deve esperar grandes embates entre os ministros militares e a equipe econômica liderada pelo liberal Paulo Guedes. Os militares acham que as multinacionais, os bancos e os organismos financeiros internacionais têm um poder múltiplas vezes maior do que deveriam ter. É a maior desproporção de toda a tabela de valoração das instituições. Só se comparam, com os sinais trocados, com os próprios militares. Indagados sobre a influência que, de fato, exercem, 2,9% dos entrevistados disseram "muita". Sobre a influência que deveriam exercer, 35% indicaram que deveria ser muito grande, 44% responderam que deveria ser pequena e, um quinto, tascou "nenhuma".
A diversidade de opiniões dos militares sobre seu próprio poder se deu no início da escalada de turbulências do país que acabariam desaguando na eleição de Jair Bolsonaro. Mostra que, a despeito da camisa de força da hierarquia, não se trata de uma corporação uníssona ou homogênea. É um retrato mais consonante com a política que voltaram a exercer do que com o papel que a Constituição lhes reserva.
Valor Econômico/1 de março de 2019
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