domingo, 18 de novembro de 2018

O Triunfo do Bolsonarismo (Jairo Nicolau)


No sábado, véspera do primeiro turno das eleições, fui a uma festa de família em Nova Friburgo, minha cidade natal. Durante o dia, no inevitável passeio pela avenida principal da cidade, deu para perceber os sinais de campanha presidencial, o que não tinha ocorrido em nenhum momento no Rio de Janeiro: dezenas de cabos eleitorais balançando bandeiras, muita gente vestindo a camisa amarela com a foto de Bolsonaro estampada.
Em conversa com familiares, comecei a dimensionar a força do bolsonarismo na cidade. No grupo de 25 pessoas que jogam vôlei com a minha irmã, apenas ela e mais três disseram que não votariam no candidato do PSL; no grupo de vinte que jogam a tradicional pelada de fim de semana com o meu cunhado, apenas ele e mais quatro não iam votar em Bolsonaro. O mais inesperado foi ouvir relatos sobre antigos colegas de colégio, figuras silenciosas e discretas, que tinham se transformado em virulentos defensores de Bolsonaro nas redes sociais. Adotando uma “tática de enxame”, eles se especializaram em conjuntamente atacar páginas do Facebook de amigos que postassem qualquer crítica ao capitão.
Friburgo é uma cidade conservadora, mas saí de lá com a sensação de que Bolsonaro estava muito mais forte do que eu imaginava. De volta ao Rio, ao votar no primeiro turno, encontrei uma situação muito mais equilibrada. Meu passatempo, durante a longa espera, foi tentar identificar o voto dos eleitores das filas vizinhas. Alguns, atendendo ao pedido da campanha de Bolsonaro, chegaram com a camisa da Seleção brasileira. Vi muitos com adesivos de candidatos do PSOL e de Ciro Gomes. Será que as urnas em geral estariam mais próximas da maré bolsonarista vista em Friburgo ou do cenário mais equilibrado das filas de uma escola de Botafogo?
Já faz alguns anos que não ligo a tevê para acompanhar a apuração. Prefiro baixar o programa do TSE e abrir o site de um grande jornal, navegando conforme as minhas escolhas. Esse ano, porém, como os resultados demoravam a aparecer, resolvi seguir as previsões feitas pelas pesquisas de boca de urna. À medida que os resultados eram divulgados nos jornais televisivos e outros eram compartilhados via WhatsApp por amigos que estudam eleições, mais estupefato eu ficava.
No Rio de Janeiro, o juiz Wilson Witzel, candidato apoiado pela família Bolsonaro, chegava em primeiro lugar, desbancando Eduardo Paes, líder em todas as pesquisas que foram publicadas desde o começo do ano. Imediatamente, recebo mensagens de toda a parte. Quem é esse juiz? Em Minas Gerais, os petistas sonharam com o crescimento do candidato do Novo, um empresário chamado Romeu Zema. Mas não imaginavam que ele tirasse o governador Fernando Pimentel da disputa no segundo turno. A sensação de que essa era uma eleição de ruptura com a velha ordem partidária ficou clara quando apareceram os dados para o Senado de Minas, com a ex-presidente Dilma amargando o quarto lugar. Era isso mesmo? Sim. Uma ex-presidente vitoriosa em quatro turnos naquele estado estava atrás de outros três concorrentes.
Os resultados da noite deixaram os analistas de política sem adjetivos. O uso de analogias climáticas, embora meio desgastado depois de anos de crise (quem não se lembra da “tempestade perfeita”?), foi a opção. Estávamos diante de um “tsunami” eleitoral, do “furacão” Bolsonaro, da “avalanche” de votos do PSL. Restava falar da velha ordem política também com imagens de destruição. O sistema partidário estaria “em escombros”, “em ruínas”, teria vindo ao chão diante de uma “hecatombe” de renovação.

Afinal, quais eram as bases do sistema partidário que teria sido destruído no primeiro turno do pleito de 2018?
Vale a pena voltar no tempo e lembrar a grande instabilidade que marcou a primeira década da vida partidária após a redemocratização. Cinco partidos foram fundados ainda no regime militar: PDS, PMDB, PT, PDT e PTB. Entre 1985 e 1994, nada menos do que 68 partidos foram organizados e disputaram pelo menos uma eleição. Dentre esses, destacam-se o PFL, o PSDB, o PL, o PCdoB, o PSB e o PRN.
Mais do que pelo grande número de legendas, o período foi caracterizado pela crise que afetou os partidos tradicionais. Nas eleições presidenciais de 1989, os candidatos do PMDB e PFL – os dois partidos responsáveis pela vitória na eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral – tiveram um desempenho pífio. Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Constituinte que encerrara seu trabalho um ano antes da eleição, obteve 4,7% dos votos. Aureliano Chaves, ex-vice-presidente da República, alcançou apenas 0,9%.
A vitória de Fernando Collor pelo PRN, legenda à qual se filiou apenas para concorrer à Presidência, e o subsequente governo de Itamar Franco, presidente que se desfiliou do PRN e governou sem estar vinculado a nenhuma legenda, ilustram bem o quadro de crise do sistema partidário nos primeiros anos da década de 90.
Podemos definir o ano de 1994 como o início do sistema partidário com características mais ou menos estáveis, que perduraria por duas décadas até as eleições de 2014. Destaco três principais características desse sistema.
A primeira delas é a polarização entre PT e PSDB na disputa presidencial. Os dois partidos chegaram em primeiro ou em segundo lugar em todos os dez turnos disputados entre 1994 e 2014. Nas duas eleições em que o PSDB venceu no primeiro turno (1994 e 1998), o PT chegou em segundo lugar. Nos oito turnos em que o PT venceu (2002, 2006, 2010 e 2014), o PSDB chegou em segundo lugar.
A segunda característica é o papel central do PT no sistema partidário. Será difícil para os historiadores do futuro não chamarem esses vinte anos de “era do PT”. O partido ficou à frente da Presidência por mais tempo do que qualquer outro na história da República. Mesmo durante o governo Fernando Henrique Cardoso, o PT conseguiu ser um ator relevante, comandando uma combativa oposição.
Para além do sucesso eleitoral, um aspecto que sempre chamou a atenção no PT foi a sua capacidade de organização. Enquanto os outros partidos mantiveram uma estrutura organizacional tênue, com baixo envolvimento dos filiados em suas atividades, o PT inovou ao apostar em uma estrutura capaz de mobilizar milhares de quadros para as suas fileiras.
Os cientistas políticos David Samuels e Cesar Zucco, no livro Partisans, Antipartisans and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil(2018), mostraram como a divisão PT/anti-PT foi importante na escolha dos eleitores. Caso raro, o principal concorrente do PT não foi outro partido, mas um sentimento genérico com nome próprio: antipetismo.
Uma terceira característica do sistema partidário brasileiro é a fragmentação. Contrastando com a disputa concentrada para a Presidência, o quadro no Congresso Nacional é de alta pulverização, tendência que vem se aprofundando desde os anos 90. Para se ter uma ideia dessa dispersão: em 1994, as quatro legendas mais importantes (PSDB, PMDB, DEM e PT) tinham, juntas, 308 cadeiras na Câmara dos Deputados; em 2014, passaram a deter apenas 210. A predominância dos quatro partidos não é por acaso. PT e PSDB controlaram a Presidência, enquanto o PMDB (depois MDB) e o PFL (depois DEM) foram centrais no controle do Congresso Nacional.

Depois da perplexidade com os resultados de boca de urna do primeiro turno divulgados pela televisão, voltei ao computador para analisar os dados oficiais da apuração. Ao abrir os resultados de deputado federal do Rio de Janeiro me dei conta que o sucesso de Bolsonaro tinha transbordado para os cargos proporcionais.
Quem é esse Hélio Lopes que chegou em primeiro entre os candidatos a deputado federal, elegendo-se com 345 mil votos, à frente de Marcelo Freixo? Encontro na internet a foto de Lopes. Lembro que recebi um santinho dele. Dias depois, me atualizo. Chamado por Bolsonaro de “Hélio Negão”, ele é subtenente do Exército e tentou ser vereador em Nova Iguaçu em 2016, quando recebeu 480 votos. Nas estatísticas não será considerado como um político que tenta um cargo pela primeira vez.
Numa eleição de tantas surpresas, nada foi mais espantoso do que a votação obtida pelo Partido Social Liberal para a Câmara dos Deputados. O partido obteve 11,3% dos votos e 10,1% das cadeiras. Havia conseguido eleger apenas um deputado federal nas quatro das cinco eleições que disputou antes de 2018. Era um dos partidos a serem barrados pela cláusula de desempenho. A filiação de Bolsonaro e de seus seguidores ao PSL, em março desse ano, mudou inteiramente a sorte da legenda.
O PSL foi o partido que teve o maior crescimento desde as eleições de 1990, quando é possível comparar com a primeira eleição do regime democrático, em 1986. Em 1990, o PRN do então presidente Collor obteve 8,3% dos votos, enquanto o estreante PSDB recebeu 8,7%. Ambos já contavam com um grande número de deputados e tinham o apoio de importantes lideranças regionais.
Outra característica singular do PSL é o grande número de eleitos que disputam um cargo pela primeira vez. Dos 52 deputados federais eleitos, trinta nunca haviam concorrido. Nunca um partido elegeu tantos novatos como o PSL. Guardadas as proporções, é um fenômeno semelhante ao da ascensão do partido do presidente francês Emmanuel Macron (La République en Marche!) e do Movimento 5 Estrelas, na Itália; são novos partidos que levam dúzias de cidadãos sem experiência prévia aos legislativos nacionais.
Os diversos perfis da bancada do PSL feitos pela imprensa destacam a sua heterogeneidade. O que os une, além da admiração por Bolsonaro, é o fato de se posicionarem na extrema direita do espectro partidário. Só no fim da noite de domingo do primeiro turno da eleição, quando já era possível estimar o tamanho das bancadas de cada partido, me dei conta de algo surpreendente: os eleitores haviam criado o maior partido de extrema direita da história das eleições brasileiras.

Quando teria começado a ruína dos partidos e de parte da tradicional elite política do país? Não são poucos os analistas que atribuem a origem de tudo às manifestações que varreram o país em 2013. O forte conteúdo antipolítica dos protestos teria ajudado a minar a confiança da população no sistema representativo.
Além de pedir aos manifestantes que não usassem camisas com símbolos partidários e promover a queima da bandeira dos partidos, os protestos lançaram alguns bordões que expressam uma visão realmente negativa da política. “Partidos não” e “Não me representa” eram palavras de ordem reiteradas inúmeras vezes quando as pessoas se aproximavam da Câmara Municipal ou da Assembleia Legislativa.
É difícil dimensionar se 2013 teve um efeito mais duradouro sobre a avaliação dos brasileiros acerca dos seus representantes. O fato é que nas eleições do ano seguinte o impacto não foi perceptível. As pesquisas de opinião não indicaram um aumento da desconfiança em relação às instituições e aos partidos. A taxa de abstenção continuou praticamente a mesma da eleição anterior. Fora do padrão, apenas um aumento dos votos nulos e em branco para deputado federal, particularmente nos estados do Rio e de São Paulo.
Somente uma força externa muito poderosa poderia abalar um sistema de partidos estruturado em duas décadas de competição política, com diversos mecanismos de autoproteção. A Operação Lava Jato cumpriu esse papel. As investigações afetaram diversas legendas, mas sobretudo as três mais importantes: PT, PSDB e MDB. O PT teve vários de seus dirigentes presos e investigados, entre eles o ex-presidente Lula. Os principais dirigentes investigados do MDB tinham foro privilegiado (eram senadores e deputados), mas o que se viu na maior seção do partido, a do Rio de Janeiro, com a prisão de Sérgio Cabral, Eduardo Cunha e Jorge Picciani, foi suficiente para fazer um estrago sem precedentes na legenda. Vários dirigentes do PSDB investigados também se beneficiaram do foro privilegiado, mas a revelação das conversas de Aécio Neves com o empresário Joesley Batista também amplificou muito a rejeição ao partido.
Olhando para trás e relembrando a maré de denúncias contra a elite política que circulou entre 2015 e 2018, percebo como os analistas subestimaram os efeitos da Lava Jato. A operação mudou o patamar de rejeição em relação aos principais partidos. Todos foram igualados por participarem sem pudor de gigantescos esquemas de corrupção.

Até o começo do horário eleitoral, a visão dominante dos cientistas políticos sobre as eleições de 2018 era a de que repetiria os padrões dos pleitos anteriores. Eles acreditavam que: a disputa pela Presidência se daria novamente entre PT e PSDB; a renovação parlamentar seria baixa; e o trio PSDB/PT/MDB continuaria dominando a política brasileira.
O argumento dos que defendiam a tese de que “essa eleição é igual às últimas” baseava-se em duas premissas. Primeiro, a importância que a estrutura partidária e a montagem das coalizões de apoio nos estados havia tido em pleitos anteriores. Segundo, a nova legislação eleitoral, que concentrou o tempo de propaganda eleitoral e o dinheiro do fundo eleitoral nos grandes partidos; juntos, MDB, PSDB, PT e PP ficaram com 44% do dinheiro.
A mesma visão parece ter orientado as ações dos dirigentes partidários. O PSDB optou por lançar Geraldo Alckmin, uma liderança tradicional, que já havia sido candidato à Presidência. O ex-governador de São Paulo, mais do que qualquer um dos nomes ventilados pelo partido, tinha a cara da velha política. O PSDB teve como prioridade a montagem de palanques estaduais e o apoio dos partidos para conquistar o que havia sido o melhor ativo de outras eleições: o tempo de propaganda na tevê.
A estratégia do PT também mirou o passado. A ideia parecia simples. Lula liderava as pesquisas com enorme vantagem. O que, por si só, seria uma evidência de que o eleitorado queria uma nova edição da época de ouro dos governos petistas. Como as pesquisas mostravam que um número expressivo de eleitores estaria disposto a votar em um nome indicado por Lula, a equação estava fechada. Confiando na força do ex-presidente e na teoria de transferência de votos, o PT se deu ao luxo de fazer a mais estreita coalizão eleitoral desde 1989. Só conseguiu o apoio do PCdoB – que retirou a candidatura de Manuela D’Ávila à Presidência – e do PROS.
Nada, porém, supera a crença dos partidos na manutenção da velha ordem do que o comportamento dos partidos do centrão (DEM, PP, PR, PRB e Solidariedade). É interessante lembrar que alguns deles haviam sido sondados pelo PT e outros pela candidatura de Ciro Gomes. Bolsonaro gostaria de ter o senador Magno Malta como seu vice, mas o PR não aceitou. Depois de semanas de negociação, os partidos resolveram apoiar qual candidato? Geraldo Alckmin.
PT e PSDB se prepararam para enfrentar um ao outro. Nenhum dos dois acreditava no fenômeno Bolsonaro. No último debate do primeiro turno na Rede Globo, a certa altura Alckmin escolheu Haddad para responder uma de suas perguntas. Durante minutos os dois falaram como se estivessem em 2014. Enquanto isso, Bolsonaro concedia uma entrevista nos seus termos à Rede Record do bispo Edir Macedo.

Fui mais cético que meus colegas de ofício sobre a possibilidade de que a eleição de 2018 repetisse o padrão das eleições anteriores. Minha desconfiança se devia a duas razões. A primeira, mais genérica, pode ser resumida no sentimento de que, depois de três anos de crise política, dificilmente as estruturas do sistema partidário não sairiam abaladas. Lembro-me de uma conversa com a cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida, que também compartilhava do meu ceticismo, em que ela fez a pergunta definitiva: “Depois de tudo que aconteceu nesses anos, as eleições não vão mudar nada?”
A segunda razão é que venho há anos acompanhando a movimentação do candidato Bolsonaro. Por intermédio de um amigo que compartilha o material do candidato, assisti aos seus vídeos postados nas redes sociais, e os mais impressionantes deles mostravam o acolhimento efusivo que recebia de seus seguidores pelos aeroportos do país. Mas, apesar de não desprezar a força de Bolsonaro, minha expectativa sobre o que seria a eleição presidencial se revelaria totalmente equivocada. Consulto os slides de uma apresentação que fiz em março deste ano sobre o tema. Estimava que Bolsonaro teria algo em torno de 15% a 20% dos votos.
Minha aposta era que cinco candidatos (Marina, Alckmin, Ciro, Bolsonaro e o candidato do PT) disputariam entre si as duas vagas para o segundo turno; todos eles com potencial de votação semelhante, entre 10% e 20% dos votos. Uma pessoa cujo nome não lembro e que compartilhava de avaliação semelhante chegou a propor um número mágico: nesse cenário, o candidato que tivesse 17% dos votos passaria para o segundo turno.
Meu equívoco maior se deu quando projetava os resultados do segundo turno. Mais de uma vez, fui perguntado em debates e aulas sobre as chances de Bolsonaro vencer as eleições. Na resposta, sempre me lembrava do caso francês. Bolsonaro é candidato de um segmento específico do eleitorado, é um candidato de nicho, que lembra o desempenho do partido de extrema direita da França. Lá, a Frente Nacional consegue até chegar ao segundo turno, mas todas as forças do espectro político (da direita republicana à esquerda comunista) se juntam contra o partido, que é sempre derrotado. Não me lembro, mas provavelmente devo ter dito uma frase que muitos falavam em meados do ano: “O candidato do PSL será derrotado por qualquer um no segundo turno.”

Bolsonaro saiu do nicho. Esse é o fenômeno mais impressionante da campanha presidencial de 2018 e será o tema incontornável dos estudos sobre o comportamento político no Brasil nos próximos anos.
Como um candidato com uma história tão à direita no espectro político, com dezenas de vídeos em que revela seu racismo, sua homofobia e seu menosprezo pelas mulheres, foi capaz de conquistar uma parcela tão expressiva de eleitores de alta renda e alta escolaridade? Fui a São Paulo em junho e percebi que Bolsonaro já era o preferido dos motoristas de Uber e dos trabalhadores do hotel onde me hospedei. Em setembro, em nova viagem, soube que a comunidade judaica o apoiava em peso. O mesmo acontecia com a elite da cidade, outrora eleitora do PSDB.
O mais impressionante é que uma grande parte do eleitorado passou a apoiar Bolsonaro sem conhecer minimamente suas ideias. Recolhido no hospital ou em casa desde o atentado que sofreu em 6 de setembro, Bolsonaro compareceu somente aos dois primeiros debates da campanha. Sem dispor de tempo no horário eleitoral gratuito, também não detalhou nenhum dos seus projetos para o país. Minha impressão é que seus eleitores, ao votarem nele, imaginam escolher uma espécie de João Doria nacional.
Outra hipótese, mais óbvia mas não menos intrigante, é a que vê no antipetismo uma razão forte para Bolsonaro ter saído de seu nicho. A maré bolsonarista deveria menos aos méritos do candidato do que a uma força inercial da opinião pública. Dito de outro modo, qualquer candidato que disputasse contra o PT acabaria vencendo.
Usei o adjetivo “intrigante” no parágrafo acima por uma razão muito simples. Onde estava o antipetismo tão visceral que ninguém foi capaz de dimensioná-lo? Aos olhos de agora, parece que todo mundo já sabia da força do antipetismo, mas nenhuma pesquisa de opinião feita antes de a campanha começar foi capaz de capturá-lo. Ao contrário, as pesquisas mostravam que Lula reerguia o petismo e que o partido já recuperava seu tamanho como legenda preferida do país. Havia inclusive uma hipótese para explicar a força do petismo: “O governo Temer e a prisão do Lula teriam ressuscitado o PT.”
Estudos sobre o desenrolar da campanha eleitoral de 2018, particularmente sobre o papel das redes sociais, devem mostrar a evolução do antipetismo. Meu palpite é que tanto a ampliação do antipetismo, como a mudança de patamar desse sentimento (de um estágio relativamente leve para um visceral) deve-se à eficácia do que chamarei, na falta de expressão melhor, de máquina de propaganda da campanha de Bolsonaro.
As eleições para prefeito do Rio de Janeiro em outubro de 2016 e a greve dos caminhoneiros, em maio de 2018, mostraram a força de uma nova forma de comunicação e mobilização social: o WhatsApp. Falo especificamente desse instrumento porque ele é realmente uma inflexão na forma de os brasileiros se comunicarem. De novo, não tenho estudos, mas posso observar na minha rotina que o WhatsApp é o grande responsável pela inclusão de milhões de cidadãos de baixa renda e baixa escolaridade na era digital.
Somente a comunicação via redes sociais, cultivada nos últimos anos no país, poderia explicar a força e a rapidez com que as ondas de opinião se propagaram nessas eleições. Antes, velhas ondas de campanha demoravam dias para se formar e precisavam do “boca a boca” para se propagar. Agora, a propagação da informação faz-se de maneira veloz, em escala geométrica – como provavelmente ocorreu na impressionante campanha que levou o juiz Witzel a saltar de um dígito nas pesquisas feitas na quarta-feira antes da eleição para 41% dos votos válidos no primeiro turno.
A campanha também foi invadida por uma onda de fake news. Assisti a dezenas de vídeos, quase todos pró-Bolsonaro, com montagens toscas, adulterações de fatos e estatísticas inventadas. A Justiça Eleitoral não se preparou para lidar com o fenômeno. Diferentemente do que tinha feito em outras eleições, quando controlava os desvios e agressões da propaganda de rádio e televisão, nesse ano o silêncio foi a sua tônica.
Mas nem tudo foi fake news. Depoimentos e trechos de eventos foram difundidos com eficácia pela campanha do PSL. Ouvi pastores e lideranças empresariais pedirem voto para o Bolsonaro. Vi compararem algumas propostas do candidato com as do PT. Acabo de assistir a um vídeo em que um bispo finaliza a sua homilia repetindo, e sendo efusivamente aplaudido pelos fiéis, o principal bordão da campanha bolsonarista: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.”
Bolsonaro é, a meu juízo, o maior fenômeno da história das eleições no Brasil. Muitos o comparam com Collor em 1989, mas sua força e abrangência são bem maiores. Uma coisa parece certa. Com Collor, vimos a emergência de um fenômeno propagado pelas redes de televisão. Bolsonaro não só nos mostrou que a era da televisão está se encerrando, como uma nova era começa: a das campanhas feitas nos subterrâneos da sociedade, por meio das redes sociais.

Embora essa seja uma análise ainda inicial, minha sugestão é que o pleito desse ano é um exemplo do que os cientistas políticos chamam de “eleição crítica”: uma disputa que desestrutura o padrão de competição partidária vigente.
Enumero quatro elementos que demonstram que as eleições deste ano marcam o encerramento do sistema partidário que vigorou por duas décadas: o fim da polarização entre PT e PSDB nas eleições presidenciais; o fim da centralidade do primeiro como força organizadora do sistema partidário; o declínio dos dois maiores partidos de centro (PMDB e PSDB); e a emergência de um novo e expressivo partido de direita (PSL).
A onda bolsonarista foi tão forte que, nos dias que se seguiram ao primeiro turno, os prognósticos sobre o resultado do segundo turno podiam ser resumidos em duas perguntas: Qual será a diferença a favor do candidato do PSL? Será que ele superará o desempenho de Lula em 2002? (Nesse ano, o candidato do PT recebeu 61,3% dos votos válidos, a maior votação já obtida por um candidato a presidente.) As pesquisas publicadas na primeira semana após o segundo turno reforçaram a ideia de vitória por grande margem. Na pesquisa do Datafolha, o deputado do PSL vencia com 58% dos votos válidos; na pesquisa Ibope vencia com 59%.
Em razão da grande vantagem confirmada nas primeiras pesquisas, Bolsonaro manteve a mesma estratégia adotada no último mês de campanha do primeiro turno: priorizou a difusão de mensagens por intermédio das redes sociais, não participou de eventos públicos e nem compareceu aos tradicionais debates promovidos pelos principais meios de comunicação do país. A diferença é que sua campanha chegou ao rádio e à televisão.
Com apenas oitos segundos, o ex-capitão havia sido quase invisível nos meios tradicionais de comunicação no primeiro turno. No segundo, com os dez minutos do programa eleitoral e centenas de inserções, ele teve que dar uma atenção especial ao velho (e para ele novo) formato de comunicação.
Se pudermos recorrer a uma metáfora esportiva, a estratégia de Bolsonaro lembrou a dos times de futebol que, vencendo por larga vantagem, “jogam contra o relógio”. Deixam o tempo passar, trocam passes para o lado até que o juiz aponte para o centro do gramado.
Na campanha de Haddad, em contrapartida, inicialmente nada parecia funcionar. A tentativa de organizar uma frente democrática foi um fiasco. O petista recebeu apoio crítico do PDT e Ciro Gomes preferiu não declarar seu voto; Fernando Henrique Cardoso e outras lideranças nacionais do PSDB também preferiram não se manifestar; Marina Silva deu seu apoio quinze dias depois do domingo do primeiro turno. Chegavam notícias de que até mesmo os dirigentes do PT não acreditavam na sorte de seu candidato e temiam uma derrota humilhante. Em mais de uma conversa com amigos chamei a atenção para a “solidão de Haddad”. A sensação era outra: a do time que está sendo derrotado por uma grande diferença e conta os segundos para que o jogo acabe.
A incapacidade de Haddad e do PT para ampliar o seu arco de alianças foi relativamente compensada por um movimento de apoio, também cultivado nas redes sociais, que contou com grandes atividades de rua na última semana antes do pleito. Foi provavelmente por causa desse movimento que o candidato do PT não sofreu a derrota que se desenhava no começo do segundo turno. A comparação dos votos dos dois turnos, incluindo os votos nulos e em branco no cálculo, mostra que Haddad acabou crescendo mais (passou de 27% para 40% dos votos totais), do que Bolsonaro (passou de 42% para 50%).

Escrevo as linhas finais desse texto poucos minutos após a confirmação de que Bolsonaro é o novo presidente do Brasil. Escuto muitos gritos, panelas batidas e fogos para celebrar a vitória. O volume se assemelha ao das manifestações contra a ex-presidente Dilma Rousseff. Numa eleição de tantas novidades cabe registrar mais essa. Pelo menos no Rio de Janeiro, nunca tinha visto uma vitória eleitoral ser tão celebrada.
Ainda vou passar muitas semanas analisando os dados das eleições de 2018. Mas como não podia deixar de ser, começo observando o que ocorreu em Nova Friburgo: no primeiro turno, Bolsonaro obteve 63% dos votos válidos, Ciro Gomes, 16% e Haddad, 10%. No segundo turno, Bolsonaro obteve 73%. Já na minha zona eleitoral, no Rio, o quadro foi bem mais equilibrado no primeiro turno: Bolsonaro obteve 44% dos votos, Ciro, 30% e Haddad, 13%; no segundo turno Bolsonaro chegou aos 54%.
Olho os números e me dou conta de como Bolsonaro foi bem votado em outras áreas da cidade do Rio de Janeiro. Enquanto isso, os gritos pró-Bolsonaro e contra o PT continuam a ecoar lá fora. Realmente, estamos diante de um fenômeno eleitoral diferente de tudo que eu já tinha visto.
Revista Piauí (edicão novembro 2018)

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