Em novembro de 2008, o então senador republicano John McCain, em discurso de aceitação de derrota no Arizona, teve que pedir a seus apoiadores para interromper as vaias quando citou o nome de seu adversário na corrida presidencial, o democrata Barack Obama. O ruído que o impediria de seguir com o pronunciamento reproduziu-se com a mesma intensidade, mas em tom positivo, ao homenagear sua companheira de chapa, a ex-governadora do Alasca Sarah Palin, representante de uma ala mais radical do partido. Era a segunda vez, em um mês, que o republicano precisava pedir moderação a seus apoiadores, que buscavam atacar a figura de Obama com informações falsas.
A cena era um prenúncio do que se tornaria a disputa política nos EUA a partir de então. A reação à crise e à eleição de Obama levariam, já em 2009, à ascensão do Tea Party, movimento conservador e anti-establishment que defendia, de forma virulenta, a redução nas tarifas de impostos, restrições à imigração, maior flexibilização do porte de armas e punição aos grandes investidores de Wall Street, considerados responsáveis pela crise de 2008.
O movimento, que tinha em Sarah Palin um de seus símbolos, foi o primeiro passo de uma nova direita dentro do Partido Republicano, que, sete anos depois, voltaria à Casa Branca por meio de um outsider, Donald Trump, que surpreendeu e sacodiu o establishment político americano. Nesta semana, Trump considerou o resultado das eleições de meio mandato presidencial um "tremendo sucesso", após os republicanos ampliarem o controle do Senado, apesar de terem perdido a maioria na Câmara.
Do lado democrata, a disputa havia surpreendido na fase das primárias da eleição de 2016 com a ascensão do senador Bernie Sanders, que se declara socialista. Derrotado por Hillary Clinton, escolhida candidata pela maioria dos delegados e superdelegados do partido, Sanders levou consigo uma vitória moral. Tanto pelo apoio junto aos jovens quanto pelo fato de as pesquisas na época mostrarem que ele, com sua agenda nacionalista e social, seria o democrata a derrotar Trump, também defensor de uma agenda nacionalista econômica. Sanders conseguiu, ainda, levar de volta para o vocabulário político americano o adjetivo "socialista".
O esvaziamento do centro político e a ascensão de candidatos e programas partidários próximos aos extremos do sistema político é o cerne do estudo Nacionalismo Econômico, em desenvolvimento no Peterson Institute for International Economics, um dos principais centros de pesquisa dos EUA. A pesquisa é coordenada pela economista Monica de Bolle, pesquisadora do instituto e diretora dos estudos em América Latina e Mercados Emergentes da Johns Hopkins.
O levantamento, realizado a partir das propostas partidárias de candidatos dos países que compõem o G20, classifica o nacionalismo econômico em várias nações, comparando as plataformas políticas e econômicas dos partidos nos períodos anterior e posterior à crise de 2008.
A pesquisa definiu sete pontos para a análise: os tipos de políticas de concorrência, industrial e comercial; o nível de abertura ao capital estrangeiro; o tipo de política macroeconômica; a relação com organizações multilaterais e a abertura e restrição à imigração.
Na virada dos anos 1990 para os anos 2000, o consenso social-democrata liberal, uma marca do mundo entre 1989 e início dos anos 2000, estava muito presente nas plataformas partidárias, mostra a pesquisa. Depois da crise de 2008, é possível identificar um aumento de propostas nacionalistas. Esse fortalecimento, até o momento, é mais percebido nas economias desenvolvidas, como EUA e Inglaterra, pelo abalo sofrido diante da crise econômica.
"Quando você olha o programa dos republicanos pré e pós-crise, houve um 'swing' nacionalista. O programa dos republicanos em 2016 é bem mais nacionalista e em cima da política e da retórica de Trump, que é bem nacionalista. Nos EUA o que diferencia [hoje] os republicanos e os democratas é a agenda de costumes e o progressismo cultural", afirma Monica. "Na política econômica, os democratas mais radicais têm uma postura muito intervencionista. Assim como os republicanos. A identidade de um partido e de outro está se colocando na questão de costumes."
Na Inglaterra, uma convergência de propostas também foi observada ao comparar o Partido Conservador e o Partido Trabalhista, diante do esvaziamento do centro. Nas eleições de 2005 para o Parlamento Britânico, o Partido Liberal Democrata, de centro, conquistou 62 assentos, a maior bancada de sua história. Caiu para 57 em 2010, após a crise, quando compôs com os conservadores liderados por David Cameron. Nas eleições seguintes, em 2015, fez 8 assentos. Subiu para 12 em 2017.
Segundo a economista, essa aproximação entre os programas dos partidos majoritários do Reino Unido se deu pela preocupação extrema com o trabalhador britânico, que era tradicional dos trabalhistas. "Hoje tem uma convergência imensa entre um campo e outro. A única coisa em que eles não convergem é no Brexit [defendido pelo Partido Conservador]", afirma Monica. "Em todo resto, eles convergem: na questão migratória, na política industrial, no objetivo maior de políticas econômicas para garantir emprego no Reino Unido para os britânicos. Se você não soubesse que estava lendo o manifesto dos conservadores, você acharia que está lendo o dos trabalhistas."
Na América Latina, com exceção do México, que elegeu Andrés Manuel López Obrador neste ano, as propostas nacionalistas ainda não tiveram a mesma repercussão eleitoral, embora tenham ganhado espaço. "Até Lula, na reeleição de 2006, [o programa nacionalista] é bem comedido, em relação ao de Dilma e ao de Haddad. O de Haddad é o de Dilma. No PT tem uma tendência de ir para o extremo-nacionalista clara, assim como no programa de [Cristina] Kirchner [ex-presidente argentina]."
Apesar de o lulopetismo, em 2018, e o kirchnerismo, em 2015, terem sido derrotados, Monica não vê a rejeição a uma plataforma nacionalista como fator decisivo nas urnas. "Tem a ver com as questões locais. No caso brasileiro, como o nacionalismo está no PT, mas não em outros programas, ele foi rejeitado. A mesma coisa na Argentina", diz. "Não é que a pauta nacionalista tenha perdido a tração. O que explica os dois terem perdido as eleições [é o fato de] que estavam lá [no poder] quando a crise econômica se abateu sobre ambos. Houve uma rejeição ao kirchnerismo e ao lulopetismo, mas não ao nacionalismo."
Da mesma forma, apesar do lema "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos", a economista observa que não se pode atribuir a vitória de Jair Bolsonaro (PSL) ao nacionalismo econômico, identificado nos militares que o apoiam e em seu histórico parlamentar, nem ao liberalismo econômico defendido por seu futuro ministro da Economia, Paulo Guedes. "O programa de Bolsonaro permite toda e qualquer interpretação. Não tem nada de liberal no programa dele porque não tem nada no programa dele."
O escritor e economista Eduardo Giannetti vê, em âmbito global, três vetores fortes de mudança que levam a essa mudança no quadro político do pós-Segunda Guerra. O primeiro é a incorporação no mercado de trabalho global de centenas de milhões de asiáticos: "Uma péssima notícia para a mão de obra pouco qualificada nos países [desenvolvidos]". O segundo é a crise financeira de 2008: "No momento de ascensão, ninguém questionava que os ganhos [com a desregulação financeira] eram de natureza privada. No momento que esse castelo de cartas ruiu, o prejuízo foi socializado".
Na União Europeia, que adotara o euro como moeda na maior parte dos países-membros em 2002, o impacto da crise levou a um problema fiscal grave, minando o processo de unificação que parecia vitorioso, observa. Por último, ele vê como fator a revolução tecnológica, que está mudando o modo de fazer política e fragmentando o espaço público do debate.
"À medida que se perde esse território comum, aumenta-se a desigualdade, e o sistema econômico perde a legitimidade que teve, abre-se espaço para a radicalização, estreitando o espaço para posições de centro. Não é coincidência que a ascensão da extrema-direita se deu nos anos 1930 e agora no pós-crise de 2008. A direita sabe explorar muito bem o medo e a raiva do cidadão comum", afirma Giannetti.
No caso brasileiro, o presidente eleito trabalha com o "sentimento da raiva e do medo que estão no mundo e aqui, com todas as peculiaridades da Lava-Jato, da recessão provocada pela incompetência épica do governo Dilma", diz o economista. Para ele, Bolsonaro foi o catalisador da raiva gerada por tudo isso. "Foi um movimento de voto útil que não reflete as preferências genuínas do eleitorado."
Em sua visão, a "onda Bolsonaro" nessas eleições guarda semelhanças com a ascensão de Marina Silva (Rede) na corrida presidencial de 2014. Naquele ano, a candidata, que assumiu a cabeça de chapa após a morte do candidato Eduardo Campos (PSB), chegou a ficar tecnicamente empatada em primeiro lugar com a então presidente Dilma Rousseff (PT), que buscava a reeleição.
"O grande eleitorado brasileiro está há muito tempo buscando um outsider. A Marina esteve em vias de se tornar essa personagem. Essa onda da Marina tem parentesco com a onda que o Bolsonaro surfou. Só que essa onda [da Marina] foi interrompida pela campanha de Dilma em 2014. A violência da máquina governamental foi uma coisa brutal", diz Giannetti. Em 2014, o economista apoiava a candidatura do Rede.
Autor de "Presidencialismo de Coalizão: Raízes e Evolução do Modelo Político Brasileiro", o cientista político Sérgio Abranches afirma que "o centro não existe" como força política, mas é definido "pelos polos" que compõem o sistema. No caso brasileiro, enxerga no atual cenário "uma distribuição mais à direita do espectro político e o centro ficando fora de eixo". Verifica o início dessa abertura do sistema político brasileiro para os extremos em 2010, na eleição de Dilma. "Ela não tinha o apelo de Lula."
Nas Jornadas de Junho de 2013, ele observa que as ruas começaram a falar mais alto. "E ninguém ouviu." Em 2016, com o impeachment de Dilma, o PT teria se deslocado mais para a esquerda, e outros partidos como o PSDB, para a direita. Nessas eleições, em vez de o PT buscar refazer uma aliança mais ao centro, "entrincheirou-se mais à esquerda, com um programa parecido com o de Lula nas disputas com o FHC". "O resto se moveu mais à direita, que promoveu esse movimento antipetista."
Apesar da vitória eleitoral de Bolsonaro com 57,7 milhões de votos no segundo turno, Abranches não vê uma radicalização brasileira. O cientista político estima que o eleitorado de direita corresponda a 10% e 15% do total de eleitores. O resultado nas urnas se explica pela combinação entre dois eleitorados distintos: "Um de direita, que encontrou um candidato que expressa o que sente e aderiu a ele" e um eleitorado "que aderiu porque ele é anti-PT", sem, no entanto, corroborar com toda sua agenda. Bolsonaro, como Bernie Sanders, resgatou um vocábulo do léxico político. No caso brasileiro, o termo "direita", identificado, nos últimos 30 anos, com o apoio à ditadura.
No segundo turno de 2018, o número de votos brancos e nulos chegou a 9,6%, maior índice desde 1989. As abstenções, neste segundo turno, ficaram em 21,3% ante 21,1% no segundo turno de 2014. "Esse pessoal que não votou nem em um nem em outro simplesmente não se sentiu representado nessa polarização [PT e PSL]. Tem um espaço vazio nesse espectro político. O sistema partidário não oferece ao eleitor opções que o representem e o convençam que são opções de representação", diz Abranches.
O cientista político Ian Shapiro, professor da Universidade Yale e um dos autores do livro "Responsible Parties: Saving Democracy From Itself", atribui a vitória de Bolsonaro ao fortalecimento da figura do presidente da República, expressa pela Constituição de 1988. "Na América Latina, o problema é que o presidencialismo é tão forte, que faz os partidos e legisladores quase irrelevantes. A ideia de fortalecer a Presidência para reduzir o impasse com o Parlamento produziu essa bagunça na qual vocês estão inseridos", diz.
No caso americano, segundo ele, a responsabilidade por candidaturas populistas nos dois principais partidos americanos é das reformas realizadas no sistema eleitoral nas últimas décadas, que levaram ao que ele qualifica de enfraquecimento da política partidária. Entre os problemas citados pelo cientista político, estão a descentralização dos partidos, por meio das primárias, por exemplo.
"Isso permitiu que grupos pequenos fossem influentes nas escolhas dos candidatos presidenciais", afirma. "Muita gente não sabe que 5% do eleitorado [republicano] escolheu Trump como candidato do partido. Isso fez com que seja muito difícil para candidatos moderados ou para o establishment republicano barrá-lo."
Shapiro vê desafio semelhante ao Partido Democrata, que, em 2016, viu a inesperada ascensão do socialista Bernie Sanders. Seu crescimento, por outro lado, levou à renovação de quadros partidários democratas nas "midterms", como são chamadas as eleições legislativas e estaduais no meio do mandato presidencial. "É muito possível que um populista de esquerda ganhe as primárias em 2020. Os superdelegados não podem ir contra a votação das primárias."
O esvaziamento do centro - à direita e à esquerda - encontrou barreiras, porém, em dois países europeus: na França e em Portugal. Neste último, diante do impasse por formação de maioria nas eleições de 2015, uma piada assumiu o comando: a "geringonça". O termo criado por Paulo Portas, do conservador CDS-PP (Partido Popular), referia-se de maneira crítica à coalizão entre o Partido Socialista (PS), o Bloco de Esquerda, Os Verdes e o Partido Comunista Português (PCP).
"A geringonça vai até o extremo direito do centro, mas tende mais à esquerda. Portugal se tornou um enclave liberal da União Europeia em retrocesso. Isso favoreceu o sucesso desse governo", afirma o cientista político Mathias Alencastro, do Centro Brasileiro de Análise e Pesquisa (Cebrap). "Portugal é um país que, ao contrário da Espanha, superou o regime salazarista. Você não tem nenhum partido que se reivindique herdeiro [da ditadura de António Salazar]. Enquanto uma parte do Partido Popular [da Espanha] se reivindica herdeiro do franquismo [a ditadura de Francisco Franco]. Você não tem uma extrema-direita organizada [em Portugal]."
No caso francês, a impopularidade do governo de François Hollande, do Partido Socialista (centro-esquerda), foi um dos fatores determinantes a levar a Frente Nacional (hoje Reunião Nacional), de extrema-direita, em ascensão desde 2012, para o segundo turno das eleições presidenciais de 2017, o que não acontecia desde 2002. A candidata, Marine Le Pen, no entanto, perdeu a eleição para Emmanuel Macron, do En Marche (fundado em 2016), que obteve 66% dos votos e fez a maioria nas eleições legislativas de 2017.
"A emergência do centro não foi o único evento. O outro foi o surgimento de uma outra força de esquerda [França Insubmissa], que ocupou o lugar do partido de centro-esquerda [PS]. O que o Macron conseguiu fazer é organizar o centro", afirma Alencastro. "O que o Macron fez pode ser replicado em outros lugares. O que não apareceu foi alguém capaz de organizar o centro."
Não é possível dizer, porém, que a França encontrou o caminho do centro num mundo que se radicaliza. Em outubro, de acordo com o Ipsos, a aprovação de Macron junto aos franceses era de apenas 26%, ante 40% em janeiro. "O movimento En Marche fracassou na criação da militância. A razão é a organização, extremamente centralizadora, e porque o aparelho ideológico é muito pouco definido. As pessoas não entendem muito bem que elas são militantes do macronismo", diz o cientista político. "Muitos eleitores da França Insubmissa vão votar na Le Pen. O grande desafio dele para a reeleição é consolidar o movimento. Se ele se apresentar como uma alternativa aos extremos pode quebrar a cara. Se você se apresenta como uma alternativa ao cenário pior, as pessoas escolhem o pior."
Valor Econômico/10 de novembro de 2018
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