É compreensível que no rescaldo da convulsão representada pelos resultados das eleições de 2018, o país ainda relute no deciframento do que as surpresas e os desapontamentos de fato dizem. Os derrotados mobilizam seu arsenal de estereótipos relativos a uma concepção binária da política, em que só existem eles e seus contrários. Continuam em campanha eleitoral, ao fazer de conta que as eleições ainda não se realizaram.
O que resta a quem perde eleição é tentar compreender os motivos de sua rejeição pela maioria eleitoral, a que nas urnas recebe a missão de manter as coisas como eram ou de modificá-las. E, se for o caso, como parece-me que é, abandonar ou reformular concepções e práticas, mudar de rumo, encontrar caminhos, repensar a própria identidade. Sobretudo, repensar e decifrar quem é o outro que teve a preferência do eleitorado.
Quem ganha eleição nunca está no melhor dos mundos. Mais que tudo porque não tem alternativa senão a de repensar-se, agora como expressão do descontentamento com a alternativa que o voto recusou. Porque terá que governar um país dividido, mas também contraditório e diversificado. Politicamente, o país pós-outubro de 2018 já é inteiramente outro.
Os primeiros passos na direção da constituição do governo são de visíveis altos e baixos, de um próximo futuro de certezas na questão da ordem e de incertezas na questão da ciência, da cultura, da educação, do combate à pobreza, dos direitos sociais. Certezas e incertezas que desafiarão tanto o governo quanto as oposições.
O novo presidente não foi eleito para governar com base no que querem as oposições, mas com base naquilo que as oposições não querem. Seu desafio principal é o de não ignorar os que a ele se opõem. Mas o de assimilar o perfil e o querer dos novos sujeitos do processo político, que as eleições revelaram. É o de fazer a mediação que transforma a raiva anacrônica, própria dos vitoriosos ressentidos, em atos positivos de governo para todos. É nisso que eleitos provam que tem vocação de estadistas. Há indícios de que isso poderá acontecer, mas ainda não há o convencimento de que será esse o horizonte do novo ano.
No entanto, são muitos os sinais positivos de mudanças decorrentes das eleições. Destaco a revolucionária novidade da eleição da primeira mulher indígena à Câmara dos Deputados. É Joênia Wapixana, advogada, que já se apresentou no Supremo Tribunal Federal para defender a demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, terra ancestral de sua gente. Fez o preâmbulo de seu discurso jurídico em sua própria língua nativa, ouvida em soleníssimo silêncio pelos ministros e pelos presentes. Provavelmente, a primeira vez que um indígena brasileiro falou uma de nossas muitas línguas indígenas na mais alta corte do país.
Patriótico momento, em que tantas, incorretas e injustas objeções e ameaças são feitas às nossas nações indígenas, guardiãs de nossas culturas de origem e fundamento de nossa identidade nacional. Ameaças feitas em nome da vulgaridade do ganho fácil e da negação da humanidade da pessoa.
Sua fala difere positivamente de tantos que mal falam uma única língua, a língua estrangeira que adotamos como língua do Brasil a partir de 1727 para assegurar nossa unidade. Preço para sermos, não obstante, a nação brasileira, mestiça, pluralista, multicultural.
Joênia Wapixana foi candidata pela Rede, de Marina Silva, uma vitória do pensamento pluralista, republicano e democrático inspirado pela figura emblemática da militante acreana.
Também do "outro" lado do surpreendente processo político brasileiro, há uma indígena, a tenente do Exército Sílvia Nobre Waiãpi, com uma história pessoal de adversidades, desde pouca idade, como a do drama da destribalização e a de ter sido moradora de rua.
Ela faz parte do grupo de trabalho do presidente eleito, que prepara a transição para o novo governo. As estruturas profundas de sua identidade brasileiramente indígena poderão servir como alertadora nota de rodapé na definição do que o novo governo poderá ser.
Esses são indícios de que as identidades de referência ideológica, que ganharam força no Brasil da era neopopulista, como identidades de conflito, estão buscando novas referências. As identidades conflitivas foram solapadas no pronunciamento eleitoral de outubro porque já esvaziadas pelos que as instrumentalizaram no poder.
Mesmo a classe trabalhadora perdeu seu referencial de classe operária para encontrar sua nova verdade na identidade de classe média. Essas mudanças indicam mudanças de mentalidade, de aspirações de comportamento, como a do comportamento eleitoral. Resta saber o que os novos governantes e as oposições farão com elas.
Valor Econômico/16 de novembro de 2018
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