Entre 2013 e 2018, alusões a 1964 têm sido abundantes como retórica do embate político e midiático. Sérios transtornos sociais, prejuízos econômicos, complicação do problema fiscal e desdobramentos políticos do locaute das empresas transportadoras de carga que encorpou o movimento dos caminhoneiros deram, nos últimos dias, ainda mais audiência a quem difunde esse tipo de analogia.
Na mesma direção vai a percepção geral da fraqueza política do governo para deter a sabotagem perpetrada contra o país. O mesmo governo que vem saneando e recuperando a Petrobras caminha agora em direção ao passado recente, quando a instrumentalização política da empresa, associada a uma política de desoneração de empresários, afundou o tesouro nacional e ajudou a desarmar estado, economia e sociedade no enfrentamento de uma recessão que vinha então a galope, uma tempestade ocultada pela maquiagem marqueteira da campanha governista de 2014.
Analisado isoladamente, o caso da atual gestão da Petrobras é dos mais bem sucedidos. Pode-se discordar da orientação adotada mas ali há (ou houve) política pública. Ali não houve (ou não havia) o vaivém do governo na busca do equilíbrio das contas públicas, visível em outros setores. Porém, o governo paga alto preço por ter permitido um tal grau de insulamento à Petrobras que a desconectou da grande política. Colocar fim na política de varejo e na instrumentalização partidária no atacado, marcas do período anterior, é um mérito, mas era preciso fazer isso com régua e compasso, atento à necessidade de ir ganhando mais aliados no curso da política adotada. Num país onde o novo e o antigo sempre estão a se misturar, ir pelo incremental é sempre bom conselho. A gramática política do Brasil, como mostrou Edson Nunes, é sincrética e foi ignorada ao se fazer um tratamento de choque radical. Perdendo o compasso, o governo passou só a régua e - vê-se agora - produziu amplo leque de adversários, além dos inevitáveis. Implacáveis na defesa de seus interesses corporativos, transportadoras e caminhoneiros legaram um rombo financeiro ao país e abriram aos pés do governo uma cratera política, com aplauso ou silêncio de políticos acovardados e eleitoralmente ansiosos.
A realidade é que os defensores do status quo anterior ganharam de volta um discurso, ainda que mistificador. A imprudência encontra um limite espantoso quando gente de esquerda sai a reboque do locaute empresarial e de sabotagens populistas e autoritárias ajudando a mergulhar o país no caos. Mas o que querem? Deixar faltar gasolina para que o preço baixe? ou pensam em usá-la para atiçar o fogo no qual eleições podem ser incineradas? Fazem o jogo da direita na ilusão de que rirão por último. Essa fantasia e a aventura que dela decorre levam, à primeira vista, a nos lembrar 1964.
Apesar das aparências é o caso de distinguir, não de confundir as coisas. Proponho que recusemos o raciocínio anacrônico que tenta exumar, como assombração, um fato relevante ocorrido no passado, como se fosse parte de uma tradição, daquelas tradições através das quais, conforme Marx, gerações mortas oprimem os cérebros dos vivos. Conferindo a conspirações e golpes o status de uma tradição nacional, essa narrativa agride o método de Marx, pois oculta, ideologicamente, um traço forte da tradição política brasileira: a aceitação, pela elite política, da sugestão de Tocqueville, de tratar a mudança mental de uma sociedade como se fosse desígnio da Providência, ao qual não cabe resistir, mas que é preciso fazer deslizar, o mais suavemente possível, para que não se torne um liberticídio.
A adoção dessa sugestão por uma elite politicamente ativa está na raiz da propensão ao acordo e à negociação que marca, mais que os momentos de ruptura, a nossa história política e a faz contínua enquanto a sociedade se transforma. Os riscos que nossa democracia atual enfrenta – e eles não são desprezíveis – estão menos nessa nossa tradição e mais em desconsiderá-la, como fez o governo na condução política da mudança na Petrobras. Agora tenta retomá-la, para tentar diminuir o estrago.
Os riscos não compõem um flashback. Invisíveis pelo retrovisor, são próprios da complexidade e da intensidade inaudita de mudanças políticas, sociais, culturais e tecnológicas possibilitadas, inclusive, pela avenida institucional que se abriu, há 30 anos, com a promulgação da atual Constituição. O quadro é preocupante mas não porque as instituições políticas tenham trincado ou sejam más. O problema, está, em parte, na fortuna, ou seja, na objetiva e farta oferta de novos fatos sociais realmente difíceis de compreender e de incorporar ao cotidiano institucional. Mas está, também, em boa medida, na escassez de virtú, a virtude política que se tornou rara onde precisa ser comum.
Com as exceções de praxe – que devem ser valorizadas – as instituições políticas e outras, que as devem controlar, estão sendo pilotadas sem imaginação e sem suficiente responsabilidade política. Refiro-me não só ao patrimonialismo tradicional e ao oportunismo raso, presentes na elite política propriamente dita. Ela é alvo de contundentes operações policiais e judiciais e recebe reprovação da sociedade pelo que faz, pelo que não faz e também pelo que lhe imputam demagogos de vários matizes, que batem ponto na própria política, em corporações estatais e empresariais e na imprensa. Refiro-me, também, ao corporativismo e messianismo difusos em elites que se pretendem moralizadoras, bem como no discurso e na práxis de sindicatos e outros entes da sociedade civil, entregues a um varejo medíocre. Amantes de esquinas de variados tipos, com seus fundamentalismos e/ou pragmatismos, contribuem para travar a fluência do trânsito na avenida. A busca de atalhos e cirurgias, de tão insistente, pode acabar mesmo nos levando a novas esquinas. E uma vez diante delas, improvisos de má qualidade ou scripts inaptos à via democrática e pluralista aberta em 1988 podem nos enredar em becos. O locaute do setor de transportes apontou para um deles.
Movimento na estrada na contramão da avenida
A crise política prolongada estimulou empresários a seguirem, nesse maio de 2018, script análogo ao usado pelos irmãos Batista, no maio do ano passado, para chantagear o estado e a nação. Mas quem são os Janots do maio de 2018? Haverá hoje um Congresso disposto a frustrar suas intenções? Partidos e lideranças que ainda possam adiar táticas eleitorais para salvar uma pinguela estratégica? Presidente e governo em condição de operar a política real com habilidade e eficácia, sem ceder no essencial do seu programa de recuperação econômica? Ou de tratar com firmeza os sabotadores sem contar apenas com as corporações armadas? Interpeladas com frequentes missões excepcionais, sob holofotes, essas corporações manter-se-ão inflexivelmente restritas a rotinas da vida profissional?
A inquietante resposta comum a quase todas as perguntas parece ser um genérico não. Mas a primeira das perguntas requer, para ter resposta, um entendimento prévio mínimo do que se passou no caso específico desse movimento de caminhoneiros e de empresas de transporte de carga.
Apesar das declarações firmes e verazes do ministro Jungmann merecerem menção, bem como o sentido institucional da linha de ação que sugeriu, é recorrente e também veraz a avaliação de que a situação política do governo e do presidente não levou a posição clara e ação em tempo hábil para sanar a sabotagem. Na outra ponta da realidade, o ministro Marun levava ao presidente novas reinvindicações de caminhoneiros. Como as dos empresários, primeiros da fila, elas foram tratadas – e tinham de sê-lo - como se houvesse greve convencional, envolvendo trabalhadores e sindicatos e não o que de fato havia: paralisação sustentada por movimento de empresários com objetivo econômico antissocial, sem armas, mas com metodologia para militar e potencial político explosivo.
Fique claro que não se trata de criticar o governo por ter negociado. É da sua índole e isso é bom. Trata-se é de ter realismo para reconhecer que o governo não estava em posição forte para negociar. E isso é ruim. Está sendo comemorado por quem de fato pensa e por quem só declara que pensa (a intenção aqui importa menos que o efeito do pensamento equivocado quando orienta a ação) defender o interesse público ao enfraquecer mais o governo nessa hora. O equívoco está em não considerar que prejuízos coletivos serão proporcionais à força de quem estava do outro lado da mesa.
A falsidade das analogias com 64 não nos dispensa de tentar responder à pergunta sobre quem são os Batistas e Janots do maio de 2018. Buscar uma resposta a essa altura só tem sentido político se for para reverter o êxito da presumida ação ilegal. Tarefa que o ministro Jungmann assumiu ser dos órgãos de segurança institucional mas que não teve até aqui serventia. Comprovado o locaute (e já há, ao que se diz, 48 processos), há possibilidade política de recuo em pontos já firmados do acordo, lesivos às contas públicas? Se não há seria imprudente recusar a simultânea pauta encaminhada por Marun. Claro que as conclusões da investigação serão úteis, mas o tratamento político que se dará a elas já foge ao poder de decisão do governo Temer. O êxito do movimento está consumado, tenha sido ou não ilegal o seu método e mesmo que se confirme o caráter antissocial da sua motivação.
Mas detectada a conspiração, resta ainda saber por quê terá dado certo. Como já se disse bem sobre 64, o simples fato de uma conspiração existir não explica seu eventual sucesso. A questão em aberto conduz ao tema da fragilidade política do governo Temer, para entendê-la, do ponto de vista político. Tema que não é assunto maduro para cientistas políticos, menos ainda para historiadores. Mas uma elite política não pode adiá-lo, sob pena de praticar haraquiri antes de um golpe lhe ser imposto. Depois do fato consumado a ela restará apenas confessar o ato de se ter auto convertido em fantasma.
Por que a pinguela balança?
O tema central aqui, repito, é o que explica a fragilidade do governo Temer. Para se ter resposta útil e tempestiva sobre isso é preciso pensar em quem tem responsabilidade política e institucional pela condução do país, além do próprio governo, cuja conduta já analisei.
Para começar, a fragilidade não é produto exclusivo do processo político que gerou esse governo. Essa é uma simplificadora e obviamente interessada explicação para um problema complexo. Se em política houvesse correspondência tão direta entre alhos e bugalhos, o colégio eleitoral inventado pela ditadura não teria sido, como foi, ponto de partida para a institucionalização prática de uma democracia de amplitude inédita no Brasil, processo de conflito e negociação que incluiu também praças e avenidas lotadas, como estiveram igualmente em 2013 e em 2015/2016.
Seguramente não é simples assim. A fragilidade inaugural do governo Temer seria (e estava sendo) superada pela entrega de uma das mercadorias prometidas, a reconstrução da economia. A outra meta, a pacificação do país, teve logo seu cumprimento travado por atores interessados, por razões diversas, em impedir que o governo acumulasse dividendos políticos com o êxito da primeira. A ilusão de que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa começou a se desfazer quando o governo começou a atirar em direções contraditórias para compensar os efeitos da gradativa deserção de aliados, cada vez mais focados no imediatismo eleitoral. Foi perdendo seu próprio foco e com ele a força relativa que ainda retirava da clareza de sua plataforma reformista. A realidade da conexão entre economia e política mostrou-se, explicitamente, dramaticamente, na conexão entre estradas bloqueadas e cidades desabastecidas. A política, aos poucos interditada durante a crise, sumiu da prateleira porque a elite política, sem combustível, sumiu dos postos que ocupa no mundo público.
Pontos fora dessa curva infeliz há talvez em todos os partidos que não são apenas siglas de aluguel. Necessitam de articulação transversal para vencerem a barreira da invisibilidade. Há um manifesto em circulação, assinado por gente de peso e respeito, tentando emitir um toque de reunir para democratas e reformistas. Até aqui, parca resposta, dando a suspeitar que a política chamada por Marco Aurélio Nogueira de “dos políticos” tenha sofrido edema de glote e agonize sedada na UTI.
Essa sensação de vácuo político conduz boas cabeças a se voltarem, como solução, para a política “dos cidadãos”. Há aí dois problemas: ela não é bem votada no eleitorado profundo e, principalmente, ela não governa, nem aqui nem em qualquer lugar do mundo. A democracia é (ainda) o governo dos partidos, portanto, dos políticos. E será assim enquanto não inventarem nada melhor, ou até que algo melhor entre, de fato, na política e não se limite a fazer a sua crítica. Macron pode estar sinalizando isso? Talvez (se a política externa deixar) mas até na França é preciso esperar um pouco para saber. E o Brasil em crise pede soluções para ontem.
Isso não significa desprezar a política do cidadãos. Ao contrário. Uma sociedade civil politicamente ativa é muito importante para democratizar a democracia. Mas governo é outra conversa, como mostraram nossas estradas bloqueadas e cidades desabastecidas. Terá sido por falta da política dos cidadãos ou pela omissão da política dos políticos, que segue sendo imprescindível?
Mais uma vez a história pode ensinar, em vez de confundir. É recorrente também lembrar de Ulisses Guimarães. Quero fazer isso salientando um determinando ângulo do seu legado. Através de sua liderança, a política dos políticos desobstruiu e pavimentou estradas, abasteceu e energizou o tráfego. O Ulisses que mais faz falta hoje não é o da resistência democrática e sim o artista da governabilidade. Sarney, o afortunado e Temer, o sem fortuna, que o digam. Como se sabe, Ulisses foi cristianizado pelo seu próprio partido, nas eleições de 1989. Porém, profissional - como são os bons políticos - ainda segurava o leme em 1992, quando foi preciso, por meio de um impeachment, consertar um erro das urnas, reconhecido pelos eleitores. Morreu duas semanas depois, em paz com sua missão. Simbolicamente não pode ser sepultado, nem cremado. Impossível não lançarmos, nessa hora difícil, um olhar perdido sobre a Serra da Mantiqueira, em busca de luz. Ou do toque de reunir.
(*) Cientista político e professor da UFBa.
30 de maio de 2018
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