IHU On-Line - Como o senhor tem avaliado o atual momento político do país?
Daniel Aarão Reis - Avalio com muita preocupação. A democracia parece balançar. O sistema político está profundamente desmoralizado. O Judiciário se deixa envolver em querelas menores. A população desconfia, com justiça, de um sistema que perdeu toda a credibilidade. Nas cidades, a violência e a barbárie campeiam. Altos chefes militares, entre os quais o próprio comandante do Exército, se permitem dar declarações ilegais e nem sequer são advertidos. Um candidato de extrema-direita cresce nas pesquisas de opinião pública. É um desafio maior lidar com estas complexas questões e conseguir aperfeiçoar a democracia, não a deixando naufragar nas mãos de aventureiros e salvadores da pátria.
IHU On-Line - Qual sua avaliação acerca da prisão do ex-presidente Lula? Qual é o significado histórico e político dessa prisão?
Daniel Aarão Reis - É mais um ingrediente — maior — no processo de desmoralização do sistema político. Dos dois candidatos que disputaram a presidência em 2014, uma, Dilma Rousseff, foi objeto de um impeachment. O outro, Aécio Neves, sofreu um processo tamanho de desmoralização que sequer seus amigos o aconselham a se candidatar a qualquer cargo eletivo. Enquanto isso, um ex-presidente, ainda muito popular, é condenado num processo frágil de provas, onde se evidenciou um ânimo condenatório muito mais político do que jurídico.
Lula é, sem dúvida, o grande responsável político pela mixórdia em que se deixou envolver o Partido dos Trabalhadores. A promiscuidade entre empresários, petistas e o próprio Lula, envolvendo outras lideranças políticas, aliadas, é muito clara. Entretanto, num processo jurídico é preciso que se aduzam provas concretas, insofismáveis. Não foi o que aconteceu no recente processo que condenou Lula.
Forma-se, assim, um contexto bastante desestimulante para quem quer acreditar na democracia. Eu tenho dito que a democracia brasileira está “balançando”. Todos estes aspectos contribuem, sem dúvida, para que ela “balance”.
IHU On-Line - Quais serão as consequências da crise do PT para a esquerda em geral? Essas consequências já podem ser observadas hoje?
Daniel Aarão Reis - O PT e Lula devem à sociedade uma autocrítica radical pelos seus “malfeitos”, como dizia eufemisticamente Dilma Rousseff. A própria Dilma deve esta autocrítica. Como explicar os mais de 300 milhões de reais que recebeu de empreiteiras e bancos em sua milionária campanha de 2014, eivada de fraudes, contra a qual havia um “oceano de provas”? Certamente estas “contribuições” não foram dadas pelo fato de ser ela uma ex-guerrilheira.
Lula ofereceria uma bela contribuição — um gesto de grandeza — se renunciasse à sua candidatura, abrindo novos horizontes para a articulação e recomposição das esquerdas. Mas é pedir muito ao homem que Lula sempre foi e, sobretudo, ao homem em que se tornou. De resto, aparentemente, a grande maioria dos petistas também não o deseja, pois se tornaram, há muito, apêndices e reféns de sua liderança, inquestionável. Sem embargo, a manutenção da candidatura Lula dificulta, e mesmo impede, articulações mais amplas que poderiam, eventualmente, resultar em caso de sua desistência.
IHU On-Line - Que tipo de rearticulação à esquerda deve ocorrer a partir de agora?
Daniel Aarão Reis - Se ele pode ou não concorrer ainda é uma questão jurídica em aberto e os petistas e Lula parecem decididos a explorar todas as brechas ainda possíveis. Do que se trata, porém — e urgentemente — para além de candidaturas pessoais, é de uma ampla frente em defesa da democracia e de reformas substantivas que consigam incentivar e encorajar uma retomada de confiança em nossa combalida democracia. A começar pela reforma política, fundamental para mudar o quadro atual. Lula teve oito anos como presidente e nada fez no sentido da reforma política. Ao contrário, preferiu conciliar com o que havia de mais sórdido na política brasileira, trocando favores e abrindo empresas estatais à ganância dos aliados e de seus próprios correligionários. Dilma foi pelo mesmo caminho, embora, pouco depois das manifestações de 2013, esboçasse, durante pouco tempo, propostas reformistas, logo abandonadas.
Proposta reformista
Nestas eleições, para que a democracia saia fortalecida, é preciso que se elabore uma proposta reformista clara, abrangendo, entre outras questões, o sistema político, o modelo econômico, a hegemonia do capital financeiro, o combate ao crime organizado, a remodelação do sistema de saúde e de educação públicos. É preciso evitar a demasiada personalização da disputa política. Que se explicitem as ideias, que não se fique a reboque de lideranças personalistas e carismáticas, “salvadores da pátria” que, uma vez encastelados no poder, só sabem salvar-se a si próprios e a seus apaniguados.
IHU On-Line - Como o senhor avalia o desenvolvimento da Lava Jato? Qual diria que será o significado histórico dessa operação?
Daniel Aarão Reis - A luta contra a corrupção, embora tenha sido no passado uma bandeira das direitas, tornou-se uma necessidade, apoiada por diferentes tendências do espectro político nacional. O desperdício dos dinheiros públicos, a falta de controle social na aplicação dos recursos, os dispositivos de proteção erigidos por uma política escandalosa de “imunidades”, o esclerosamento do Judiciário com seu emaranhado caricatural de “recursos e contrarrecursos”, tudo isto tem suscitado críticas e descontentamento.
A Lava Jato insere-se neste contexto e ganhou, por isso mesmo, um certo prestígio. Contudo, a avidez por notoriedade, a sedução pelos holofotes e a politização dos processos têm levado muita gente a reconsiderar e a reavaliar a ação do juiz Moro e dos procuradores que trabalham em associação com ele.
Não tenhamos ilusões: a corrupção não surgiu ontem nem acabará amanhã. Mas é possível estabelecer um regime que iniba corruptores e corruptos de todos os bordos e a corrupção sistêmica. Para isto é inadiável, além da referida reforma política, uma reforma do sistema judiciário, em alto e profundo. Neste âmbito, os juízes ganhariam incentivo para cumprir com autonomia suas funções, mas “falando nos autos” e não para os holofotes da mídia, atentos às provas e não se deixando seduzir por preferências político-partidárias. Além disso, precisamos de um sistema de controle social, público, em todas as empresas e entes estatais e paraestatais, incluindo-se, naturalmente, o próprio Judiciário. A sociedade precisa tomar a si a fiscalização dos poderes públicos e a da atribuição e da gestão dos recursos orçamentários.
IHU On-Line - Desde que a crise política se iniciou no país, muitos analistas cogitaram a possibilidade de não haver eleições presidenciais neste ano. Este receio já passou? Qual deve ser a característica marcante das eleições deste ano?
Daniel Aarão Reis - No momento atual, estes perigos parecem diminuídos. Entretanto, fatores de crise trabalham subterraneamente. Se eles se desencadearem, a curto ou a médio prazo, podem-se atualizar subitamente tentações golpistas. Os militares brasileiros, por exemplo, como nunca se viram como funcionários públicos uniformizados, mas como “anjos da guarda” da república (na verdade, e mais de uma vez, agiram como “anjos exterminadores” dos valores republicanos), podem se apresentar, em caso de crise grave, como “salvadores”. A seu favor, contam com dispositivos constitucionais que, por incúria ou inconsequência, mantiveram, apenas disfarçada, a tutela das Forças Armadas sobre as instituições democráticas.
A “corrida” presidencial, até o momento, infelizmente, parece muito mais marcada por disputas entre personalidades e siglas do que por ideias e programas.
IHU On-Line - Como avalia o possível cenário eleitoral das eleições presidenciais? Algum partido parece ter uma proposta para o país?
Daniel Aarão Reis - O cenário mais previsível aponta no sentido de uma grande fragmentação. O crescimento da extrema-direita é preocupante. O Brasil sempre foi uma sociedade profundamente conservadora, mas a ascensão de uma extrema-direita agressiva, abertamente racista e violenta, é um dado novo. Ela tem explorado, com algum sucesso, a descrença no sistema político e o medo das gentes ao crescimento da violência e do “caos” urbano.
O desafio é a construção de uma alternativa reformista, democrática, que poderia reunir o que de melhor existe no PDT, na Rede, no PSB, no PT, no PSOL e no PC do B, além de lideranças que ainda se salvam no PSDB e no PMDB. Em termos imediatos, esta ideia parece inviável, já que quase todos estes partidos têm candidatos próprios e disputarão o primeiro turno das eleições. Trata-se de, entre eles, manter um debate de ideias, que não se rebaixe à desmoralização de uns pelos outros, como houve no primeiro turno de 2014. Se esta linha de comportamento prevalecer, num eventual segundo turno poderia se constituir uma grande aliança, reformista e democrática, capaz de aperfeiçoar decisivamente nossa frágil democracia.
IHU On-Line - Muitos analistas têm chamado atenção para o risco que a democracia está correndo por causa do atual cenário político nacional. O senhor, de outro lado, tem enfatizado que a proliferação das milícias e do tráfico no país, especialmente no Rio de Janeiro, é o que de fato está colocando a democracia em xeque. Pode explicar seu ponto de vista, ou seja, por que considera que a democracia está em risco diante da solidificação desses grupos?
Daniel Aarão Reis - O crescimento exponencial do crime organizado (tráfico e milícias) tornou-se, hoje, uma das principais ameaças à democracia brasileira. O caos urbano e a violência indiscriminada são incompatíveis com um regime de liberdades democráticas. O assassinato de Marielle Franco é uma trágica evidência neste sentido, suscitando a convicção de que o crime organizado faz o que quer, quando, como e onde quer. Esta situação, aliás, é um dos principais ingredientes no processo de fortalecimento de uma extrema-direita violenta, excludente, racista e antidemocrática.
IHU On-Line - Que tipo de tratamento político tem se dado ao fortalecimento das milícias e do tráfico no Brasil? Quais serão as consequências desse tratamento no futuro?
Daniel Aarão Reis - Não há, infelizmente, uma política definida e consequente para tratar do assunto. O crime se estrutura nacional e internacionalmente. A polícia, desaparelhada e se ressentindo de parcos investimentos em Inteligência, além de corrompida até a medula, sobretudo a polícia militar, trabalha com critérios municipais e regionais. Mas não basta investir mais e reformar as polícias.
Trata-se de abrir a discussão sobre um dos fatores maiores da força do crime organizado: refiro-me à questão do tráfico de drogas frente ao qual a política atual de repressão é completamente inoperante, inconsequente e patética.
As drogas são um problema de sociedade e não de polícia. Enquanto esta questão essencial não for encarada, o país estará condenado a enxugar gelo, reforçando, involuntariamente, o crime organizado.
Observe-se, por exemplo, o sucesso na luta contra o tabagismo. O cigarro é uma droga nefasta, mas não foi proibida nem declarada ilegal. Uma combinação de políticas (educação, restrição de uso e de publicidade positiva, impostos altos, publicidade negativa etc.) conduziu a uma redução notável de seu uso, sem que fosse necessário acionar a polícia.
Além disso, é importante frisar que debelar o crime organizado passa também, e principalmente, pela universalização da noção de cidadania. Está escrito na Constituição mas ficou no papel. Sem que a noção de cidadania se universalize, haverá sempre ambiente propício para que surja e se dissemine o crime organizado.
IHU On-Line - Que razões e fatos explicam o poder das milícias e do tráfico e a sua consolidação no país?
Daniel Aarão Reis - Penso que a questão já foi respondida, mas vale insistir: uma polícia corrompida e desaparelhada, trabalhando com critérios amadores e limitados, num contexto onde prevalecem políticas públicas eivadas de preconceitos criaram uma situação amplamente favorável à disseminação do crime organizado.
IHU On-Line - A intervenção militar é ou não uma iniciativa adequada para enfrentar as milícias e o tráfico no Rio de Janeiro?
Daniel Aarão Reis - A intervenção militar, em geral, é nefasta. As Forças Armadas não devem ser mobilizadas para exercer tarefas de polícia. Isto é tão claro que chega a ofuscar. Aliás, elas deveriam ser formalmente impedidas, legalmente, de fazê-lo. Quanto à atual intervenção, suas marcas são a improvisação e a politicanalhice. A prazo, se continuar, pode produzir resultados (diminuição de ações criminosas), mas sempre estará longe de resolver o problema que a suscitou. Já temos inúmeros exemplos deste procedimento. As Forças Armadas “entram”, “pacificam” e, quando se retiram, volta a ser “tudo como dantes, no quartel d’Abrantes”.
(*) Daniel Aarão Reis é graduado e mestre em História pela Université de Paris VII e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. É professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense. É autor de, entre outros, A revolução faltou ao encontro - Os comunistas no Brasil (Brasiliense, 1990), A Aventura Socialista no Século XX (Atual, 1999), Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade (Jorge Zahar Editor, 2000), Uma revolução perdida: a história do socialismo soviético (Fundação Perseu Abramo, 2007) e Ditadura e democracia no Brasil (Zahar, 2014).
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