PERGUNTA: É possível se constituir uma frente de esquerda no Brasil de hoje?
MILTON LAHUERTA: Em princípio, é possível e até mesmo muito necessário, em virtude do avanço do conservadorismo, da intolerância e da insanidade política que acometeram boa parte das sociedades contemporâneas. No que se refere ao Brasil, talvez, em nenhum outro momento da história, tenha-se assistido a um processo tão radical e destrutivo de polarização ideológica. A questão é qualificar o que se entende por frente de esquerda e que atores políticos e setores sociais poderiam estar representados nessa proposição.
Até porque, ainda que haja uma grande polarização e muita intolerância nas redes sociais, num plano mais substantivo, nota-se que as clivagens não são tão claras e estão permeadas por muita incompreensão e muito preconceito, o que dificulta o enfrentamento das profundas transformações dos últimos 40 anos. Nesse sentido, o grande problema é discutir em torno de que bandeiras se pretende estruturar uma frente de esquerda.
Hoje, diante da vitória acachapante do capitalismo, provocada pela mudança de padrão produtivo e tecnológico, o que se vê no âmbito mundial é que a esquerda passou a defender pautas essencialmente defensivas. Ou seja, mais do que qualquer perspectiva afirmativa e radicalmente mudancista (ou revolucionária), atualmente, apresentar-se como de esquerda implica muitas vezes em defender posições e direitos que seriam mais adequadamente caracterizados como pertencendo ao campo do liberalismo político ou da social democracia do que ao da esquerda revolucionária clássica.
Então, cabe perguntar, do que se está falando quando se propõe uma frente de esquerda? Quem cabe nessa definição? As respostas a essas perguntas nunca foram fáceis – basta lembrar as tragédias que marcaram o século XX, causadas pela reiteração da lógica da classe contra classe (atualizada e “abrasileirada” pelo contemporâneo “nós” contra “eles”), e que impossibilitaram um diálogo mais construtivo entre as posições comunistas, social-democratas e liberais. Definitivamente, o século XX nos ensinou que essa nunca foi uma questão simples e que toda vez que se a encaminhou de modo sectário, abrindo-se mão da defesa da democracia em nome de um maximalismo destituído de realismo, o resultado foi catastrófico não só para os de baixo, mas para o conjunto da sociedade!
PERGUNTA: Pensando a sociedade brasileira, que hoje se encontra dilacerada por um grau absurdo de intolerância e de polarização, quais as pautas que podem unir, ou desunir, os partidos de esquerda no país?
MILTON LAHUERTA: Pelas razões que elenquei acima, hoje, o grande desafio para a sociedade brasileira talvez seja a manutenção do Estado de Direito e a defesa da Constituição de 1988, pois estamos diante de um processo de retirada de direitos conquistados na luta contra a ditadura militar, que comporta uma dimensão complexa de desconstitucionalização promovida por um decisionismo jurídico que pretende regenerar os vícios políticos do país acabando com a própria política. Luiz Werneck Vianna chama esses juízes e promotores, que se atribuem um papel de moralistas reformadores e de justiceiros, de "tenentes de toga", fazendo alusão ao movimento militar da década de 1920, mas para dizer que os tenentes, diferentemente dos atuais juízes e promotores, portavam um projeto de construção nacional que ia bem além da promoção de seus interesses corporativos.
Mas seja como for, o fato é que a sociedade vem se nutrindo de uma lógica antipolítica que favorece o processo de judicialização e dificulta a constituição de atores coletivos capazes de projetar um horizonte mínimo de reconstrução da vida civil. O que nos faz perguntar: o que se está pensando quando se propugna uma “frente de esquerda”?
Quem caberia nela? Qual seria o seu escopo? Seria reunir com o PT aqueles que se colocam ideologicamente à sua esquerda (como o PSOL, PC do B, MTST, MST, Levante da Juventude, etc)? Ou se buscaria trazer setores mais alinhados ao que se chama de centro-esquerda como o PSB, o PDT, a Rede, etc? Por essa razão, penso que o desafio passa pela construção de um programa mínimo, para além das eleições, que tenha a perspectiva de defender o Estado de Direito e a Constituição de 1988 (ou pelo menos o seu espírito cidadão). E que seja capaz de articular uma agenda que trate simultaneamente do grave problema da responsabilidade fiscal e do imperativo de se responder a uma questão social cada vez mais explosiva e fora de controle.
Obviamente, há que se pensar também em termos eleitorais, mas sem se reduzir o horizonte exclusivamente a essa dimensão. Se o objetivo não for apenas o de marcar posição e/ou de ser competitivo nas eleições, trata-se de construir uma frente ampla, que apresente um programa à altura dos desafios do tempo presente, capaz de oferecer um horizonte de governabilidade e também de reencantar a sociedade brasileira, no sentido de reduzir o seu afastamento com relação às instituições democráticas. Para tanto , será necessário colocar em movimento uma operação política complexa que não se restrinja à unir a esquerda e mesmo a centro esquerda, mas que se empenhe, inclusive, no estabelecimento de novas formas de interlocução com setores do liberalismo político.
A frente que o país precisa hoje deve ter a finalidade de compor um generoso arco de forças capaz de conter a dinâmica de desconstitucionalização que vem abalando o Estado de Direito e rebaixando terrivelmente os horizontes do futuro e a qualidade da democracia no Brasil.
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