Há uma data que minha geração não esquece: 15 de janeiro de 1985. Neste dia, Tancredo Neves, candidato de oposição ao regime militar, venceu a eleição indireta à Presidência da República. Depois de quase 21 anos de autoritarismo, o país voltava à democracia. Não foi um caminho fácil, numa transição "lenta, gradual e segura", como definira o general Golbery. Além disso, a morte de Tancredo e a posse de Sarney mantiveram o suspense em relação ao efetivo ocaso da ditadura. Mas parecia que o final feliz tinha chegado quando a Constituição de 1988 foi promulgada, em 5 de outubro de 1988. A partir daí, tivemos o mais longo período democrático de nossa história. Porém, alguns fantasmas autoritários começam a rondar o Brasil novamente.
Os riscos à democracia estão na sociedade e na classe política. São grupos cada vez maiores de brasileiros que creem cada vez menos no jogo democrático, e políticos que fazem discursos que desrespeitam princípios básicos do Estado de direito - o pior é que um conjunto importante do eleitorado apoia essa visão de mundo. Soma-se a isso a perda de poder e coerência de muitas instituições após quase três anos de crise política.
Um primeiro indício assustador da sociedade brasileira foi dado pela pesquisa Medo da Violência e Apoio ao Autoritarismo, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com Datafolha. A partir de uma sondagem nacional inédita, construiu-se um Índice de Propensão ao apoio a Posições Autoritárias, baseado na pesquisa comandada, na década de 1950, pelo filósofo Theodor Adorno, junto com psicólogos da Universidade de Berkeley. Esse famoso estudo tinha como inspiração última entender o que levou milhares de pessoas a apoiarem um regime como o nazismo.
Os dados colhidos geraram um indicador de 8,1 de apoio a posições autoritárias entre os brasileiros, numa escala de 0 a 10. O número é alto, embora não haja uma série histórica para dar uma dimensão mais exata sobre o fenômeno. De todo modo, as respostas aos itens revelaram, sobretudo, uma alta propensão para submissão à autoridade, o que, no fundo, significa que uma grande parcela da população (bem mais do que a maioria) está querendo um "governo forte".
Os mais pobres constituíram o grupo que mais se posicionou em prol de valores tendentes ao autoritarismo. Para essa parcela da população, o principal problema que os levou a assumir tais posições é bem nítido: a falta de um Estado efetivo. Não por acaso, são também os integrantes das classes D e E os que mais defenderam uma agenda de expansão de direitos. São duas faces da mesma moeda: se o Brasil não conseguir melhorar a cobertura e a qualidade dos serviços públicos, os mais carentes vão querer alguma solução para lidar com sua vida sofrida e violenta. Uma avenida aberta para visões autoritárias ganharem o voto de uma ampla camada de eleitores.
Vale ressaltar que quanto maior a escolaridade, menor a propensão a posições autoritárias. É uma notícia alvissareira, pois fornece um caminho mais seguro à democratização plena do país. Todavia, o problema é que a política educacional começa a derrapar no país. Pesquisa sobre abandono e evasão escolar de jovens liderada pelo economista Ricardo Paes de Barros mostrou que há no Brasil 2,8 milhões de pessoas de 15 a 17 anos que não estão em nenhuma sala de aula. Isso quer dizer que um enorme contingente de brasileiros não tem o seu direito à educação garantido - e sem isso, a democracia perde um dos seus sustentáculos.
Tão preocupante quanto o obstáculo educacional é notar outro resultado da enquete feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública: não há uma diferença muito significativa entre os mais jovens (de 16 a 24 anos) e os mais velhos (60 anos ou mais) em relação à propensão ao apoio ao autoritarismo. Trocando em miúdos: a juventude começa a descrer da democracia sem nunca ter vivido num regime autoritário. Na verdade, os jovens de hoje não têm a menor ideia do que foi a ditadura no país e, infelizmente, diversas lideranças que os influenciam praticamente argumentam que o regime militar não foi tão ruim quanto dizem por aí.
É preciso desmascarar aqueles que estão prometendo um mundo melhor para os mais jovens com visões autoritárias de mundo. Para a juventude mais pobre, que sofre com a falta de Estado e da garantia de direitos, deve-se lembrar que num regime autoritário a violência da polícia contra os moradores da periferia, especialmente os pretos e pardos, será muito mais difícil de controlar se não houver liberdade de imprensa e uma sociedade civil livre para denunciar. O filme "Cidade de Deus" já tinha mostrado como fora a ditadura que semeou o ovo da serpente que colhemos hoje com recordes de homicídios nas grandes cidades, onde quem mais morre são aqueles que têm menos idade e não são brancos.
À juventude da classe média para cima, geralmente tão ciente de sua liberdade para manifestar uma visão diferente da dos adultos, é necessário dizer que serão fortemente podados em suas tentativas de mudar o mundo. Países autoritários, por exemplo, controlam as redes sociais - e não acham graça em memes ou qualquer brincadeira juvenil. Isso não é dito por aqueles que espalham pela internet elogios à ditadura.
Igualmente é preciso lembrar aos jovens as lições da história: militares ou salvadores da pátria chegam com a promessa de colocar ordem na sociedade e, ao final, perpetuam-se no poder, colocando a "sua ordem", o seu modelo irrestrito de obediência, em todas as esferas da vida social, inclusive afetando negativamente a vida privada das pessoas. Nem a liberdade de culto fica ilesa: a Igreja Católica foi censurada na ditadura - e Dom Hélder Câmara teria ganho o único Prêmio Nobel de nossa história (o da Paz), mas o Governo Médici atuou contra isso. Eis aí um desserviço óbvio dos militares ao avanço civilizacional do país.
O Brasil também está mal na foto na comparação internacional. Sondagem feita pelo Centro de Pesquisas Pew, em 38 países, revela que o apoio a governo militar no Brasil é maior do que na média dos países estudados e pior do que os resultados médios da América Latina. Os resultados dessa enquete realçam que uma das principais razões da maior aceitação do autoritarismo estaria na menor confiança no governo e no sistema político brasileiro.
Se não bastasse o clima favorável na sociedade ao crescimento de tendências autoritárias, políticos ensaiam cada vez mais um discurso contrário a pontos básicos do Estado de direito garantido pela ordem constitucional, por aquela que já foi chamada, na definição precisa de Ulysses Guimarães, de Constituição cidadã. A defesa dos índios, a proteção contra o trabalho escravo, a garantia do primado do poder civil, todas essas lutas que significavam um avanço de séculos realizado em poucos anos estão hoje na linha de tiro, para usar uma imagem cara aos brucutus de plantão.
O exemplo máximo, mas não único, dessa escalada autoritária entre os políticos é a candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência da República. Aquele que disse que o presidente Fernando Henrique Cardoso deveria ser fuzilado no paredão. O mesmo que falou que não estupraria a deputada Maria do Rosário "porque ela não merece" - essa grosseria deixaria até Donald Trump envergonhado. Bolsonaro, o que defende a castração química dos estupradores, a exploração indiscriminada da Amazônia, vai aos EUA convencer o sistema financeiro de que é um liberal de verdade! Se os liberais autênticos, que defendem reformas saneadoras do Estado, pregam a igualdade entre os cidadãos e querem nos levar ao "Primeiro Mundo", não falarem nada sobre essa profusão de discursos autoritários, eles não farão jus à tradição do pensamento no qual dizem acreditar.
O Brasil não fez o ajuste de contas necessário com sua trajetória autoritária, de Vargas aos militares. Tivemos muitos avanços nas últimas décadas democráticas, mas não soubemos mostrar, sobretudo aos mais jovens, como vivemos hoje melhor do que no passado. Pior: a crise política prolongada e a necessidade de remodelar o modelo de Estado para que ele seja um excelente provedor de serviços públicos são dois fatores que estão minando a confiança na democracia. Por isso, é urgente que as lideranças políticas e sociais saibam que se não ocorrer uma reformulação profunda no modus operandi do sistema político e da administração pública, estará em jogo não o governante de plantão, mas a capacidade de sustentar o próprio regime democrático.
Voltou o filme da eleição de Tancredo Neves à minha cabeça quando vi o deputado Paulo Maluf defendendo o presidente Michel Temer da acusação de corrupção. Sim, Maluf, aquele que era o símbolo máximo da ditadura, da arrogância autoritária e do "rouba, mas faz", e que foi derrotado por Tancredo naquele glorioso 15 de janeiro de 1985. Já passamos dos 30 anos de democracia e sonho em ultrapassarmos outras marcas. Mas nunca estive tão consciente de que a batalha contra o autoritarismo não acabou ainda. Será que o vencedor das eleições de 2018 conseguirá restaurar a confiança no regime democrático? Essa é a tarefa mais importante do próximo presidente.
Fonte: (Valor Econômico)
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