Foi bonita a festa, varreu para longe o azedume que nos doía na alma. Pena que logo terminou, mas não dá para afastar da memória a multidão enlevada no ato de ocupação popular do Boulevard Olímpico, as nossas vitórias esportivas, poucas, mas boas, inclusive no Maracanã da Copa perdida em 1950, e até o surpreendente êxito da organização de um evento tão complexo como a Olimpíada. As cerimônias de abertura e de encerramento dos jogos, ambas belíssimas e de pungente simplicidade, souberam narrar o enredo da nossa cultura e da nossa original civilização, tornando patente que 500 anos de História não foram perdidos, como sustenta essa historiografia de butique em moda, e que contamos com uma plataforma segura para seguirmos em frente.
O caminho à frente, ninguém duvida, não será fácil. Processos de impeachment presidenciais são doloridos e deixam marcas, e este aí promete não ser diferente. Venha o que vier, a experiência vivida sob o ciclo petista, especialmente na condução da política e da economia sob o governo Dilma, é uma página virada na nossa vida republicana. O nacionalismo autárquico, o decisionismo sem freios do Poder Executivo, o capitalismo de Estado com sua perversa indistinção entre as esferas do público e do privado, o revival do terceiro-mundismo demonstraram-se práticas desastrosas cujos efeitos são sentidos por todos, sobretudo pelos mais vulneráveis.
De seguro, temos em mãos uma identidade cultural, tal como a celebramos nas festas olímpicas, e uma arquitetura institucional resistente às adversidades, cuja resiliência tem sido comprovada em meio ao furacão a que fomos expostos. Faltam-nos os partidos e um rumo. Encontrá-los demanda tempo por que diante das ruínas que sobraram da Operação Lava Jato – e não só por ela – não há muito que salvar.
O PT, maior partido da esquerda, logo que se fez governo abandonou a vocação que o trouxe ao mundo, convertendo-se num partido de Estado com todos os vícios inerentes a formações partidárias desse tipo; o PSDB, por sua vez, findos os anos de fastígio dos seus longos anos de governo, acomodou-se aos louros obtidos com a execução bem-sucedida do Plano Real e se reduziu a um partido de quadros sem raízes na vida popular. O PMDB, ao esgotar a agenda das lutas pela redemocratização do País, perverte-se numa agremiação a reunir caciques regionais, com frequência originários de antigas oligarquias, sem alma e luz própria, estrangeiro aos temas emergentes numa sociedade em intenso processo de mutação. Os demais, ancilares, apenas vêm contando para a composição de coalizões governamentais, sem âncoras sociais e de concepções do mundo que lhes prometam melhor destino.
Quanto aos rumos, o horizonte é igualmente sombrio. O anacronismo em que se deixou enlear o pensamento da esquerda, ou embalada pelas promessas do pragmatismo reinante – do qual, reconheça-se, colheu frutos em curto período – ou porque fez ouvidos moucos aos processos que fizeram o mundo passar a girar em outros gonzos a partir da aceleração do chamado fenômeno da globalização e suas profundas repercussões societais e ambientais, fixou-a no tempo em que vigia o primado da categoria Estado-nação.
Sob o governo Dilma Rousseff, mais que no de Lula, essa categoria exerceu papel de centralidade na estratégia governamental, confundindo-se as tendências inexoráveis favorecedoras da mundialização da economia com neoliberalismo. A estatolatria, malsinada marca de origem da nossa formação, tornou-se, então, a referência da política, perdida de vista a enérgica emergência da sociedade civil desde as lutas pela democratização do País e que se atualizou com as manifestações de junho de 2013.
Essa esquerda dá as costas ao Marx que reconhecia na mundialização da economia o momento propício à ultrapassagem do capitalismo; ao Gramsci que bem antes de Habermas já reconhecia o imperativo de se preparar a transição para uma ordem cosmopolita; para não falar da moderna teoria social, Habermas à frente, como nas obras de A. Giddens e U. Beck, entre outros, que têm na auto-organização do social a pedra de toque de suas utopias realistas, oxímoro que abriga, na cena contemporânea, os ideais de igual-liberdade.
Regrediu-se ao universo mental dos anos 1950, alçando-se o populismo centrado no conceito de Estado-nação a uma política de emancipação social de um povo explorado. Não se temeu o exagero, sustentando alguns que o populismo latino-americano, mais do que um fenômeno da periferia do mundo, deveria universalizar-se no Ocidente desenvolvido.
A dominação carismática escapou do baú das piores décadas do século passado para se tornar fonte de legitimação do poder de uma personalidade tida como providencial. E isso num momento em que aqui e em boa parte do mundo a sociedade reclama o direito de participação na tomada de decisões na esfera pública.
Na modalidade do populismo praticado pelo PT, longe de ser de mobilização, como noutras experiências vizinhas à nossa que conviveram mal com o sistema da representação política, ele se revestiu, mascarado pelo reconhecido carisma de Lula, de um caráter tecnocrático, insulando-se a tomada de decisões nas agências e nos aparelhos estatais, a serem respaldadas no Poder Legislativo, pelo bizarro presidencialismo de coalizão então adotado. Esse modelo não era fácil de ser seguido, particularmente por quem não detinha carisma e era refratário à vida parlamentar, caso da presidente Dilma, cuja opção de governo foi extremar à outrance o decisionismo do Executivo, com o que selou seu destino político no processo de impeachment ora concluído.
O impeachment não nos abre as portas do inferno, como desejam os que nada entenderam do que se passou. Mas eles são, felizmente, minoria e não terão como resistir ao poder de reflexão da sociedade, que apenas começou, sobre os infaustos acontecimentos que nos trouxeram a ele.
(*) Sociólogo, PUC-RJ
Fonte: O Estado de São Paulo (04/09/16)
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