quinta-feira, 29 de setembro de 2016

A Revanche de Chaucey. Ou a chantagem historiografica dos intelectuais brasileiros de esquerda (José Roberto Bonifácio)

É bastante conhecida aos estudiosos da sociologia do conhecimento a maneira como o fracasso individual gera insegurança existencial, a qual induz prontidão a engajar-se em movimentos politicos que gera aderência a ideologias inconformistas, o que retroalimenta a espiral do fracasso...
Fenômeno mundial da modernidade, assim ocorre à sociedade global mais abrangente e seus individuos desgarrados e desenraizados. O mesmo ocorre a determinados segmentos sociais que habitam meios mais ou menos estáveis e sólidos. A intelectualidade não foge a esta regra.
Muitos intelectuais brasileiros se comportam como aquele infeliz personagem do filme Knight's Tale (Coração de Cavaleiro no Brasil e em Portugal, 2001) - uma adaptação dos The Canterbury Tales (Os Contos de Cantuária), com tons post-modernistas - que dá vida (em versão parodiada e anacrônica) ao escritor inglês pré-renascentista Geoffrey Chaucer.
Viciado em jogatina a ponto de apostar as proprias vestes e perde-las na obsessao de recuperar-se, o Chaucey cinematografico sempre jura vingança aos que o depenaram, ameaçando descrevê-los das piores maneiras possiveis em suas brilhantes e eloquentes narrativas. Ao faze-lo jogava a ultima “carta” de que dispõe, põe em questão seu ultimo ativo ou riqueza, seu saber. Um recurso que, historicamente, era detido por poucos naquele contexto social. Logo a ameaça era perfeitamente crível e séria.
Ora, bem sabem os que lêem, digamos, Marx e Keynes que homens não fazem a historia do jeito que querem e que não se importam com o longo prazo. Muito pelo contrario, não temem retaliações de forças pessoais ou impessoais a menos que estas se possam consumar em seu mesmo tempo de vida biológico ou de sua descendência (talvez nem desta...).
Parodiar, caricaturar, rotular, taxar, todavia, são expedientes retóricos da politica que sempre estiveram presentes e foram relevantes, desde os antigos até os modernos. A recordar as descrições pouco elogiosas de um orador como Cícero a respeito de Cesar, ou a dos escritores cristãos a respeito de Nero, seu algoz.
Isto a que antes demos o nome de “narrativismo” ou historia caricatural não era uma estratégia sistemática ou central de denegrimento de adversários, mas simples exercício de oratória sem ambições que não a persuasão da audiência para objetivos do presente.
Pois os modernos reinventaram o “narrativismo” e o adaptaram às suas mesmas batalhas políticas visando objetivos não do presente, do curto, médio e longo prazos, contudo ainda dentro do horizonte biológico mesmo de seus protagonistas e antagonistas. A emergência dos meios de comunicação de massa, uma inovação tecnológica, talvez seja o divisor de água entre as duas eras, oferecendo aos narrativistas a chance e a aspiração de difundir e perenizar seus discursos com maior êxito e amplitude. E assim o fazem.
Ainda assim o revanchismo chauceyano não se delineava até há pouco tempo, em muitos lugares e momentos. Embora não se possa dizer tratar-se de uma jaboticaba ou invento especificamente brasileiro (haja vista o que ocorre em países como os EUA e a Russia, onde os adversários do partido no poder são retratados cruelmente e sem pudores), o “narrativismo” aparentemente triunfou no Brasil há muitas décadas e não nos abandonará tão cedo. Desde a Proclamação da República até a Revolução de 1930, desde golpe de 1964 até a redemocratização, e além, os heróis e vilões tem se alternado e se parodiado mutuamente.
Bem verdade é que as elites ou classes politicas de cada periodo hegemônico nem sempre lograram transmitir uma imagem positiva de si mesma aos pósteros, haja vista o ocorrido aos que sustentaram o Império e depois à jovem republica “de coronéis”, como também ao varguismo, em diversas encarnações, e sua também variada nêmesis.
Ora, se pudermos enumerar duma maneira sintética porem não exaustiva as condições de "sucesso" do narrativismo enquanto estratégia de vingança, digo, de "justiça histórica", seriam as seguintes:
1- Um contexto histórico futuro (30,40 anos) em que a universidade brasileira, especialmente a area de Humanidades, seja dominada integralmente por correntes de esquerda necessariamente lulopetistas, ainda mais do que tem sido em décadas passadas;
2- Um contexto futuro “neomedieval” em que a Idade Média Digital (Digital Dark Ages) tenha atingido seletivamente os formadores de opinião, apagando ou inacessibilizando escritos e material audiovisual daqueles que argumentam no presente a favor do impeachment;
3- Um contexto futuro onde o PT não tenha feito seu processo de "deslulização" à maneira como Nikita Kruschev denunciou os crimes de Stalin em seu famoso “Discurso Secreto” no XX Congresso do Partido Comunista da URSS em 1956;
4- Um contexto futuro "revisionista" em que a sociedade brasileira continue enviesada ideologicamente pelas visões revisionistas que veem 1964 como um "golpe" e o assimilam a 2016, mas olvidem do golpe civil ocorrido em 1992 contra Fernando Collor de Mello;
5- Um momento de retorno ao poder a médio prazo, reabilitando as figuras de Lula e Dilma junto à opinião pública, pacificando a sociedade e desacreditando partidos, lideranças e instituições de controle interno e externo do Estado brasileiro que cooperaram entre si para o desfecho do impeachment.
Porquanto não necessariamente exclusivas entre si ou exaustivas quanto ao conjunto potencialmente infinito de alternativas históricas tais condições são extremamente dificeis de se sustentarem ou mesmo de emergirem a médio e longo prazo.
A recordar, segundo um artigo ulterior, que o Petismo e seus intelectuais tem errado sistematicamente suas previsões, a começar por aquelas que davam conta de que sua experiência de poder no Brasil teria a longevidade ora da socialdemocracia sueca (30 anos) ora do PRI mexicano (70 anos).
Se as condicionaldades 1 e 2 não soam verossímeis, a 5 nos parecem (neste momento) bastante remota senão impossivel ao passo em que as 3 e 4 tem sua efetivação dependente de evoluções ideológicas já em curso dentro dos campos da esquerda e da direita, porem com distintas chances de sucesso e de repercussão social. Como facilmente se nota todas as condicionalidades fazem referencia ao contraditório e à polifonia de vozes e discursos, ou mais propriamente ao Principio da Isegoria (igualdade de vozes ou de discursos), que era algo estranho aos medievos ainda que não aos antigos.
Por ora o que conseguiram inadvertidamente foi despertar o interesse de internautas e formadores de opinião de direita e centro-direita pela reavaliação ou reinterpretação históricas, duma maneira que fez o “narrativismo” ou história caricatural generalizar-se, difundir-se e enraizar-se no imaginário político.
Erros de cálculo e de avaliação à parte, o exagero retórico é até certo ponto perdoável e compreensível. Compõem aquilo que poderíamos chamar de Síndrome de Chaucey. Não uma disfunção cognitiva ou moral do real autor dos The Canterbury Tales, mas de seu equivalente hollywoodiano.
Vivenciamos o ápice da obsessão pela "micro narrativa" e pelos enredos que a dinamizam, bem como pela gloria ou desventura dos personagens que se intenta parodiar. O que antes fora uma rendição da grande imprensa tradicional ao lulismo na esteira das sucessivas vitorias presidenciais agora é exclusividade dos blogs de certa orientação ideológica. Dum modo simetricamente oposto, a representação coletiva do ex-presidente da República tem oscilado do caricatural ou anedótico ao sóbrio e equilibrado.
Reconhecidamente identificar Lula com o personagem cavalheiresco do finado ator Heath Ledger certamente tem sido um empreendimento febril de muitos blogueiros e acadêmicos brasileiros. Pululam em toda a parte analogias entre o embate do ex-presidente brasileiro com o “Principe dos Sociologos” (FHC), de um lado, e os torneios de justas em meio à Guerra dos Cem Anos, de outro. O “narrativismo” tem retaliado e feito suas vítimas aqui, tanto de um lado quanto do outro, a depender da repercussão do meio midiático que veicula a mensagem e dos que se dispõem a servir de audiência.
Chaucey tinha uma diferença crucial em relação ao intelectual brasileiro padrão da atualidade: se este vivencia uma realidade apartada da economia de mercado e suas vicissitudes aquele se achava sempre exposto aos altos e baixos da vida, sem perder sua propensidade a correr riscos.
Nem por isto o intelectual brasileiro deixa de experimentar frustrações e ansiedade. Seu sentimento de privação relativa tende a ser mais agudo que o estado de privação absoluta em que o Chaucey hollywoodiano é retratado.
O que os une é justamente a posse dum unico e crucial ativo, o saber literário, em meio a uma sociedade onde o dominio do vernáculo e das ciências é privilégio de poucos. Se o intelectual brasileiro não chega a apostar suas vestes in extremis, aposta constantemente sua reputação por causas politicas que tem afinidade íntima com a indigencia existencial e moral. Investe reiteradamente em prol de objetivos sem sentido que não os que ele mesmo atribui. Sistemáticamente trava batalhas quixotescas e ao perde-las entrega-se à ameaças tragicomicas, invocando a "justiça histórica" contra seus oponentes. O que dá na mesma.
Por fim, a revanche de Chaucey se consuma, entre os intelectuais brasileiros sem produzir quaisquer mudanças no jogo político. Nenhum ator do presente se deixa intimidar. Excepto por um discurso ou outro contra a pecha de “golpista” o cotidiano segue normal e planos são traçados sem maiores problemas ou complicadores que não aqueles ocasionados pela complexa macroeconomia ou pelas revelações bombásticas da Lava Jato.
Se o atual presidente confessou ter se deixado incomodar pela caricatura dos seus procedimentos e ações (ocultas ou manifestas), ou se o candidato oposicionista derrotado em 2014 visivelmente franziu o cenho ao ser rotulado no discurso final de Dilma ao senado tais atitudes não produziram nenhuma mudança no estado de coisas em curso ou no desfecho do impeachment em consumação. As reiteradas alusões a um suposto “estado de exceção” ou a uma “ditadura” sucumbem imediatamente à constatação de que o PT segue disputando eleições e que se coliga a seu algoz “golpista” ou PMDB em ao menos um décimo dos municípios brasileiros. Ao contrário, como se viu, o “narrativismo” contaminou a centro-direita e a direita, como também a centro-esquerda e a esquerda não-lulistas, no sentido de se reavaliar o papel histórico do PT e de seu quixotesco líder maior.

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