Na apresentação pública da denúncia que ofereceu na semana passada, a força-tarefa de 10 procuradores e 3 procuradoras transformou Lula em "comandante máximo do esquema de corrupção identificado na Lava-Jato". Sintomaticamente, a expressão não consta do texto da denúncia, foi dita apenas na apresentação para a imprensa. A distância entre o que foi dito e o que foi efetivamente pedido na denúncia é o que importa. Porque, na hora do vamos ver, não denunciaram Lula por associação criminosa, conclusão que seria não apenas lógica, mas inexorável dado o quadro geral da exposição.
Mais sintomático ainda, a justificativa dada pelo texto da denúncia para essa lacuna totalmente inesperada foi: "porque tal fato está em apuração perante o Supremo Tribunal Federal (Inquérito 3989)". Mas, se é assim, qual o sentido de atribuir a Lula todas as mazelas e podridões da forma de fazer política oficial no país? Por que não se limitar aos elementos que levam aos supostos crimes pelos quais Lula foi efetivamente denunciado? Dizer que é necessário colocar em powerpoint todo o quadro da corrupção nacional e atribuir seu comando a Lula para tratar da suposta propriedade de um apartamento no Guarujá é atropelar sem cerimônia os direitos elementares da pessoa em um Estado de Direito.
Ao divulgar os áudios de conversas de Lula, em março deste ano, o juiz Sergio Moro tomou uma atitude descaradamente política. Do ponto de vista da lógica da Lava-Jato até ali, Lula se tornar ministro foi um acontecimento interpretado como risco de travamento da operação desde cima. Esse movimento extremo custou a Moro não apenas um pito do ministro Teori Zavascki e um pedido público de desculpas, mas, principalmente, certo recolhimento.
Foi nesse momento, a partir do início da interinidade de Michel Temer, que a Procuradoria-Geral da República chamou para si o protagonismo que tinha cabido a Moro até ali. Com a divulgação de gravações de Sérgio Machado que atingiam a cúpula histórica do PMDB, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, dirigiu um ataque frontal e imediato à interinidade de Temer. Entrou no STF com pedido de prisão de nada menos do que Renan Calheiros, José Sarney, Romero Jucá e Eduardo Cunha. O movimento foi rechaçado pela nova coalizão no poder de maneira eficaz. Foi a vez de Janot ser obrigado a guardar a viola dos vazamentos no saco da normalidade da ordem pemedebista.
Foi quando a força-tarefa da Procuradoria no Paraná resolveu ocupar o espaço deixado vazio. Mas o sentido desse movimento já é inteiramente diverso. Não apenas pelo nível tabajara da intervenção, não apenas pela montanha do texto da denúncia ter parido apenas as pulgas que foram efetivamente pedidas ao juiz Moro. A ação aponta para uma paroquialização da Lava-Jato, para uma tentativa de reconcentração da direção da operação em Curitiba, em um momento em que as ações se espalhavam e se multiplicavam pelo país, ganhando novos contornos e direções.
A Lava-Jato não é um bloco granítico, com orientação estratégica unificada em todos os momentos. A coordenação ou descoordenação varia conforme a circunstância em que se encontram os cinco principais atores no jogo: força-tarefa de procuradores do Paraná, Polícia Federal, Sergio Moro, Procuradoria-Geral da República e STF. O protagonismo do juiz Sergio Moro durou enquanto teve sob sua jurisdição de primeira instância o conjunto do processo. A partir do momento em que são atingidos políticos com foro privilegiado, tudo passa às mãos do STF, com o ritmo paquidérmico e o berço esplêndido em que o tribunal se sente politicamente tão à vontade.
A fase empresarial já está perto do seu final. A nova etapa que se abre para Sergio Moro será processar alguns dos políticos que perderam o foro privilegiado. Mas isso justamente não expande a investigação, apenas a restringe a quem já foi politicamente punido. O governo Temer foi muito bem-sucedido em enquadrar a Procuradoria-Geral da República. A Polícia Federal, outro ator fundamental, também foi colocada sob rédea curta.
Foi nesse vácuo que entrou a força-tarefa dos procuradores de Curitiba. Só que o sentido político de sua ação já não pode nem mais remotamente ser referido ao objetivo de atacar as mazelas do sistema político como um todo. Não só por seu caráter paroquial, pela pretensão de tomar para si o protagonismo da Lava-Jato e limitá-lo a seu próprio quintal. Objetivamente, seu sentido político vai ao encontro do grande pacto do governo Temer de punir juridicamente apenas quem de fato já foi politicamente punido. O que tem como resultado salvar todo o resto do sistema político, evidentemente.
Para conseguir continuar nos holofotes, a força-tarefa de Curitiba tem de deixar de lado políticos que ainda mantêm o foro privilegiado, concentrando-se em quem está ao seu alcance. Sobretudo, tenta convencer que essa drástica redução do alcance da Lava-Jato corresponde a um ataque geral ao sistema político, reduzindo tudo a Lula e a quem será processado em Curitiba. Aposta que a aceitação da denúncia por Moro vai significar, do ponto de vista da opinião pública, que ele chancelou todo o trololó do "comandante máximo".
Do ponto de vista estritamente jurídico, se aceitar a denúncia Moro só terá aceito os pedidos efetivamente feitos, que nenhuma relação têm com mais de 60% do texto da denúncia. Justamente os 60% do texto da denúncia que deram o tom da apresentação pública. Para aceitar a denúncia, Moro não precisa concordar com nada da chanchada de Al Capone apresentada em cadeia nacional.
A denúncia da força-tarefa dos procuradores de Curitiba apequena definitivamente a Lava-Jato, em perfeita consonância com o projeto do governo Temer de limitar radicalmente o círculo de atingidos a quem já foi derrubado. Na manobra, não se importa que o preço seja reduzir a Lava-Jato a quem já foi politicamente derrotado, preservando os vencedores do impeachment. Porque as prioridades da força-tarefa dos procuradores da Lava-Jato são outras. E coincidentes com as prioridades do governo Temer.
(*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
Fonte: Valor Econômico (19/09/16)
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