A decisão sobre o financiamento empresarial de campanhas foi um dos episódios decisivos na tramitação da reforma eleitoral de 2015. O projeto original patrocinado por Eduardo Cunha previa financiamento empresarial a candidatos e a partidos, com estabelecimento de um teto de valor monetário fixo. Derrotado na votação, Cunha se saiu com uma gambiarra constitucional típica dos tempos atuais para, menos de 48 horas depois, aprovar o dispositivo, só que restrito desta feita a doações de empresas a partidos. Muito pouca gente se lembra que a emenda-gambiarra foi de autoria de Celso Russomano.
A característica de montanha-russa do processo incluiu a rejeição do financiamento empresarial pelo Senado em 3 de setembro de 2015, sua restauração pela Câmara em 9 de setembro e o veto presidencial de Dilma Rousseff em 29 de setembro, 12 dias depois da decisão do STF contrária ao princípio. Entender todas essas idas e vindas está longe de ser simples. Mas a sua lógica profunda explica muito do que está acontecendo nessas eleições. E, sobretudo, permite projetar qual será o significado do seu resultado para o futuro do governo Temer.
Para começar, é importante lembrar que o orçamento de 2015 não foi aprovado no ano anterior, mas apenas em março do próprio ano de referência. A previsão para o fundo partidário na proposta inicial tinha sido de 289 milhões de reais. O relator do orçamento, senador Romero Jucá, arredondou o valor para 867 milhões. O triplo do valor inicial, simplesmente.
O dado importa aqui não apenas pelo papel primordial que os recursos do fundo partidário têm desempenhado na eleição municipal. Só ao final será possível saber o seu peso efetivo. Mas as indicações de que se dispõe atualmente mostram que sua participação na contabilidade oficial pode chegar a algo como a metade de todos os recursos financeiros de campanha. O aumento do fundo partidário em 2015 importa sobretudo porque permite entender dois dos aspectos centrais que estavam em jogo no embate do financiamento de campanha.
O primeiro aspecto diz diretamente respeito à situação da Câmara dos Deputados. O projeto original de Eduardo Cunha pretendia ser uma conciliação entre o alto e o baixo clero, entre as cúpulas congressuais e a massa desconhecida de deputados que deram a Cunha a presidência da Câmara. As cúpulas controlam as doações feitas aos partidos e o próprio fundo partidário. Cunha tinha parte do controle do fundo partidário do PMDB em seu Estado, o Rio de Janeiro. Mas, fundamentalmente, tinha se tornado um intermediário entre financiadores empresariais e deputados dos mais variados partidos excluídos dos arranjos de cúpula.
Deputados do baixo clero conseguiam cargos no governo e algum recurso de emendas parlamentares, o que lhes dava vantagem em relação a desafiantes que tentavam lhes tirar os mandatos. Mas essa vantagem era muito pequena quando comparada aos parlamentares do alto clero, com acesso direto a grandes financiadores e ao fundo partidário. Cunha se colocou em posição de corrigir o desequilíbrio, suprindo os deputados com o financiamento e com a estratégia que lhes eram negados pelas cúpulas partidárias.
Objetivamente, a proibição do financiamento empresarial a candidatos significou um reforço à posição das cúpulas partidárias, em um momento em que o baixo clero já tinha sido elevado à categoria de Centrão e desafiava abertamente o poder do alto clero. Restaurar pelo menos o financiamento empresarial a partidos significava para muita gente do baixo clero tentar remediar a grande derrota, uma tentativa de usar sua organização para exigir uma divisão menos desequilibrada do fundo partidário. Mas nem mesmo isso vingou.
Quando Michel Temer fala em "desidratar essa coisa de Centrão", ele não se refere a preferências pessoais por tal ou qual deputado. Seu objetivo é apenas o de restaurar o poder das cúpulas partidárias, restabelecer a distinção entre alto e baixo clero congressual. Pela simples razão de que ele não é capaz de coordenar o sistema a não ser por meio de cúpulas partidárias novamente empoderadas. Livrar-se de Eduardo Cunha foi o primeiro passo nessa direção. O segundo passo depende de que o resultado das eleições municipais reflita a restauração da velha hierarquia. Depende de que esse resultado reponha o Centrão em seu lugar de baixo clero.
Só que essa expectativa se choca com o segundo aspecto do embate em torno do financiamento de campanha, o da disputa entre Câmara e Senado. Tanto no aumento do fundo partidário no relatório Jucá quanto na proibição do financiamento empresarial, o Senado sinalizou não apenas que pretende tutelar o governo Temer, mas, sobretudo, que dispõe dos meios para tanto. Mesmo diante dessa ameaça, a estratégia de Temer para alcançar a governabilidade parece até agora continuar a se dividir em duas etapas. Pretende primeiro restabelecer a velha hierarquia entre alto e baixo clero na Câmara para só então se entender de fato com quem manda no Senado. Essa estratégia corresponde à sua experiência de ter ocupado por três vezes a presidência da Câmara. E corresponde à experiência de todos os seus colaboradores mais próximos: Eliseu Padilha, Geddel Vieira Lima, Moreira Franco.
Mas a prevalência do fundo partidário na atual eleição tem mostrado pelo menos duas coisas de grande relevância e contrárias à estratégia em duas etapas. A primeira é que a cúpula do Senado tem demonstrado bom controle sobre esses recursos decisivos. A segunda é que está se utilizando desses recursos também para, no vácuo deixado por Eduardo Cunha, estender seu poder para a Câmara, tentando montar uma base que possa incluir parlamentares das duas casas do Congresso, sob a liderança do Senado.
Nada indica que a insatisfação social vá permitir que Temer sente confortavelmente em sua cadeira em algum momento. Mas, pelo menos do ponto de vista do sistema político, o atual presidente da República só conseguirá sentar com algum sossego em sua cadeira se deixar de confundi-la com a da presidência da Câmara dos Deputados.
(*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
Fonte: Valor Econômico (26/09/16)
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