A alternância no poder é um traço da democracia. Até os melhores governantes sofrem um desgaste de material. O PSDB viveu-o após oito anos na Presidência. O PT chegou ao seu depois de 12 ou 13 anos. O esgotamento da esquerda é normal, até para ela se recompor na oposição. O que não é normal é a direita assumir o governo sem o voto popular, pior que isso, contra o voto expresso nas últimas eleições. Tecnicalidades podem dizer que isso não é golpe. Eticamente, é.
O que pode, o que deve a esquerda fazer? Ela ficou numa sinuca. Dilma Rousseff tentou fazer o que devia: 1) retomar o crescimento econômico. Tinha testado as medicinas de esquerda, restavam as de direita. O problema é que elas põem em xeque a razão mesma de um partido de esquerda, que é: 2) manter e completar a inclusão social. Conciliar as duas tarefas era quase impossível. Se Dilma fosse mais hábil, dialogando com políticos e não políticos, poderia impedir a rápida debacle de seu governo, que arrastou o PT e a esquerda. Mas a situação não era fácil. Continua difícil para o governo de direita, mas os cortes que Dilma efetuava a contragosto ele efetua sem dramas de consciência.
A crise atual da esquerda foi precipitada por vários fatores. Primeiro, a contradição que mencionei acima: um governo progressista aplicando uma política de altos custos sociais. Geralmente isso acaba mal, como em Portugal e Espanha na crise dos Pigs. O governo socialista perde a eleição seguinte. (A mancha em nossa democracia é que não se deixou o governo eleito perder em 2018).
Segundo, a crise de liderança. Lula continua sendo o grande líder do PT 30 e poucos anos após sua fundação. Dilma não mostrou essa capacidade. Num artigo de janeiro de 2009, na "Folha de S. Paulo", eu advertia que, depois de dois líderes, FHC e Lula, a Presidência estava sendo disputada por gerentes, Serra e Dilma.
Gerentes lidam com coisas, líderes, com gente.
Um presidente precisa articular pelo menos cem pessoas em cargos destacados no poder - isso, mais outro tanto de empresários e líderes empresariais e sindicais (no Brasil, infelizmente, o peso político de intelectuais, artistas e líderes espirituais é pequeno). São os líderes parlamentares, ministros de Estado, juízes, dirigentes de agências reguladoras, bancos. Conversar, persuadir, agregar pelo menos a grande maioria deles é uma tarefa difícil. FHC e Lula resolviam isso dividindo o trabalho: o presidente decidia as linhas gerais, os ministros e outros dirigentes agiam com autonomia dentro delas. O presidente era líder, os outros semi-líderes e/ou gestores. Mas, quando um presidente desce aos detalhes da gestão e centraliza demais, acaba desconhecendo ou atrasando o que se faz no governo como um todo.
Terceiro - o que pude ver no governo - é que mesmo o público beneficiado pelas políticas públicas na educação não se deu conta da forte crise em que entrávamos. Até agosto de 2015, a maior parte dos que procuravam o MEC não parecia perceber que não havia mais dinheiro, ponto. O governo não conseguiu passar essa percepção - e eles não queriam enxergar o que saía nos jornais, na mídia, nas redes. Podiam ter sido parceiros do governo que os beneficiou quando chegou o momento de crise.
Podiam ajudar a ganhar eficiência e a estabelecer prioridades. Em vez disso, pediam verbas. Tive a impressão de que o apoio político só durou enquanto houve dinheiro. Baixou a arrecadação, baixou o apoio. Faltou comunicação do governo, mas faltou senso político aos beneficiários de políticas públicas.
Quarto e último ponto, a corrupção. É inegável. Não foi cria do PT, mas este não soube tratar do assunto. Ele próprio deveria tê-la investigado. Por que o PT não fez sua própria apuração? Por que não tomou a dianteira para expulsar quem agiu errado? Pior, por que deixou sua imagem de partido mais ético, de único partido ético, do Brasil se perder tão depressa? Porque em 2005 essa imagem já estava comprometida.
O que fazer agora? Lembro dom Helder Câmara, um dos nomes dignos da igreja. Arcebispo nos anos do horror, dizia que a esquerda era ruim de luta armada, na qual eram bons seus inimigos. A esquerda, resumia, era boa nas palavras e nas ideias. Este é o ponto: a esquerda tem que pensar e discutir. Tem de ver onde errou e o que precisa mudar. Sobretudo, não pode confortar-se no papel de vítima. Menos ainda pensar que só ela tem razão, só ela é virtuosa. Essa crença está crescendo nos setores mais à esquerda. Condenam as alianças do PT, porque os aliados desertaram o partido no final - mas esquecem que, sem alianças, o PT teria perdido o governo em 2006 nas eleições, ou em 2005 por um golpe. O reexame que precisa ser feito não é daqueles fáceis, em que você aponta o dedo para o outro com a finalidade de se autocanonizar. Acho isso indecente. Não é um processo de Moscou, ainda que atenuado. É um reexame sério de projetos.
Dou um exemplo. Uma das realizações do governo Dilma foi passar para a economia formal 5 milhões de microempreendedores individuais em dois anos, graças ao ministro Guilherme Afif Domingos. Trouxe esse liberal puro, à época aliado dos tucanos, mas que o PSDB jamais levou a sério (porque esse partido gosta mais da grande empresa do que da micro). Ora, na esquerda pura e dura há quem tenha horror ao empreendedorismo. Mas faz sentido essa repulsa, que reduziria nossa paisagem econômica a apenas os grandes empregadores de um lado, e de outro seus empregados e os funcionários públicos, sem ter entre eles a média ou pequena empresa? Claro que não.
Finalmente, penso que a prioridade não é saber quem vai representar a esquerda em 2018 - mas qual programa vamos delinear para o país. Paremos com nomes, falemos em futuro. Tenho dito: precisamos retomar o crescimento econômico, fazê-lo com sustentabilidade, e isso a fim de completar a inclusão social. Essas três metas não podem ser dissociadas. Nenhuma delas pode antagonizar a outra. Em 2014, os três mais votados para presidente defendiam, cada um, uma dessas políticas.
Precisamos promover sua síntese. O fato é que esse programa ainda não existe. O PMDB e o PSDB estão no poder, mas dificilmente gestarão um projeto com esses três pontos. Ninguém está sabendo desenhar o futuro do Brasil. Esse é o papel da esquerda. Mas ela precisa olhar para o futuro.
(*) Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação do governo Dilma, é professor de ética e filosofia política na USP
Fonte: Eu & Fim de Semana/Valor Econômico (20/08/16)
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