Em tempos de crise dos políticos, com denúncias mil e descrédito geral, a tentação de reduzir o espaço da política torna-se sedutora. O Brasil vive isso hoje de forma mais acentuada, por conta da Lava-Jato e da deterioração econômica do país. A opção antipolítica aparece claramente nas regras definidas para as eleições municipais, bem como na estratégia de determinados grupos políticos, dentro e fora dos partidos, de defender que o melhor é escolher prefeitos que não sejam parecidos com os políticos.
Trata-se de uma concepção pouco democrática de como as sociedades devem resolver seus problemas de ação política. Pior: em vez de ser um remédio para nossos males, essa visão de mundo mais encobre do que soluciona as questões mais profundas do sistema político.
Desde a Lei Falcão, famigerada legislação do período autoritário, não tínhamos um conjunto de regras eleitorais tão restritivo. Um primeiro problema está em manter praticamente igual a norma relativa à definição de quem é candidato. Todos os políticos e quaisquer cidadãos poderiam, numa sociedade livre, declarar-se candidato no momento que quisessem. Assim o é na maior parte das democracias. Isso deveria ser válido também para os incumbentes, isto é, os que ocupam cargos públicos eletivos, incluindo aí os que postulam reeleição.
Penso ser positivo que um prefeito, governador ou presidente queira, pelo menos uma vez, ser reeleito. Pois para isso precisará fazer um governo melhor, ouvir os cidadãos e responder adequadamente à fiscalização dos órgãos de controle. Em suma, numa democracia é melhor que o político queira ser "accountable".
Fingir que os governantes não podem fazer campanha antes da eleição leva a três cenários: ou se teme que as instituições democráticas e os eleitores não serão capazes de combater eventuais abusos, o que nos coloca numa eterna situação de minoridade política; ou se teme a responsabilização dos eleitos por meio do voto, o que nos torna pouco democráticos; ou então se trata de pura ingenuidade, uma vez que políticos que podem se reeleger começam sua campanha desde o primeiro dia do mandato, gostemos ou não dessa verdade.
A novidade central das novas regras eleitorais é que o tempo de campanha foi drasticamente reduzido. Alguns defendem isso porque querem diminuir os gastos eleitorais e o dinheiro público colocado, direta e indiretamente, nas eleições. Essa argumentação, no fundo, favorece outra, que também quer limitar ao máximo a duração das campanhas: os programas televisivos são de péssima qualidade, com vários candidatos bizarros e muita baixaria na briga entre os candidatos, e assim desperdiçam tempo precioso da vida das pessoas.
Não se pode ignorar uma série de verdades contidas nas argumentações acima. A qualidade dos programas eleitorais e do próprio debate na campanha tem piorado gradativamente. Porém, diminuir o tempo de campanha não garante que esses problemas serão resolvidos.
Continuaremos vendo muitos candidatos e formas de marketing político deprimentes, especialmente no pleito para vereador - embora o propositor do "aerotrem" em São Paulo, que novamente disputa o Executivo, seja imbatível nesse quesito. E como tais concorrentes terão menos tempo para divulgar suas mensagens, terão de convencer mais rapidamente os eleitores, o que tenderá a torná-los mais agressivos na forma vazia e antipolítica de se expressar. Assistam ao horário eleitoral, leitores-eleitores, e digam depois se esse vaticínio estava correto.
A redução do gasto com as campanhas eleitorais é importante, mas ela deve vir junto com a melhoria da qualidade do processo democrático. Afinal, se as eleições fossem feitas em apenas uma semana, sem direito ao uso de rádio e TV e com poucos candidatos, obviamente que haveria um enorme corte do custo da política. Contudo, também haveria, concomitantemente, uma enorme fragilização da democracia, a tal ponto que sentiríamos saudades dos Tiriricas, Cacarecos e afins - que são bem melhores do que a política sem politicagem da Coreia do Norte.
A tentativa de regular todos os aspectos da disputa eleitoral é outra forma antipolítica que impera nas atuais eleições. O vencedor do prêmio "regra mais inútil do ano" é sem dúvida a necessidade de o candidato ter um fax. Talvez valesse a pena exigir que ele fizesse seu material de campanha num mimeografo próprio.
Mas, para além dos aspectos bizarros, típicos de legisladores e de uma cultura jurídica que bebem num modelo inquisitorial de relação Estado-sociedade, há questões mais sérias que atrapalham o bom andamento da democracia. Uma delas é a regulamentação de quem pode participar de debates organizados pelos meios de comunicação de massas.
O modelo atual toma como base a representação dos partidos no Congresso Nacional. Mesmo que o concorrente não esteja bem nas pesquisas e não tenha uma história política na cidade, mas cujo partido e/ou aliados tenham um contingente mínimo de parlamentares, ele terá de ser chamado aos debates.
Se, numa situação contrária e hipotética, o concorrente estiver muito bem nas pesquisas e for ex-prefeito do município, mas cuja agremiação e aliados não tiverem cadeiras suficientes no Legislativo federal, ele ficará de fora, a não ser que os outros candidatos aceitem sua participação no debate. Obviamente, que essa regra tem um forte cunho oligárquico, mais especificamente criada para manter o poderio dos partidos aliados ao ex-presidente Eduardo Cunha na disputa municipal, após a geleia geral que seu grupo político - o "centrão" - estabeleceu no sistema político.
A pergunta mais importante que esta e outras regulações derivadas desse modelo antipolítico deveriam suscitar é a seguinte: o arcabouço constituído para as eleições municipais favorece o debate público baseado na discussão das ideias e propostas dos concorrentes?
Reduzir o tempo de campanha e dificultar que as candidaturas nasçam antes do pleito, simplesmente diminuir a duração diária do horário eleitoral gratuito de rádio e TV, procurar regular todas as formas de interação e confronto entre os concorrentes, são, em suma, aspectos que definitivamente não contribuem para melhorar o debate público.
Outras questões que afetam a qualidade do debate eleitoral deveriam ter sido mudadas nos últimos anos, e não o foram. Por exemplo, a divisão do tempo de rádio e TV a partir de enormes coligações, tanto para o pleito majoritário como para o proporcional. Isso sim gera alianças espúrias que transformaram o horário eleitoral gratuito na principal peça de barganha política, por vezes alimentando a corrupção entre os partidos ou então a patronagem/fisiologismo desenfreado.
Claro que por trás disso está a enorme e artificial fragmentação partidária, alimentada pelas coligações nas eleições proporcionais, com seu impacto na distribuição das cadeiras parlamentares e na distribuição do tempo de rádio e TV, bem como pela "regra Kassab", que facilitou o troca-troca partidário e o uso indevido do Fundo partidário.
Em vez de reduzir o tempo e o jogo aberto da política, o melhor é aprimorar suas regras de competição e controle do cidadão. É certo que o horário eleitoral gratuito precisa de uma reformulação, mas não para transformá-lo em uma série de pequenos comerciais que passam na TV como se fossem slogans publicitários para qualquer produto.
O que falta à política brasileira, sobretudo hoje, é discutir com mais pormenor as alternativas para resolver seus principais problemas. Um formato midiático deveria ser pensado para ampliar as discussões políticas. Essa carência ganha maior proeminência porque a maioria dos meios de comunicação de massa, especialmente na TV e no rádio, não tem programas nos quais são chamadas pessoas com ideias diferentes, sejam políticos ou não, para confrontar soluções ou mesmo para construir novos consensos, derivados da divergência e da negociação de propostas. O pior é que a legislação eleitoral, há tempos, dificulta a criação de canais de debate na imprensa, em todas as suas formas.
É triste ver que, na encruzilhada política e social em que estamos, a primeira eleição nesse cenário ocorra em meio a regras e mentalidade antipolíticas. Essa eleição municipal deveria ser um espaço privilegiado para reconstruir os objetivos e as formas de funcionamento do pacto político, buscando encontrar alternativas e abrir espaços para que mais atores possam participar do processo eleitoral. Seria o começo de uma trilha que poderia desaguar nas eleições de 2018, evitando a repetição do péssimo debate da última disputa presidencial, cujas consequências foram desastrosas.
Vislumbrar esse caminho de amadurecimento democrático até 2018 não retira a especificidade e a importância das eleições municipais. Isso vale para todas as cidades e com mais ênfase nos grandes centros urbanos, onde os problemas ganharam uma complexidade tal que não podem mais ser definidos e discutidos de forma simplista e dicotômica. Decidir qual vai ser o futuro de Porto Alegre, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Fortaleza, Curitiba e São Paulo depende de muito debate. Por isso, precisamos de mais política, e não de menos.
(*) Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP.
Fonte: Valor Econômico (19/08/16)
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