terça-feira, 16 de junho de 2015

Junho à espreita (Marcos Nobre)



Dois anos atrás, o dia 15 de junho de 2013 caiu em um sábado. Foi dia de intenso tráfego de posts sobre a repressão policial às manifestações contra o aumento de tarifas de transporte das semanas anteriores, especialmente aquela do dia 13, em São Paulo. Os comentários e trocas de mensagens vinham já com a convocação para a manifestação do dia 17, que, no calendário muito especial de junho, viria a ser "a segunda-feira", um dia da semana com identidade própria e inconfundível.

Já dava para perceber ali que o caldo tinha entornado para o lado de qualquer autoridade instituída. Foi para a rua toda uma geração que não tinha conhecido de política nada além da encenação entre PSDB e PT pela liderança do paquiderme pemedebista instalado no coração do sistema político. Junho abriu o horizonte antes invisível de um aprofundamento da democracia, para além do arrastado e interminável processo de redemocratização.

Junho foi como uma enorme reunião de movimentos de protesto, abriu um amplo leque de insatisfações e de aspirações. Como essa amplitude não cabia em uma única reivindicação ou movimento, dirigiu-se contra o sistema político tal como funciona. Até aquele momento, a política oficial parecia tão blindada contra a sociedade que toda ação transformadora parecia inútil. Foi isso que mudou.

Junho ainda não acabou, porque instituiu a sensação permanente de que pode voltar a qualquer momento. O sentido do que aconteceu em junho continua em disputa. Pertence a qualquer pessoa que se reivindique dele, seja qual for sua posição política. Essa é a sua força e o que o projeta para além de 2013. É uma ameaça cidadã, que parece remota, até que eclode novamente.

O que falta de água em reservatórios e rios sobra em energia nas ruas e no cotidiano. Mas faltam redes de transmissão para fazer a energia produzir transformação institucional. Continua a persistir o fosso entre as aspirações da rua e o modo de funcionamento do sistema político. Nas poucas oportunidades que conseguiu ganhar cara institucional, a energia de junho não faltou. Produziu uma polarização na campanha presidencial de 2014 como não se via há muito tempo. Encontrou na Operação Lava-Jato um canal de expressão institucional inédito. Depois que o governo Dilma deu uma banana para a própria polarização que produziu na eleição, ondas de protesto e de apoio ao governo se formaram.

O único resultado institucional visível desse choque de democracia até agora foi desorganizar o sistema político tal como funcionou até o primeiro mandato de Dilma. E o específico da situação atual é que essa desorganização tem servido justamente como muro de contenção do potencial de transformação liberado em junho. A desorganização serve hoje para bloquear qualquer avanço institucional efetivo. A atual dominância pemedebista é a forma presente do conservadorismo. É a resposta (conservadora) ao declínio do arranjo político (conservador) que vem desde a década de 1980.

Não apareceu ainda uma frente política capaz de catalisar as energias em favor de um projeto político que, durante muitos anos, teve no PT o seu polo aglutinador histórico. E esse bloqueio se deve em grande parte à força declinante, mas ainda ativa, do próprio PT. Não apareceu ainda uma frente política capaz de vocalizar os protestos de março e de abril de 2015 contra o governo Dilma. E esse bloqueio se deve em grande parte à liderança declinante, mas ainda ativa, do PSDB como polo de referência histórico de um projeto alternativo ao petista.

PT e PSDB desempenham hoje o papel de bloqueadores de uma reorganização partidária inevitável. PT e PSDB não conseguem mais liderar o sistema político, mas ainda dispõem de força suficiente para bloquear sua reorganização em novos termos. A desorganização que daí deriva é o habitat natural do PMDB. O que significa também: é o habitat natural do conservadorismo político nacional.

E, como não podia deixar de ser, a dominância pemedebista vem sempre sob a forma da chantagem. E sua fórmula é tão simples quanto eficaz: estão querendo algo muito diferente? Podem acabar tendo de lidar com algo ainda pior do que o que existe hoje. Ou o PMDB ou o caos, especialmente o caos que pode vir de ruas descontroladas. Como se manter o PMDB no comando efetivo do país fosse o único elemento estabilizador possível em tempos de um arranjo político em declínio.

Com a sobrevivência ameaçada em vários níveis, a maioria das pessoas parece de fato intimidada pelo "ruim comigo no comando, pior sem mim". Mas o que há de específico no momento atual é que mesmo forças conservadoras relevantes que aceitaram sem piscar a chantagem pemedebista estão apreensivas. E com boas razões. Basta ver o ornitorrinco que o presidente da Câmara dos Deputados insiste em chamar de reforma política. Ou o disparate de um Banco Central que ameaça jogar a taxa Selic nas imediações de 17% ao ano.

A preocupação é especialmente fundada porque as energias de junho continuam soltas, mesmo que temporariamente intimidadas pela chantagem pemedebista. Não vão se transformar em força produtiva enquanto um novo e convincente rearranjo do sistema político não surgir. Mas nem por isso permanecer latentes por quatro anos. Basta pensar que, em 2013, a situação era incomparavelmente menos dramática que a de hoje para ver que a calmaria atual nas ruas é apenas aparente.

Um começo de reorganização pode vir com um realinhamento do sistema partidário que consiga se conectar com a energia das ruas. Para que isso possa começar a acontecer, PT e PSDB terão de sentir efetivamente o risco da irrelevância de que estão ameaçados. Terão de repensar suas estratégias e táticas políticas para além do que fizeram nos últimos vinte anos. Terão de deixar o papel de bloqueadores da transformação que hoje desempenham. Do contrário, o jogo poderá acabar reduzido a uma alternativa entre o sequestro pemedebista da política e a insatisfação ruidosa das ruas.

Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap. Escreve às segundas-feiras

Fonte: Valor Econômico (15/06/15)

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