A presidente Dilma Rousseff não conseguiu se livrar do assunto político do momento e acabou falando mais do que seria prudente sobre a Operação Lava-Jato, ainda mais em visita aos Estados Unidos, na qual se reuniu com investidores e jantou com o presidente Barack Obama. Durante entrevista coletiva, desqualificou a “delação premiada” do empresário Ricardo Pessoa, dono da UTC e chefe assumido do cartel de empreiteiras investigado pela Lava-Jato, que apura o escândalo da Petrobras.
“Eu não respeito um delator, até porque eu estive presa na ditadura e sei o que é. Tentaram me transformar em delatora, a ditadura fazia isso com as pessoas. Eu garanto para vocês: eu resisti bravamente e, até em alguns momentos, fui mal interpretada quando disse que, em tortura, a gente tem de resistir porque, senão, você entrega. Não respeito nenhum, nenhuma fala”, disse aos repórteres em Nova York.
A referência à tortura e à prisão é recorrente quando a presidente da República se vê em apuros, diante de questionamentos de adversários, uma espécie de atestado de idoneidade moral e de coragem. Certa vez, questionada pelo presidente do DEM, senador José Agripino (RN), no Senado, Dilma chegou a dizer que mentira “adoidado” durante a tortura para proteger seus companheiros das consequências de uma delação caso falasse a verdade.
No contexto do regime militar, mentir nos interrogatórios era uma forma legítima de autodefesa. O episódio foi decisivo para a consolidação de sua candidatura à Presidência. Na campanha de reeleição, fundamentou a imagem de “Dilma, coração valente”, que acabou usada no segundo turno para conquistar o apoio de setores de esquerda que haviam apoiado Marina Silva (PSB) ou Luciana Genro (PSol) no primeiro.
A tese de que “os fins justificam os meios”, atribuída ao pensador italiano Nicolau Maquiavel, norteou a narrativa eleitoral petista. Dilma Rousseff usou e abusou de mentiras para derrotar seus principais adversários Marina Silva e Aécio Neves. Fez campanha anunciando “mais mudança”, vendeu um país em forte expansão da economia e contínua elevação dos níveis de emprego e renda.
Prometeu mundos e fundos, mesmo sabendo que nada disso era possível. Escondeu os verdadeiros dados da economia, com manobras contábeis que agora estão sendo julgadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), as chamadas “pedaladas fiscais”. Caso suas contas sejam rejeitadas, Dilma pode ser enquadrada em crime de responsabilidade, passível até de impeachment.
Delação premiada
Dilma garante que “nunca” se encontrou com Ricardo Pessoa desde que assumiu a Presidência. Ao explicar que as doações da UTC foram legais, a presidente ressaltou que não aceita e “jamais” aceitará qualquer irregularidade sobre ela ou sobre sua campanha. “Se insinuam, têm interesses políticos”, protestou.
Destacou que o seu adversário no segundo turno da corrida presidencial de 2014, também recebeu contribuições da construtora UTC. “A minha campanha recebeu dinheiro legal, registrado, de R$ 7,5 milhões. Na mesma época que eu recebi os recursos, pelo menos uma das vezes, o candidato que concorreu comigo recebeu também, com uma diferença muito pequena de valores. Eu estou falando do Aécio Neves.”
Dilma pode estar falando a verdade, mas nada impede que esteja mentindo outra vez. Ricardo Pessoa teve a sua “delação premiada” aceita pelo relator do processo que investiga a participação de políticos na Operação Lava-Jato, ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki. Um dos integrantes da Corte nomeados por ela, nem de longe pode ser acusado de fazer o jogo da oposição.
Como se sabe, o delator precisa apresentar robustas comprovações de que suas informações são verdadeiras para esse tipo de delação ser aceita. Mas as declarações de Dilma podem ter a conotação de que Pessoa foi obrigado a confessar suas atividades criminosas, depois de pressionado por delegados, por procuradores e pelo juiz federal Sérgio Moro, responsável pelas investigações.
Estaria Dilma insinuando que Ricardo Pessoa sofreu “tortura psicológica”, como argumentam os advogados? Pouco importa. A presidente da República sinaliza para outros envolvidos no escândalo da Petrobras, como o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, que está preso e supostamente à beira de fazer outra “delação premiada”, que não estão sós. Nesse sentido, cede às pressões do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que a acusava de nada fazer para defendê-los.
fonte: Correio Braziliense
Luiz Inácio Lula da Silva, nosso querido Lula, é uma das raras e fantásticas lideranças que conseguem transcender os limites de sua origem social, de sua cultura e de seu tempo histórico. Obrigado, Stálin. Obrigado, pois estou jubilante.
O culto a Stálin, deflagrado em meados dos anos 1930, acompanhou a ascensão do líder à condição de ditador inquestionável da URSS. O culto a Lula, expresso pela nota da bancada de senadores do PT, acompanha o declínio do ex-presidente, exposto como lobista do alto empresariado associado ao Estado.
Lula se fez contra os terríveis limites históricos, sociais e políticos que lhe foram impostos. É aquela criança pobre do sertão nordestino que deveria ter morrido antes dos cinco anos, mas que sobreviveu. É aquele miserável retirante que veio para São Paulo buscar, contra todas as probabilidades, emprego e melhores condições de vida, e conseguiu. Lula é, sobretudo, esse fantástico novo Brasil que ele próprio ajudou a construir. Obrigado, Stálin, pois estou bem. Séculos transcorrerão e as gerações futuras nos venerarão como os mais afortunados dos mortais porque tivemos o privilégio de ver Stálin.
O culto a Stálin tinha a finalidade de legitimar a eliminação física de toda a liderança bolchevique dos tempos da revolução de 1917, que se faria por meio dos Processos de Moscou. O culto a Lula tem, apenas, as finalidades de conservar o status quo no PT, evitando a crítica e a mudança, de impulsionar uma candidatura presidencial fragilizada e de tentar esterilizar as investigações da Lava Jato.
No cenário mundial, ninguém põe em dúvida a liderança de Lula no combate à pobreza, à fome e às desigualdades. Lula é o grande inspirador internacional das atuais políticas de inclusão social, reconhecido por inúmeros governos de diferentes matizes políticos e ideológicos. Lula é o rosto do Brasil no mundo. Os homens de todas as épocas chamarão teu nome, que é forte, formoso, sábio e maravilhoso.
O culto a Stálin atravessou duas fases. Na primeira, quando os ecos da revolução ainda reverberavam, o líder foi descrito como a imagem viva do proletariado internacional. Na segunda, marcada pela guerra mundial e associada à propaganda patriótica, Stálin tornou-se a personificação do povo soviético. O culto a Lula assemelha-se, nesse particular, à fase derradeira do culto a Stálin: o PT almeja ser igual ao Brasil.
Lula está muito acima da mesquinhez eleitoreira. Todas as vezes que me vi em sua presença, fui subjugado por sua força, seu charme, sua grandeza --e experimentei um desejo irreprimível de cantar, de gritar de alegria e felicidade. Lula é tão grande quanto o Brasil. Lula carrega em si a solidariedade, a generosidade e a beleza do povo brasileiro. Para esse povo e por esse povo, Lula fez, faz e fará história.
O culto a Stálin, uma engrenagem da propaganda de massas do totalitarismo, era a face midiática de um Estado-Partido que abolira a política, extinguindo por completo o fogo da divergência. O culto a Lula, ensaiado por políticos de terceira numa democracia representativa, é uma farsa patética: o sinal distintivo da degradação da linguagem petista. Atrás do culto ao líder soviético, desenrolava-se uma tragédia histórica. Atrás do culto ao chefão petista, descortina-se somente o vazio de ideias de um partido desnorteado, precocemente envelhecido.
Lula é uma afronta às elites que sempre apostaram num Brasil para poucos, num Brasil de exclusão e de desigualdades. Ó grande Lula, ó líder do povo/Tu que trazes os homens à vida/Tu que frutificas a terra/Tu que fazes a primavera florescer/Tu que vibras as cordas da música/Todas as coisas pertencem a ti, chefe do nosso grande país. E, quando a mulher que amo me presentear com um filho, a primeira palavra que ele deve proferir é: Lula.
Stálin matava de verdade; Lula mata de tédio.
Fonte: Folha de São Paulo (27/06/15)
Pode não parecer, mas política não é somente – nem sequer principalmente – coação, roubalheira, disputa infrene pelo poder, esforço para destruir inimigos e adversários. Tem uma dimensão nobre, positiva, dedicada à construção de articulações, consensos e legitimidade. O lado sombrio da atividade política, marcado pelo binômio coerção-corrupção, é compensado por um lado solar, vinculado aos temas quentes da vida, aberto para o que é coletivo, público, e para o futuro.
A política sempre flutua entre as extremidades do “bem” e do “mal”, fato que faz tudo o que a orbita aparecer de modo tenso e contraditório para os cidadãos. Mas os cidadãos continuam a ser o que são – portadores de direitos e obrigações – porque integram uma comunidade política. Somos o que somos porque somos animais políticos. Dessa constatação elementar podemos derivar algumas coisas.
Não há vida coletiva sem política, mas nem tudo na vida é política: nem tudo o que pulsa tem em vista o poder, a contestação, a disputa, ou o delineamento de pautas coletivas de ação e zonas sólidas de consenso. Viver também é usufruir, gozar a vida, experimentar os desafios da individualidade e da diferenciação. Ser um animal político é antes de tudo saber pensar e dialogar. A política é um campo exclusivo do agir humano, mas não submete tudo a si. Para incorporar os cidadãos há que existir qualidade, perspectiva e razoabilidade. Massas podem seguir encantadores de serpentes, mas sempre em ritmo de autoritarismo e tragédia.
Não há leis que determinem inflexivelmente o funcionamento da política ou o modo como os cidadãos se relacionam com ela. Política é História, tem suas determinações sociais. Muda com o tempo.
Há épocas, por exemplo, em que tudo está equilibrado: os governos governam, os partidos deixam claras suas ideias e organizam votos e interesses, os cidadãos participam sem sofreguidão e com real motivação do debate público, posicionando-se mediante convicções consistentes, cálculos razoáveis e postulações substantivas. Em outras épocas, porém, tudo parece sem eixo, nada funciona a contento, a insatisfação se generaliza e a pequena política – feita de falcatruas, esperteza, futricas, gestão de curto prazo, histrionismo e personagens menores – infertiliza a grande política; épocas em que a luta pelo poder se torna mais importante do que a viabilização do Estado. Nelas nada brilha de verdade.
Estamos hoje, no Brasil, numa época deste segundo tipo.
A polarização política extremada cria a sensação de que há uma luta de classes prestes a se converter em guerra civil, mas os polos – enfatuados de suas próprias razões – não sabem o que dizer nem procuram dialogar com a sociedade. Limitam-se a trocar socos sem nenhuma regra ou dignidade, como pugilistas caricatos. Enquanto isso, a verdadeira luta de classes evolui na realidade, indiferente à evolução dos agentes polarizados.
Tudo se converte em motivo de ódio, agressão e desqualificação, reverberando e impulsionando uma violência que se encontra colada no chão da sociedade. Não basta ser contra, é preciso ofender e estigmatizar. Bate-se e morre-se por uma lata de cerveja, uma comissão, um jetom ou uma troca de olhares. A mentira e a desfaçatez dão-se as mãos, promessas bombásticas de um dia são atiradas sem cerimônia no lixo do dia seguinte. A encenação política, extenuada pela falta de substância, deriva para a indignação ensaiada, as frases de efeito, a falta de coragem para rever procedimentos e opções.
As reuniões partidárias tornam-se momentos de rasgação de seda, autoconsagração e desentendimento contido. Fala-se de “reforma política” em termos essencializados, como salvação da lavoura, mas jamais se dá um passo sequer em direção à autorreforma, à crítica dos operadores. Os discursos são cifrados, repetitivos: a culpa é sempre dos outros, atos de corrupção não passam de operações corriqueiras de mercado, qualquer discordância é vista como golpe.
É uma época em que a política institucionalizada emite um silêncio ensurdecedor: nenhuma autoridade, nenhuma proposta se mostra capaz de erguer a cidadania e fixar parâmetros. O discurso do poder é absurdamente pobre, chega a ofender. É uma época, também, de vetos e interdições, em que se pensa pouco, se age por impulso e instinto, se fala sobre coisas complexas como se fossem banais. Nem mesmo os intelectuais escapam. O debate democrático não avança.
Em decorrência, a sociedade fica à margem, mastigando a crise, desencantando-se um pouco mais com a política e os políticos, vendo a luz desaparecer no fim do túnel. Aparentemente, ninguém percebe que não se trata de apatia, mas de afastamento. É uma passividade ilusória, alimentada mais pela insatisfação do que pelo desinteresse. Não há como dizer que a maré montante do protesto arrefeceu ou que julho de 2015 não possa repetir junho de 2013, quem sabe em outra chave, não necessariamente melhor.
Os políticos, em particular – eles próprios, seus líderes, seus partidos, suas vozes –, seguem em marcha batida para a deslegitimação, para a perda de contato com a sociedade. Exagerando: movem-se como bandos suicidas, ou zumbis.
O cenário é de horror. Mas não se sabe direito como evoluirá. Há poucas prospecções e elas não chegam ao mundo político, que continua a olhar para o próprio umbigo. Ninguém sabe o que fazer com as reservas políticas e intelectuais do País, com as energias cívicas e associativas que estão de prontidão. Na falta de um eixo comum que coordene tudo, o desperdício e a irracionalidade crescem, a alimentar, no limite, uma marcha para trás, o crescimento insano dos fundamentalismos, o protagonismo primitivo dos retrógrados, o mau funcionamento dos sistemas.
É um momento preocupante porque nada disso vem sendo examinado pelas forças políticas com um mínimo senso de urgência, equilíbrio e responsabilidade.
Fonte: O Estado de São Paulo (27/06/15)
Em baixa nas pesquisas, com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva puxando o seu tapete e a base aliada só enrolando na hora de concluir a aprovação do ajuste fiscal, a presidente Dilma Rousseff decidiu assumir a liderança absoluta dos mandioqueiros do Brasil, posição até então exercida pelo ministro da Ciência e Tecnologia, Aldo Rebelo (PCdoB), um nativista convicto. Em quase 10 minutos de elogios, na abertura dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, em Brasília, na terça-feira, fez um cumprimento especial “à mandioca” e se autoproclamou uma “mulher sapiens”, ou seja, um Homo sapiens de saias.
Como Dilma exige o tratamento oficial de “presidenta”, nada mais natural que se considere também uma “mulher sapiens”. Como se sabe, os primeiros Homo sapiens surgiram há mais de 300.000 anos. Eram caçadores hábeis, cozinhavam carne, usavam roupas de pele de animais e construíam lanças e cabanas. O fóssil mais próximo, representativo e estudado da espécie foi o Homem de Neanderthal, encontrado na Alemanha. Sua provável existência certamente compreendeu o período entre 70.000 e 40.000 anos atrás, habitando a Europa e a Ásia. Segundo o indício fóssil, era de baixa estatura e musculoso, com um cérebro praticamente do mesmo tamanho que o nosso, com região cerebral correspondente à fala bem desenvolvida.
Mas voltemos à mandioca (Manihot esculenta crantz), da qual Dilma se tornou adoradora, talvez porque tenha substituído a farinha de trigo pela tapioca na bem-sucedida dieta que faz para emagrecer. “Nenhuma civilização nasceu sem ter acesso a uma forma básica de alimentação, e aqui nós temos uma, como também os índios e os indígenas americanos têm a deles. Temos a mandioca, e aqui nós estamos, e, certamente, teremos uma série de outros produtos que foram essenciais para o desenvolvimento de toda a civilização humana ao longo dos séculos. Então, aqui, hoje (terça), eu estou saudando a mandioca, uma das maiores conquistas do Brasil”, disparou a presidente da República, para surpresa geral, inclusive para um comedor de tapioca desde criancinha, o líder indígena Marcos Terena, organizador dos Jogos Indígenas.
Gastronomia
Poucos sabem, mas existe um forte movimento em defesa da produção e do consumo do tubérculo no Brasil, liderado pela Associação Brasileira da Mandioca, que promove eventos como o Congresso Caribenho e Latino-Americano da Mandioca, marcado para novembro, em Foz do Iguaçu (PR). A mandioca não é apenas um ingrediente básico da nossa culinária nordestina e caipira, também dá um chame “fusion” a alguns dos restaurantes mais sofisticados do Brasil. Em São Paulo, o D.O.M., de Alex Atala, considerado um dos 10 melhores restaurantes do mundo, serve palitinhos de mandioca de entrada (R$ 17 a porção), além de um sofisticado mil-folhas de mandioca com queijo coalho e manteiga de garrafa nos menus de degustação: quatro pratos (R$ 357) e oito pratos (R$ 495).
No Rio de Janeiro, já existe uma rota gastronômica da mandioca, que vai do brasileiríssimo e sofisticado Nomangue — na Barra, no qual a chef Suzana Batista prepara o bobó de camarão com mandioca batida no leite de coco (R$ 130, para duas pessoas), servido com arroz branco e farofinha de dendê — ao oriental fast-food Manikineko — rede de culinária japonesa, na qual as lâminas de haddock com geleia de pimenta e chutney de abacaxi são servidas numa base de chips de mandioca (R$ 26,90, seis unidades). Em Brasília, a mandioca também frequenta os restaurantes da cidade, desde os de comida típica, como o Brasil Vexado e o Feitiço Mineiro, ao Piantella, um templo da política.
No mesmo evento, Dilma demonstrou também intimidade com a bola, ao receber uma “pelota” feita de folhas de bananeira, presenteada por nativos da Nova Zelândia: “Aqui tem uma bola, uma bola que eu acho que é um exemplo. Ela é extremamente leve, já testei aqui, testei embaixadinha, meia embaixadinha... Bom, mas a importância da bola é justamente essa, é símbolo da capacidade que nos distingue”. Foi aí que surgiu a nova abordagem antropológica das nossas origens: “Nós somos do gênero humano, da espécie sapiens, somos aqueles que têm a capacidade de jogar, de brincar, porque jogar é isso aqui (...) Então, para mim, essa bola é o símbolo da nossa evolução, quando nós criamos uma bola dessas, nos transformamos em Homo sapiens ou mulheres sapiens”, concluiu, para gargalhada geral.
O que pensar de tudo isso? Ou a presidente Dilma resolveu desencanar dos problemas que enfrenta ao completar seis meses do segundo mandato ou perdeu mesmo o rumo da prosa. Os políticos se divertem com a situação, mas, no Palácio do Planalto e no Itamaraty, a preocupação é grande. Na próxima segunda-feira, Dilma terá um almoço com os maiores investidores dos Estados Unidos e um jantar com o presidente norte-americano Barack Obama, que podem sinalizar novos rumos para a política externa e para a economia, mais coerentes entre si. Não pode, porém, sair da casinha.
Correio Braziliense
• É uma crise da elite do PT, não do Partido dos Trabalhadores
O PT vem se degradando, como o próprio partido demonstra quando se junta em congressos, reuniões e bancadas, fato já aqui exposto mais de uma vez. Mas não por ação dos seus quase 2 milhões de filiados, nem dos 50 milhões de eleitores que o seguem nas campanhas. Quando seu presidente de honra, o ex-presidente da República Lula da Silva lhe faz o ataque que fez em duas oportunidades nos últimos dias, está falando mais de si mesmo do que do partido.
Uma imagem criada pelo ex-deputado mineiro e sociólogo Paulo Delgado ilustra a representação das duas conversas desesperadas do ex-presidente, uma, em encontro com religiosos, na semana passada, e outra em seminário do instituto que leva seu nome, esta semana. "A fala do Lula me parece ter sido feita num quarto de espelhos".
Intelectual, estudioso do partido, ao qual vinculou seus mandatos eletivos e seu trabalho político, e do qual sempre teve uma avaliação crítica rigorosa, o sociólogo acabou criando uma referência para quem estranhou essas duas últimas reações de Lula.
O ex-presidente estaria realmente falando para si e sobre si mesmo numa iniciativa atabalhoada, ao seu estilo, porque está se vendo acossado.
Esta não é uma crise do PT, é uma crise da cúpula do PT, da sua direção, dos seus ocupantes de cargos eletivos e administrativos, dos que fizeram campanha eleitoral financiados com recursos agora sob suspeição de desvios dos cofres públicos.
São 1.586.362 filiados ao PT.
Se forem somados à presidente da República e ao ex-presidente da República os 66 deputados federais, 14 senadores, 20 ministros, 619 prefeitos, 5 governadores, não se atinge mil no que se poderia considerar direção, cúpula, comando. A crise está na elite partidária.
O ex-presidente tentou preservar-se, ficar fora do grupo que vem sendo atingido por denúncias há 12 anos, mas está vendo que os grandes escudos caíram e sua figura se aproximou do alvo.
Tal situação se coloca num momento dramático, em que o partido, a presidente no cargo e o ex-presidente chefiando uma espécie de governo paralelo no seu instituto, perderam o amálgama e, junto com ele, o elã para governar, para atuarem em conjunto, para serem um só projeto.
Há, nas duas manifestações de Lula, um claro desrespeito com todos. Como sempre. Antes, era seu jeito. Agora a intolerância ao estilo se manifesta sem pudor.
Seus adversários internos no partido, também da elite, estão todos no governo Dilma, especialmente as correntes DS e mensagem, que não têm preocupações com o exercício da solidariedade.
No domingo, Tarso Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul, agora um político tentando se plantar no Rio, falou a "O Globo" sem prestar reverência alguma a Lula; no mesmo dia, Jaques Wagner, ministro da Defesa, falou ao "Correio Braziliense", também sem referência e ambos trataram apenas de PT. No governo pontificam Aloizio Mercadante e Ricardo Berzoini, ministros fortes por ele marcados como aloprados, pecha que jamais os abalou. José Eduardo Cardozo, da Justiça, está fora do seu grupo e criticado por ele, agora, principalmente pela atuação da Polícia Federal.
O Instituto Lula virou praticamente um partido, e na contabilidade desse partido, presidido por Paulo Okamotto, a PF sequer sofreu contingenciamento de verbas para não ser tolhida na sua capacidade de ação. Ação contra o ex-presidente, subentende-se. Miguel Rossetto é do grupo mais à esquerda e possivelmente o mais distante de Lula entre os integrantes da elite partidária com lugar cativo à direita presidencial.
O governo vai mal, Dilma parece ter perdido substância. Mas o governo paralelo de Lula também vai mal, sem deixar muito claro ainda porque. Quem vai menos mal é o PT. A tática do ex-presidente Lula é não admitir que a crise seja da elite. Mas não há 2 milhões de petistas em crise.
Lula, como Dilma e políticos petistas da elite, resistem a aceitar a ideia do erro. Mas a crise é deles.
Esta semana surgiram informações de que o ex-presidente teria conversado com velhos amigos da Igreja, frades conhecidos e com credibilidade, que o teriam aconselhado a se acalmar, se desculpar, pois o brasileiro teria capacidade de perdoar.
O atual mea culpa de Lula, se é que se pode caracterizar assim suas manifestações, pode ser uma resposta a esses conselhos. Seria reconhecimento do erro dizer que ele próprio está no volume morto, mas jogando a presidente Dilma e o partido no mesmo lamaçal? Seria pedir perdão dizer que o partido quer cargos, quer mandatos, e que precisa se distanciar do poder? Lá isso é pedido de desculpa? Não seria Lula quem quer tudo isso?
Se for esse o ato de contrição, está inadequado. Ele agravou a situação da presidente Dilma para desagravar a sua.
Admita-se que o recado contido nas duas manifestações seja um pedido de desculpas no momento em que a desconstrução do seu governo o vai demolindo mais do que tem demolido o governo Dilma.
Há, porém, descrentes contumazes, para os quais os dois discursos da semana já fazem parte do arsenal Lula 2018. O ex-presidente estaria montando o palanque, o velho apelo da vítima, com a tentativa de desvincular-se do enorme desgaste partidário para iniciar a sua nova corrida eleitoral. A ideia seria, primeiro, testar sua invencibilidade, depois testar o discurso. O autoflagelo é recurso do seu arsenal eleitoral, agora em nova construção.
Os senadores do PT entraram nessa e divulgaram ontem uma nota de solidariedade a Lula, como se ele estivesse sendo atacado e não atacando. O governo não reagiu. Dilma fez uma brincadeira sobre o assunto com a imprensa. E o presidente do PT, Rui Falcão, mistério em pessoa, não teve opinião. Esse foi o saldo do primeiro dia após a nova tática exibida no picadeiro.
O volume morto, expressão que o ex-presidente aprendeu, junto com o resto do Brasil, por causa da seca na Cantareira, e estava demorando a usar, veio à cena para aliviar, dar um charme à sua autocrítica. A presidente Dilma, realmente, pode estar no volume morto, com um governo em extrema dificuldade, com os indicadores da economia e da política, ao mesmo tempo, péssimos, pouca criatividade, pouca iniciativa, pouca capacidade gerencial. Mas Lula, não. O que se vê, ao seu redor, não é seca, é abundância.
Valor Econômico (24/06/15)
• Excertos da matéria do O Glogo. Críticas são estratégia para se descolar do desgaste petista, para se distanciar da impopularidade da presidente e para sobreviver:
Ricardo Ismael, cientista político da PUC-Rio
“É um cálculo político. Lula critica, mas não faz autocrítica. Coloca-se alinhado com a opinião pública. Sem dúvida, é a postura de um candidato à Presidência. Ele se comporta como um capitão que já deixou o navio, está em terra firme e observa o navio de fora. Dá o recado de que é o lulismo que vai liderar essa renovação que ele diz que o PT precisa. A renovação é ele, ele é que vai conduzi-la. À presidente, cabe se sacrificar por 2018 e ajudar Lula tentando recuperar a economia até lá”.
Oswaldo do Amaral, cientista político da Unicamp
“Um eventual descolamento de um governo de baixíssima popularidade é um movimento de quem quer deixar uma possibilidade aberta para concorrer em 2018. Dizer que o partido precisa se renovar também é uma maneira de tentar reacender um pouco a militância mais jovem do PT. As declarações de Lula sinalizam ainda a necessidade de o partido fazer mudanças. O PT não vai conseguir se recuperar com a manutenção dos mesmo líderes.”
Fernando Azevedo, cientista político da UFSCar
“Lula está explicitando algumas críticas que já vinha fazendo internamente. Ao mesmo tempo, é um possível movimento tático de se deslocar para evitar uma contaminação da sua popularidade, que ainda é melhor do que a do governo e a do PT. Internamente, o impacto é a abertura de um debate no partido, que vive um momento muito crítico. Em relação ao país, Lula começa a fazer uma autocrítica para o público externo da ação partidária e da própria atuação do governo.”
José Álvaro Moisés, cientista político da USP
“Lula está vendo o navio fazer água. Está assumindo uma posição de se dissociar da sorte do governo e do partido, sem assumir responsabilidade sobre o que aconteceu nos últimos 13 anos. É preciso saber se ele vai tomar iniciativa no sentido de enfrentar o problema. Teria sido uma coisa importante se ele tivesse feito essas afirmações durante o Congresso do PT (entre 11 e 13 de junho, em Salvador). Mas falou depois. Portanto, não é para levar a sério. É só uma maneira de jogar para a plateia”.
Eugenio Giglio, pesquisador de marketing político e professor da ESPM-Rio
“Lula é um dos políticos mais inteligentes do Brasil. Ninguém pode acusá-lo de ingenuidade: sabia que o que falava ia ter repercussão. Como a época é favorável à oposição, ele ocupa esse espaço. Critica a economia como se dissesse a Dilma: ‘Não foi para isso que botei você lá’. Não sei se combinou com o PT, que, além do próprio Lula, não tem líderes nacionais. Mas, por ser próximo de Dilma, talvez tenha articulado com ela. Lula reafirma que é maior que o PT porque quer sobreviver”.
Maria Celina D’Araujo, cientista política da PUC-Rio
“Lula está fazendo o que ele disse que precisava ser feito: política. Está animando o ambiente político, criando agenda. Na avaliação dele, é o que o governo não faz. Isso é parte de uma lógica dele de sempre ter voz; não é para contrariar Dilma. Não sei se é com vistas a 2018. É para hoje, amanhã, é para a vida dele. Agindo assim, Lula tira um pouco o fôlego da oposição, porque ele ocupa o centro do debate de oposição”.
(Alessandra Duarte e Sérgio Roxo/O Globo)
A escritora francesa Simone de Beauvoir, esposa do filósofo Jean-Paul Sartre, na obra da qual tomo emprestado o título, conta a história de Fosca, rei de Carmona, personagem nascido no ano de 1279, que bebe o remédio da imortalidade para salvar seu reino ameaçado pelos genoveses. Ao contrário do que ele imaginava, porém, se torna um “amaldiçoado” sobre a terra, condenado a viver para todo o sempre. Nosso personagem, que no final do ano passado foi lembrado aqui na coluna, surge no romance pelos olhos de Regine.
Fosca queria fazer algo importante para a humanidade e temia não ter o tempo necessário: “Morrerão todos e Carmona será salva. E então eu morrerei, e a cidade cairá nas mãos dos florentinos ou de Milão. Terei salvo Carmona e nada terei feito”. Diante desse dilema, bebe a fórmula mágica oferecida por um pobre homem que seria executado. Na condição de imortal, torna-se inflexível e capaz de tudo para alcançar o seu objetivo: “Com a condição de que o mal seja útil”. É intolerante e insensível perante as efêmeras existências alheias: “O que era uma vida?”.
Esse sentimento de ser soberano e deus na terra o acompanha por muitos séculos. Mas não apenas os inimigos sucumbem, o mesmo acontece com os seres queridos, que sacrifica por um fim inexistente. Sua visão de mortal, com o passar do tempo, perde totalmente o sentido. Fosca não vive as emoções de Marianne, sua grande paixão, não vive também as conquistas e vitórias dos demais, como as de Armand, de Garnier, de Laure, e de todo o povo e a humanidade. Vê as pessoas de forma muito prática: cumpria-lhe decidir!
Mesmo depois de ter o filho Antônio morto numa guerra sem sentido, como todas as outras, Fosca acredita que a sua felicidade está em dominar o mundo. Esse desejo o faz guerrear por muito tempo, até que chega à conclusão de que lutar não serve para nada, e que não existe vitória, para um ser imortal. Um monge lhe diz: “Acredita ter realizado grandes coisas, e o que fez não é nada”. Fosca, então, indaga sobre o próprio passado: “Útil a quem? A quê?” E chega à conclusão derradeira: “Eis o império que destruímos, o império que eu desejava estabelecer sobre a terra (...)”.
Senhor do tempo
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está mais ou menos na situação do personagem de Simone de Beauvoir. Dono de imenso carisma, parece imortal, mas começa a colecionar cadáveres ao redor. Sobrevive ao fracasso e aos reveses alheios, mas está cada vez mais só. O modelo econômico que acreditava ser capaz de transformar o Brasil numa potência, enquanto o mundo afundava, resultou num grande fracasso e desmoralizou o “desenvolvimentismo” petista. As alianças políticas que teceu com engenho e arte voltam-se contra seu partido e operam uma guinada conservadora. A presidente Dilma Rousseff amarga os mais baixos índices de popularidade e não consegue sair da defensiva. Os empresários amigos estão na cadeia, a mesma pela qual já passaram companheiros históricos que o levaram ao poder e executivos que promoveu na empresa símbolo do orgulho nacional.
Parece que não restará outra alternativa para Lula a não ser acreditar na própria imortalidade e antecipar sua candidatura a presidente da República em 2018. Seria uma maneira de manter o PT unido, conter a debandada dos aliados que querem abandonar o governo, pôr a oposição de joelhos novamente. Mas o que pode um senhor da guerra diante da destruição e dos sacrifícios que impõe ao seu próprio povo? É aí que a dúvida de Fosca passa a ser um drama existencial.
Lula era senhor do tempo e da razão, mas a Operação Lava-Jato é como um trem parador da Central do Brasil que precisa chegar a Japeri. Mudou o cronograma político do país. Por mais que o Palácio do Planalto tente construir uma agenda positiva para a presidente Dilma Rousseff; e por mais que os presidentes do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), lancem o Congresso num grande ativismo legislativo, a investigação sobre o escândalo de corrupção na Petrobras tem seu próprio ritmo e comove a vida nacional. Tanto a crise política como a crise econômica estão vinculadas à espantosa crise ética que se abateu sobre a República. Em nome da governabilidade e da estabilidade econômica, tudo se faz para conter o escândalo aos limites de conveniência do status quo, mas a mesma sociedade que sofre as consequências de tudo isso quer ver o caso passado a limpo, doa a quem doer
Fonte Correio Braziliense
"O 5º Congresso do PT, no qual predominaram discursos pré-governo Lula, expôs as dificuldades do partido de definir novos caminhos. Entre palmas ao tesoureiro preso e namoros com o Podemos e o Syriza, o lulismo saiu derrotado. Inflação, corrupção e políticas para os pobres desorganizados ficaram esquecidas."
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Em entrevista à CNN, o político trabalhista britânico David Miliband, irmão do ex-líder do partido, explicou a derrota recente frente aos conservadores nos seguintes termos: o país queria que virássemos a página, mas nós a viramos para trás. O PT entrou em seu 5º Congresso, realizado na semana passada em Salvador, com grande dificuldade de descobrir para que lado segue o livro.
Na luta principal da noite, a tendência de oposição mais articulada, a Mensagem ao Partido (que tem entre seus líderes o ex-governador gaúcho Tarso Genro) propôs o afastamento dos dirigentes acusados de corrupção, a revisão das alianças e a rejeição do ajuste fiscal; o grupo majoritário, o Partido que Muda o Brasil (PMB, o grupo de Lula) conseguiu que, no documento final do evento, a "Carta de Salvador", tanto a tentativa de virada à esquerda quanto a discussão franca sobre corrupção fossem substancialmente neutralizadas.
A dinâmica habitual entre as tendências petistas se repetiu. Em que pese a coragem diante da crise ética que vive o petismo, as propostas da esquerda do PT sobre política e economia dariam ao governo Dilma uma expectativa de vida de cerca de 15 minutos e, se implementadas, lançariam o país em uma crise ainda pior do que a atual. Mais uma vez, o grupo majoritário do PT dá a impressão de ser o único que compreende minimamente o que significa ser governo, e sua virtual estabilidade no emprego impossibilita a autocrítica ética que o PT precisa fazer.
A imagem que possivelmente ficará do Congresso é a do episódio bizarro do aplauso ao tesoureiro Vaccari, acusado de corrupção e, no momento, preso. Várias correntes defenderam o afastamento dos dirigentes acusados de corrupção (por exemplo, a Mensagem ao Partido e a Militância Socialista). Isso não teve nenhum eco no documento aprovado.
Mais adiante discutiremos as possibilidades estratégicas do PT, mas é preciso começar com o registro: ao se recusar a prestar contas à população na questão da corrupção, o PT limitou drasticamente suas possibilidades de reconquistar o centro do espectro político, ou mesmo de virar à esquerda com eficiência. Todas as suas ideias serão ouvidas com desconfiança, o que é um alívio no caso das ruins, mas uma pena no caso das boas. E mais uma pena do que um alívio, porque as ideias ruins poderiam ser descartadas mais dignamente em um debate aberto.
Esse abandono do centro certamente favoreceu o tom de "virada à esquerda" ou "fuga para a frente" que marca tanto as teses quanto, em menor grau, a "Carta de Salvador". Certamente enfraqueceu a resistência oferecida pelo PMB às teses mais à esquerda. E não há dúvida de que muita gente no PT está usando "memes" tradicionais da esquerda (em especial em relação à mídia) para evitar debates sobre corrupção e sobre erros na condução da política econômica.
Mas a virada à esquerda no discurso petista --que, mesmo amenizada, sobreviveu na "Carta de Salvador"-- tem uma raiz mais profunda na vida e nas discussões dentro do partido. No fundo de sua alma, o PT rompeu com o lulismo e ainda espera um bom argumento pela reconciliação.
O tema unificador das diversas teses apresentadas no congresso foi, com efeito, a crítica ao lulismo, entendido como estratégia de conciliação política baseada em políticas públicas pró-pobres que não conflitem nem com os interesses da elite nem com os do sistema político. Algumas tendências veem na crise do lulismo a crise inevitável de toda estratégia de esquerda moderada; outras apenas constatam que, com o fim da alta das commodities e o movimento do PMDB para a direita, os acordos se tornaram mais difíceis.
Em todas as teses o diagnóstico é de que não há mais como avançar nas conquistas sociais sem gerar perdedores, e a estratégia é garantir que os perdedores estejam predominantemente entre os mais ricos e entre os setores políticos que tradicionalmente mandaram na política brasileira. O lulismo, é claro, não se confunde com o apoio a Lula, que já existia antes de 2002 e pode seguir existindo.
Mas, após o lulismo, o quê? O exame das discussões no 5º Congresso demonstra um recurso excessivo ao repertório ideológico pré-lulista, e, sobretudo, uma falta de diálogo com a experiência dos 12 anos de governo.
Ortodoxia - A crítica ao lulismo é mais evidente na proposta de abandonar a ortodoxia econômica, que marcou o governo Lula, digamos, em sua "fase clássica". As discussões sobre economia nos textos apresentados pelas tendências são extremamente rápidas e/ou superficiais, quando não francamente bizarras: em evento recente da esquerda do PT, o ex-secretário do Tesouro Arno Augustin defendeu que houve um ciclo virtuoso da economia brasileira que teria se estendido até 2014.
E, se é verdade que na oposição atual há luto mal resolvido pela derrota em 2014, o PT poderia dar o exemplo, admitir que perdeu em 1994, e discutir inflação com mais seriedade. É um alívio que essas ideias apareçam pouco na resolução final. Algumas tendências parecem ver a presença de Joaquim Levy na Fazenda como uma invasão, um "Occupy Wall Street" reverso, o que é estúpido. Mas é inteiramente legítimo discutir quem arcará com o custo do ajuste.
Seria um sopro de ar fresco se os programas da esquerda brasileira tivessem menos conversa a respeito dos "rentistas" e mais discussão sobre tributação progressiva. As teses apresentadas em Salvador são típicas de quem acabou de começar a pensar nisso a sério (para além das homenagens rituais ao princípio, que sempre existiram), e jogam com todas as ideias de uma só vez, sem muita discussão: imposto sobre grandes fortunas, mudanças nas faixas do imposto de renda, tributação sobre lucros.
Não custa torcer para que a discussão progrida racionalmente e chegue à proposta mais eficiente sob os diversos critérios possíveis. A "Carta de Salvador" inclui, entre suas teses principais, um apelo para a "expansão da progressividade do fundo público", uma boa formulação, pois parece incluir tanto a progressividade dos impostos quanto a do gasto público, a ser concentrado nos mais pobres.
Mas é provável que essas declarações sobre tributação valham mais como início de uma reorientação programática de médio prazo. A hora em que você precisa desesperadamente fazer um ajuste fiscal é provavelmente a pior hora possível para conduzir essa negociação. O governo vai ter que fazer o ajuste, de algum jeito, em um prazo curto. Sem arrancar concessões da direita no Congresso, só vai poder fazer as correções com o sacrifício de sua própria base.
Para garantir que as medidas sejam implementadas à custa da base do PT, basta aos opositores da redistribuição de renda esperar a crise piorar até o governo ter que fazer o ajuste de qualquer maneira (imaginem o exemplo contrário: um governo de direita sem maioria parlamentar na mesma situação teria que acabar por taxar bem mais do que as grandes fortunas). Quanto mais a hora da inevitabilidade se aproximar, mais o poder de negociação da esquerda vai diminuir, até chegar a zero --que é quase onde estamos. Por esses e outros motivos, seria bom evitar fazer ajuste fiscal só quando a situação já é dramática.
A herança do lulismo também é descartada na repetida recusa da conciliação política. Consciente de que a base parlamentar atual não parece disposta a aprovar nada remotamente progressista, todas as tendências do PT propõem "levar a luta política para a sociedade".
Passou a proposta da formação, aparentemente razoável, de uma frente de esquerda envolvendo partidos e movimentos sociais. Entretanto a ênfase no fim da conciliação política bem como os depoimentos recentes de Tarso Genro sugerem que a ideia seria romper com o PMDB --ou tomar medidas (como a substituição de ministros) que claramente implicariam o rompimento com o PMDB.
Não é fácil entender como uma base política menor seria capaz de aprovar mais propostas de esquerda. O apelo aos movimentos sociais supõe que a opinião pública esteja propensa a ser liderada pela esquerda com tal entusiasmo que os congressistas aceitem votar contra seus interesses para não perderem seu eleitorado; se há evidências de que isso, hoje, é provável, elas deveriam ter sido apresentadas. Seria algo difícil mesmo sem as acusações de corrupção e sem o silêncio do PT sobre elas.
Percebe-se claramente que o partido gostaria de estar lidando com a crise de 2013, não com a de 2015. Os petistas têm muito mais repertório intelectual e prático para lidar com as manifestações de rua do que com a crise econômica ou o presidencialismo de coalizão.
Em um movimento da discussão sobre eleições diretas no partido na plenária final do último congresso (cujo vídeo está disponível na web), alguém puxou o coro de "PT! Na rua! O resto é falcatrua!"; esse é o slogan que parece resumir o sentimento atual da militância, que percebe o deslocamento do processo para uma arena em que ela não parece ter qualquer influência --e na qual são gerados escândalos pelos quais ela é responsabilizada nas ruas, em seus locais de trabalho, nas reuniões de família. No auge do lulismo, isso era compensado por aumentos de 10% na renda dos mais pobres todos os anos. Não é mais.
A nostalgia pela política de base também ajuda a explicar o profundo impacto que parecem ter tido, no imaginário petista, os movimentos antiausteridade europeus, em especial o Syriza e o Podemos, citados com aprovação nas teses e em discursos no congresso, sem a devida consideração de quão incipientes são ainda os resultados de ambos os partidos no governo --embora seja legítimo, claro, torcer para que sejam bem-sucedidos nas dificílimas tarefas que têm à frente.
Há mesmo a tentação adicional de comparar a austeridade europeia ao ajuste brasileiro. Mas é preciso matar a ideia no nascedouro: a Europa teve política anticíclica de menos, o Brasil provavelmente teve política anticíclica demais. Os pontos de partida da austeridade são completamente diferentes.
A intelectualidade petista parece estar com muito mais vontade de ler os teóricos dos novos movimentos de rebeldia urbana do que em pensar em grandes esquemas de alianças e disputa pela hegemonia. É um movimento compreensível em um partido de oposição, que pode inspirar boas práticas de diálogo com os movimentos sociais, mas de modo algum pode ser a linha geral de um partido no poder. Rebeldia com controle do Exército e do Orçamento público não é tão romântico, não é "horizontal", e, para dizer o mínimo, tem pouco potencial libertador.
Essa contradição explica o fato, ademais inacreditável, de alguns documentos elogiarem ao mesmo tempo os movimentos de rebeldia e o governo venezuelano, que tem desenvolvido uma abordagem bastante particular para conter os movimentos de contestação.
Essa "inveja do Podemos", no fundo, é uma tentativa de resolver dentro do imaginário petista --e apenas lá-- o dilema da incapacidade do PT de conseguir um aliado de centro com quem possa atuar no Parlamento. Pelas origens históricas semelhantes, esse aliado seria o PSDB, mas essa porta se fechou em 1994. O PSDB, é claro, está em deslocamento para a direita, pelo menos desde as manifestações deste ano. Viveu tensões importantes, por exemplo, entre a bancada e a direção na questão do impeachment. É razoável supor que perca eleitores de centro se exagerar no movimento para a direita, e para o PT seria imensamente importante conquistá-los --ou que algum partido aliado o fizesse. Mas ninguém vai conseguir fazer isso com aplausos a dirigentes presos e com o programa econômico de Arno Augustin.
Pobres - Por fim, os principais personagens do lulismo, os pobres desorganizados, quase sumiram. Os pobres só entram no discurso "quero ser Syriza" quando já são altamente politizados: são os pobres do MST, do MTST, dos movimentos culturais de periferia. O pobre evangélico que ainda está fascinado pelo fato de que seu filho agora tem alguma chance de frequentar a universidade também deve ser entregue de graça, ao que parece, à oposição, juntamente com o centro do espectro político, o Congresso Nacional e o monopólio da gestão macroeconômica responsável.
Em um trecho notável, a tese do PMB admite ignorância, algo extremamente raro em manifestos políticos: "Não temos, nem mesmo, um conceito preciso para caracterizar os milhões de emergentes que as reformas Lula/Dilma fizeram aparecer na sociedade brasileira ["¦] O Partido não é uma escola de sociologia. Mas é evidente que temos uma necessidade política de compreender a exata natureza das mudanças sociais em curso e, junto com elas, captar as demandas dos novos atores da cena brasileira. Elas são hoje, seguramente, distintas daquelas de 2003, quando esse processo de mudança apenas iniciava".
É uma coincidência interessante que, com os pobres desorganizados, tenha sumido o debate sobre a inflação. Em sua formulação inicial por André Singer, o conceito de lulismo tinha entre seus elementos constitutivos um certo conservadorismo popular, derivado da fragilidade da situação dos muito pobres: eles não têm como se proteger em aplicações financeiras e estão próximos demais da miséria extrema para arriscar movimentos bruscos.
As propostas da esquerda do PT e mesmo, em menor grau, do grupo dirigente, por certo aumentariam a instabilidade econômica e política --o que, é claro, nem sempre é ruim; tanto as manifestações de 2013 quanto as de 2015 aumentaram a instabilidade.
Mas ninguém parece muito preocupado com o que os pobres desorganizados, que foram muito mais importantes para reeleger Dilma do que qualquer militante de esquerda, têm a dizer sobre propostas econômicas que aumentariam a inflação.
O historiador britânico E.P. Thompson notabilizou-se por mostrar como a classe trabalhadora inglesa, em alguma medida, "fez a si mesma", além de ter sido "feita" pelo processo de industrialização. Os segmentos ascendentes, quer os chamemos de "nova classe média", como Marcelo Neri, "nova classe trabalhadora", como Márcio Pochmann, ou "batalhadores" como Jessé de Souza (curiosamente, os três últimos presidentes do Ipea), ainda estão, de alguma forma, decidindo o que serão.
Se o conceito parece indeterminado é porque, em parte, dependerá da atuação das forças políticas sobre esses setores --e seria melancólico se o principal partido da esquerda brasileira não tivesse nada a oferecer para a formação dessa identidade.
A "Carta de Salvador" tem uma proposta que promete ao menos dialogar com os setores emergentes e o centro do espectro político. Em seu ponto 44, defende políticas para "o verdadeiro mar que organiza os micro e pequenos negócios no país", com a constituição de fundos públicos que ofereçam acesso a crédito, formação e tecnologia, entre outras coisas.
A proposta tem todas as digitais de Roberto Mangabeira Unger, que, em entrevistas recentes, vem apresentando ideias semelhantes. É sempre difícil imaginar como o ministro Unger pretende passar da poesia à prosa, mas a ideia parece ser um esforço intelectualmente honesto e politicamente viável de dar poder aos mais pobres para que decidam suas vidas, uma visão para os setores ascendentes do lulismo que não passa nem pela sua instrumentalização política como massa de manobra nem por mantê-los apenas como consumidores passivos. Naturalmente, é só um esboço de solução.
No fim de semana passado, o lulismo (de novo, como formulado por Singer) morreu em seu último habitat. É significativo que muitos no PT tenham experimentado o processo como uma liberação: o fim do lulismo criou um impulso por ativismo, pela recuperação de antigas propostas e pela abertura de novas ideias de esquerda.
Tudo isso pode ser saudável, entretanto é preciso entender que a trégua lulista congelou também tarefas urgentes de revisão ideológica, que a esquerda brasileira deveria ter feito desde os anos 90.
O adiamento sem prazo de certos ideais de esquerda no partido permitiu que eles permanecessem imunes à crítica e manteve o esquerdismo da época do PT oposicionista em suspenso, sobrevivendo ao lado dos grandes acordos e das grandes conciliações.
Não fazia sentido discutir seriamente aquelas ideias que, afinal, não seriam mesmo implementadas. O direito de continuar a repetir o discurso dos anos 1990 foi preservado pelos mesmos acordos que mantiveram impostos pouco progressivos e esquemas políticos tradicionais. Quem quiser rediscutir os acordos precisa rediscutir esse programa.
Algumas ideias da "Carta de Salvador", como a "progressividade do fundo público" (tanto na tributação quanto no gasto), a volta à militância de base, a formação de uma frente com os aliados da esquerda, e, quem sabe, as propostas de Mangabeira Unger, podem gerar bons resultados; outras dificilmente sobreviverão mesmo a uma análise rápida, como a que foi feita aqui.
Esse trabalho de crítica é tão importante quanto descobrir uma nova forma de se relacionar com a base aliada no Congresso, ou um modo de reverter os piores efeitos da crise econômica.
E, ao contrário de todos os outros temas discutidos acima, depende exclusivamente da competência dos petistas. Uma parte razoável do impulso à ação recém-liberado no PT vai precisar ser gasta olhando para dentro.
Folha de S. Paulo/Ilustrísima
Expectativa maior, não havia, e portanto os nativos não ficaram frustrados. Mas quem reparou pela fresta, mesmo alertado para o fato de que o congresso do PT na Bahia rendeu apenas o que se esperava que fosse render, ou seja, nada, deixou emergir o sentimento de oportunidade perdida. O partido não saiu do lugar, não sacudiu a poeira, não deu a volta por cima, não se reinventou, não criou instrumentos que possam remeter sua militância à conservação do poder no futuro.
O PT chegou à reunião máxima da sigla totalmente destruído e dela saiu igualmente estraçalhado. O que mais chamou a atenção foi a evidência de que não há uma só ideia nova, uma bandeira atraente, um líder político que proponha uma saída que não seja pela propaganda, uma dose de emoção.
Seus intelectuais, os acadêmicos que sustentam suas teses, os estudiosos que criam novas maneiras de justificar o injustificável, hibernaram. Dizem que estão fazendo esses estudos no escurinho do instituto de estudos partidários, mas a discrição é regra. O que se tem notícia de lá, porém, são estudos sobre tudo, do desemprego à venda no varejo, mas nada sobre o resgate partidário.
Os políticos que foram à Bahia contiveram-se nas suas velhas idiossincrasias. O imposto novo a cobrar dos ricos é o velho imposto sobre grandes fortunas; a taxa nova a cobrar da classe média é a velha CPMF. A modernidade, a inovação, os novos pensamentos, marcaram ausência.
O congresso do PT não apontou rumos. E para não dizer que a palavra símbolo do encontro foi o não, que imobilizou o partido, faça-se constar que o nivelamento do ex-presidente Lula e antigo líder carismático aos sentimentos de derrota do conjunto foi uma novidade.
Antes, quando tudo ameaçava ruir, invocava-se Lula, que seria então o candidato a comandar as massas, que manteria o poder do partido, que não se deixaria atingir. O congresso mostrou que Lula não é mais o mesmo. A simples convocação para depor à CPI da Petrobras de Paulo Okamotto, o número dois do instituto que leva seu nome, sócio no negócio de palestras nacionais e internacionais, pego justificando com uma argumentação inacreditável os pagamentos recebidos de empreiteiras envolvidas em investigações da polícia, tirou o chão do ex-presidente e o fez passar um recibo público por intermédio da repreensão às bancadas na Câmara e no Senado.
O congresso foi realizado no momento em que havia mais de um ano de investigações da Operação Lava-Jato, que vitimou o coração e o bolso do partido: seu tesoureiro e membro da Executiva Nacional está preso. As bancadas advertidas pelo líder maior da sigla, mostrando sua nova fraqueza. A militância imobilizada, sem responder aos apelos como o fazia antes, porque tolhida. Sequer pode criticar o governo como gostaria.
Também não deu para correr para o ombro presidencial, que também vai mal e está sem condições de arregimentar socorro. A presidente Dilma falou por quase uma hora sem ser ouvida. Alguns saíram, outros se refestelaram no chão, e muitos aumentaram o tom da conversa.
Proibida de atacar a política de ajuste fiscal do governo, a contenção de gastos e os sacrifícios exigidos agora dos seus eleitores para corrigir erros do passado, a militância foi recuando, afinou a voz e acabou em críticas apenas sussurradas.
Mas a perplexidade chegou mesmo com o fato de que os maus augúrios bateram em Lula. Esse o fato novo a registrar, a ameaça concreta de perda de poder, o medo.
A direção do partido, da corrente Construindo um Novo Brasil (CNB) desmobilizou a elaboração de documentos e cartas críticas de recomendação da reunião dos petistas, e também foi criticada.
As bancadas na Câmara e no Senado foram desqualificadas, não só por haverem cochilado na convocação de Okamotto, mas também por não estarem reagindo ao cerco ao partido, cada um cuidando do seu mandato e deixando para voltar-se ao PT mais perto das eleições, quando, segundo as ácidas referências do congresso, precisam de dinheiro. As eleições, sim, especialmente as municipais, ainda mobilizam grupos que pretendem se candidatar às prefeituras e realizam movimentos de deserção, ainda preliminares, a serem concluídos em fins de setembro.
O congresso não foi um marco da virada, e ainda permitiu que se notasse a ausência de um, dois ou três líderes, como já houve no PT, que apontassem a estratégia rumo ao futuro.
Lula está preocupado, muito preocupado, com a percepção de que não é mais impermeável às denúncias e críticas. Está sentindo o aperto, inclusive nas pesquisas internas, que comprovam terem o caso Petrobras e as dificuldades do governo Dilma atingido em cheio suas pretensões de voltar a candidatar-se a presidente. Antes, o PT corria para o alto Lula, agora, neste novo momento de adversidade, Lula corre para o baixo PT.
Fonte: Valor Econômico (17/06/15)
Dois anos atrás, o dia 15 de junho de 2013 caiu em um sábado. Foi dia de intenso tráfego de posts sobre a repressão policial às manifestações contra o aumento de tarifas de transporte das semanas anteriores, especialmente aquela do dia 13, em São Paulo. Os comentários e trocas de mensagens vinham já com a convocação para a manifestação do dia 17, que, no calendário muito especial de junho, viria a ser "a segunda-feira", um dia da semana com identidade própria e inconfundível.
Já dava para perceber ali que o caldo tinha entornado para o lado de qualquer autoridade instituída. Foi para a rua toda uma geração que não tinha conhecido de política nada além da encenação entre PSDB e PT pela liderança do paquiderme pemedebista instalado no coração do sistema político. Junho abriu o horizonte antes invisível de um aprofundamento da democracia, para além do arrastado e interminável processo de redemocratização.
Junho foi como uma enorme reunião de movimentos de protesto, abriu um amplo leque de insatisfações e de aspirações. Como essa amplitude não cabia em uma única reivindicação ou movimento, dirigiu-se contra o sistema político tal como funciona. Até aquele momento, a política oficial parecia tão blindada contra a sociedade que toda ação transformadora parecia inútil. Foi isso que mudou.
Junho ainda não acabou, porque instituiu a sensação permanente de que pode voltar a qualquer momento. O sentido do que aconteceu em junho continua em disputa. Pertence a qualquer pessoa que se reivindique dele, seja qual for sua posição política. Essa é a sua força e o que o projeta para além de 2013. É uma ameaça cidadã, que parece remota, até que eclode novamente.
O que falta de água em reservatórios e rios sobra em energia nas ruas e no cotidiano. Mas faltam redes de transmissão para fazer a energia produzir transformação institucional. Continua a persistir o fosso entre as aspirações da rua e o modo de funcionamento do sistema político. Nas poucas oportunidades que conseguiu ganhar cara institucional, a energia de junho não faltou. Produziu uma polarização na campanha presidencial de 2014 como não se via há muito tempo. Encontrou na Operação Lava-Jato um canal de expressão institucional inédito. Depois que o governo Dilma deu uma banana para a própria polarização que produziu na eleição, ondas de protesto e de apoio ao governo se formaram.
O único resultado institucional visível desse choque de democracia até agora foi desorganizar o sistema político tal como funcionou até o primeiro mandato de Dilma. E o específico da situação atual é que essa desorganização tem servido justamente como muro de contenção do potencial de transformação liberado em junho. A desorganização serve hoje para bloquear qualquer avanço institucional efetivo. A atual dominância pemedebista é a forma presente do conservadorismo. É a resposta (conservadora) ao declínio do arranjo político (conservador) que vem desde a década de 1980.
Não apareceu ainda uma frente política capaz de catalisar as energias em favor de um projeto político que, durante muitos anos, teve no PT o seu polo aglutinador histórico. E esse bloqueio se deve em grande parte à força declinante, mas ainda ativa, do próprio PT. Não apareceu ainda uma frente política capaz de vocalizar os protestos de março e de abril de 2015 contra o governo Dilma. E esse bloqueio se deve em grande parte à liderança declinante, mas ainda ativa, do PSDB como polo de referência histórico de um projeto alternativo ao petista.
PT e PSDB desempenham hoje o papel de bloqueadores de uma reorganização partidária inevitável. PT e PSDB não conseguem mais liderar o sistema político, mas ainda dispõem de força suficiente para bloquear sua reorganização em novos termos. A desorganização que daí deriva é o habitat natural do PMDB. O que significa também: é o habitat natural do conservadorismo político nacional.
E, como não podia deixar de ser, a dominância pemedebista vem sempre sob a forma da chantagem. E sua fórmula é tão simples quanto eficaz: estão querendo algo muito diferente? Podem acabar tendo de lidar com algo ainda pior do que o que existe hoje. Ou o PMDB ou o caos, especialmente o caos que pode vir de ruas descontroladas. Como se manter o PMDB no comando efetivo do país fosse o único elemento estabilizador possível em tempos de um arranjo político em declínio.
Com a sobrevivência ameaçada em vários níveis, a maioria das pessoas parece de fato intimidada pelo "ruim comigo no comando, pior sem mim". Mas o que há de específico no momento atual é que mesmo forças conservadoras relevantes que aceitaram sem piscar a chantagem pemedebista estão apreensivas. E com boas razões. Basta ver o ornitorrinco que o presidente da Câmara dos Deputados insiste em chamar de reforma política. Ou o disparate de um Banco Central que ameaça jogar a taxa Selic nas imediações de 17% ao ano.
A preocupação é especialmente fundada porque as energias de junho continuam soltas, mesmo que temporariamente intimidadas pela chantagem pemedebista. Não vão se transformar em força produtiva enquanto um novo e convincente rearranjo do sistema político não surgir. Mas nem por isso permanecer latentes por quatro anos. Basta pensar que, em 2013, a situação era incomparavelmente menos dramática que a de hoje para ver que a calmaria atual nas ruas é apenas aparente.
Um começo de reorganização pode vir com um realinhamento do sistema partidário que consiga se conectar com a energia das ruas. Para que isso possa começar a acontecer, PT e PSDB terão de sentir efetivamente o risco da irrelevância de que estão ameaçados. Terão de repensar suas estratégias e táticas políticas para além do que fizeram nos últimos vinte anos. Terão de deixar o papel de bloqueadores da transformação que hoje desempenham. Do contrário, o jogo poderá acabar reduzido a uma alternativa entre o sequestro pemedebista da política e a insatisfação ruidosa das ruas.
Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap. Escreve às segundas-feiras
Fonte: Valor Econômico (15/06/15)
Os legisladores, no âmbito da Câmara dos Deputados, aprovaram em primeiro turno o fim da reeleição. Trata-se de um erro crasso quando se refere à reforma de nossas instituições políticas. Crasso, em latim, significa gordo, espesso. Era também o sobrenome do general romano Marco Licinius, que, acreditando na pura e simples superioridade numérica de seu exército, atacou um povo persa que impedia a expansão de Roma sem considerar as táticas militares que já haviam sido testadas e aprovadas pelo Império que ele representava. Crasso acabou sendo derrotado.
Convencionou-se afirmar que a reeleição de Dilma desmoralizou o instituto da reeleição. Considerando-se verdadeiro o argumento, os deputados decidiram modificar uma legislação que tem amplo impacto positivo no funcionamento do sistema como um todo por causa de apenas um caso. Se realmente o motivo foi esse, trata-se de algo lastimável. Alguns afirmam que os malefícios da reeleição vão além da eleição presidencial de 2014 e se aplicam a todas as eleições, para governadores e prefeitos. Dizem eles que o uso da máquina se tornou abusivo e que os ocupantes do Poder Executivo, no nível estadual ou municipal, levam grande vantagem sobre seus opositores.
Levantamento feito pelo jornal "O Globo", porém, mostrou que desde 1998 apenas 69% dos governadores e 61% dos prefeitos foram reeleitos. Em 2012, menos que 55% dos prefeitos que disputaram a reeleição venceram e em 2014 somente 11 governadores foram reconduzidos ao cargo.
Sim, apenas 69% dos governadores e 61% dos prefeitos foram reeleitos. Esse número ignora aqueles prefeitos e governadores que estavam em seus respectivos cargos, podiam se candidatar à reeleição e não o fizeram porque sabiam que seriam derrotados. Dito de outra maneira, caso todos os governadores e prefeitos que pudessem disputar sua reeleição o tivessem feito, a taxa de reeleitos seria bem menor. Em jargão científico isso se chama viés de seleção.
Quando se faz um levantamento dessa natureza há viés de seleção que diz respeito ao mundo, diz respeito a como as coisas são: quem não tem chance de vencer acaba não disputando. Governadores e prefeitos podem ter acesso àquela informação por meio de pesquisas de intenção de voto e de avaliação de governo. Já foi demonstrado nesta coluna que governadores e prefeitos com menos de 40% de "ótimo" e "bom" têm poucas chances de ser reeleitos.
É verdade que o uso da máquina por aqueles que estão no cargo se torna um fator que desequilibra a disputa. Ora, diante disso, o que os deputados federais decidiram? Optaram por extinguir a reeleição, em vez de limitar o uso da máquina. Como se afirma corriqueiramente: jogaram fora o bebê junto com a água do banho. Por que não votaram uma lei que obrigue o governante a se desincompatibilizar de seu cargo para disputar a reeleição? Isso limitaria o uso da máquina. Muitas outras medidas dessa natureza poderiam ter sido discutidas e aprovadas. Reduziriam a eventual assimetria que beneficia aquele que concorre à reeleição.
Ao extinguir a reeleição, os deputados decidiram contornar a dificuldade, não a resolveram. A dificuldade a ser resolvida é o uso da máquina em casos de reeleição. Enfrentar essa dificuldade significa não ser superficial, significa avaliar quais os aspectos de utilização da máquina que deveriam ser limitados. Isso já foi feito no passado, ao se limitar inaugurações, lançamentos de obras, novos gastos, publicidade. Ora, caberia agora aperfeiçoar a legislação. Mas, repito, nossos legisladores contornaram a dificuldade, em vez de encará-la de frente.
A dificuldade é grande mestra, nos ensina a tomar consciência de nossos limites, nos obriga a não sermos superficiais. Abolir a reeleição em primeiro turno na Câmara dos Deputados foi um erro crasso também porque foi uma decisão superficial.
Um prefeito, governador ou presidente eleito para um primeiro mandato tem o incentivo institucional para fazer tudo certo se existe a perspectiva de ser reeleito. É de seu interesse ser reeleito. Portanto, é de seu interesse cumprir as regras da administração pública, deixar as finanças em ordem no início do mandato, para que possa investir nos dois últimos anos, tratar bem seus aliados políticos, atender a seus eleitores. Aqueles que não fazem isso são punidos na urna pelos eleitores, ou, como explicitado anteriormente, sequer se recandidatam.
Quando não há reeleição, e isso já está longe em nossa memória, pois antecede 1998, aquele que ocupa o cargo não tem motivos para ser um bom administrador. Há quem recorra ao argumento de que o governante quer eleger o sucessor. Nada disso. O sucessor e aliado de hoje é o futuro adversário e inimigo político. Há muito mais criaturas que se voltaram contra seus criadores do que o oposto disso. Uma coisa é você ser reeleito e outra, inteiramente diferente, é alguém o suceder. São pessoas diferentes, cabeças diferentes, grupos políticos diferentes, interesses diferentes.
Muitos se recordam vivamente dos tempos em que prefeitos e governadores, na impossibilidade de disputarem a reeleição, agiam de maneira a inviabilizar o mandato de seus sucessores deixando dívidas e passivos de todos os tipos. É isso que passará a ocorrer novamente caso a Câmara e o Senado aprovem o fim da reeleição.
Há quem defenda que, com o fim da reeleição, o mandato passe de quatro para cinco anos. Se isso acontecer, as coisas ficarão ainda piores: os governantes terão um ano a mais para deixar passivos para seus sucessores. Tornar-se-ão mais comuns as cenas, que de vez em quando vemos, de prefeituras invadidas e depredadas, governos paralisados, serviços públicos em colapso, além do aumento da chamada judicialização da política. Cinco anos é tempo demais. Se um governo for mal, o que hoje se espera dois anos, passará para três, e o que hoje se espera um passará a ser dois anos. Estará montado o circo para os processos junto à Justiça, além, é claro, das turbas de toda natureza.
Aperfeiçoar as instituições políticas exige paciência. Trata-se de um processo demorado e, com frequência, imperceptível. Passos lentos e seguros permitem que o resultado de cada reforma seja bem observado e avaliado. Assim, o sucesso ou falha do primeiro passo serve para que seja dado o segundo, e assim sucessivamente.
O que os políticos temem é o poder do governo, o enorme Estado brasileiro, que, se utilizado pelos governantes durante a eleição, deixa seus adversários em situação bastante desvantajosa. Ao se abolir a reeleição, essa máquina todo-poderosa e seus usos foi deixada intocada. É incompreensível, por exemplo, que alguém que se candidate a outro cargo tenha que se desincompatibilizar, ao passo que isso não é necessário quando se candidata ao mesmo cargo. Serra teve que deixar o governo de São Paulo em abril de 2010 para concorrer à Presidência, mas Geraldo Alckmin não foi obrigado a se afastar do governo do Estado quando disputou a reeleição em outubro do ano passado.
Manter a reeleição e obrigar aquele que a disputa a se afastar oficialmente do cargo seria um limite importante. Isto poderia ser extensivo para o candidato a vice. Note-se que, no caso, considerando-se a Presidência da República, o governo ficaria nas mãos do presidente da Câmara dos Deputados. Na eleição presidencial, todos os candidatos, com exceção de Dilma, ao concederem suas entrevistas televisivas, tiveram que ir ao estúdio da emissora. Como a lei permite que o candidato fique no cargo, Dilma concedeu várias de suas entrevistas no Palácio da Alvorada. Não fez nada de errado ou ilegal. Teria sido mais equânime, porém, se todos os candidatos tivessem tido o mesmo cenário para suas respectivas entrevistas. Isso pode ser objeto de uma iniciativa legislativa de nossos deputados. Não foi o que escolheram. Seria o equivalente a enfrentar a dificuldade de limitar o poder de quem disputa a reeleição. Decidiram contornar a dificuldade. Lamentável.
É provável que o fim da reeleição seja aprovado em segundo turno na Câmara. Caso a tese perca votos, porém, estará aberto o caminho para que o Senado modifique a decisão. Se de fato a reeleição for abolida, deveria ser inaugurado no Salão Verde da Câmara um busto em homenagem a Orestes Quércia com os dizeres: "Quebrei o Banespa, mas elegi meu sucessor".
Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de “A Cabeça do Brasileiro”.
Fonte: Valor Econômico / Eu & fim de semana
Petismo e antipetismo alimentam a contraposição mais marcante na conjuntura atual, algo que vem maturando desde, pelo menos, a campanha para as eleições presidenciais de 2014. Ainda que seja uma contraposição facilmente observável, nem tudo o que impulsiona os movimentos da conjuntura política pode ser reduzido a ela e, obviamente, não é aceitável tomar como verdadeira nem a narrativa nela contida nem as implicações diretas que ela imagina promover.
Como autodefesa, o petismo lança mão recorrentemente da sua vitimização e o antipetismo agride inflacionando seu discurso com um anticomunismo anacrônico, que destoa do seu alvo de combate: o PT nunca foi ou se propôs a implantar o comunismo e seus governos sempre mantiveram uma distância segura em relação a qualquer orientação que possa seriamente ser qualificada como comunista.
Por antipetismo não se entende aqui a existência legítima de ação política de oposição aos governos do PT e menos ainda uma ação concertada da grande mídia em relação ao partido de Lula, argumentos da narrativa petista. O antipetismo emergiu na sociedade civil, em grupos e movimentos não conectados entre si, que se adensaram nas redes sociais para depois ganharem as ruas na campanha eleitoral, bem como nas manifestações de protesto e nos panelaços, logo depois da posse do segundo governo de Dilma Rousseff. O antipetismo é um sentimento de rechaço integral ao PT a partir de um conjunto difuso de interpretações e representações que tais movimentos lhe atribuem.
O antipetismo conseguiu ser a linha de frente do movimento pelo impeachment da presidente da República. Aventurou-se nessa estratégia e conseguiu a façanha de carrear para suas ações personalidades e grupos políticos com maior presença e experiência na cena política brasileira.
Foi brevemente hegemônico, poderíamos dizer. Conseguiu quebrar o monopólio que o PT detinha sobre as ruas, como também o monopólio da qualificação do mundo político, especialmente dos seus adversários. Acertou e errou, fez o bem e o mal. Hoje não consegue reorientar sua estratégia de ação e começa a ver erodir na opinião pública o relativo prestígio que havia alcançado, ainda que, enquanto sentimento, dá sinais claros de que permanece latente e pronto para ser novamente ativado.
Formado a partir da ideia do “rechaço a tudo que está aí”, o PT não apenas se especializou em desqualificar, como sempre precisou criar ou ressignificar um ator político para se afirmar em oposição a ele. Na conjuntura atual, em razão dos inúmeros problemas que enfrenta, o petismo encontra-se na defensiva, mas continua a reiterar e a radicalizar seu método de construção identitária, brandindo sempre que necessário o “nós x eles”. Numa situação como essa, acuado, o PT manifesta sintomas mórbidos quando, em sua autodefesa, tenta mobilizar anacronicamente a noção de fascismo diante das investidas do antipetismo ou, pateticamente, busca apresentar-se como legítimo defensor da “democracia” fundada na Carta de 1988, que publicamente se recusou a votar por sua aprovação.
A cultura política do petismo é ainda uma incógnita. E permanecerá assim se o foco de atenção para compreendê-la continuar voltado para o embate entre suas correntes internas e para as vicissitudes da política e da economia, stricto sensu, vivenciadas pelos governos do PT. Não há certamente uma muralha chinesa entre essas dimensões e o petismo, mas não há obrigatoriamente relação de causa e efeito entre elas. O PT nasce da modernização conservadora empreendida pela ditadura, que, na clássica leitura de Luiz Werneck Vianna, resultou na “liberação dos instintos egoísticos” da sociedade civil. Na luta contra a ditadura novos seres sociais transplantaram para a política, via sindicalismo de resultados, o mundo dos interesses dos “de baixo”, recolhendo elementos como “eu quero o meu” ou “12% ou a morte”, uma consigna da primeira grande greve do final dos anos 1970. O amálgama desses anseios com ideias difusas de rebeldia, de esquerda e de um anticapitalismo romântico resultará no petismo.
O PT não nasceu do embate ideológico e se julgava uma novidade que desconhecia qualquer predeterminação. Essa postura o levou inexoravelmente a uma política de polo, anticoncertacionista, que acabou por fraturar a frente oposicionista contra a ditadura. Ao rechaço à ditadura e depois aos governos de transição se somaria uma lógica de custo/benefício que instaurou definitivamente o “cálculo econômico” como critério de pragmática do PT, cimentando suas “escolhas racionais” como expressão legítima dos interesses que dizia representar. Daí aos governos petistas não há mudança significativa. O petismo estabeleceu assim um modus operandi que passou a funcionar no automático.
O PT recusou-se assim a construir a hegemonia. Desprezou possíveis aliados do difuso progressismo democrático e reformista, preferindo instaurar seu predomínio. Hoje, ao fracassar o seu “distributivismo sem reformas”, como bem apontou Cesar Benjamin, o PT dá as condições, a partir das alianças que consumou pragmaticamente, para o conservadorismo retomar seu fôlego no momento do seu ocaso.
Petismo e antipetismo são dois constructos ideológicos opostos que se estruturam em torno de discursos de padrão agonístico cujo principal objetivo é a construção intencional do adversário político. O primeiro é um mosaico disforme, que só conhece a razão dos seus interesses, um ator mais afinado com a perspectiva de “projeto de poder” do que com a noção de hegemonia de matriz gramsciana; enquanto o segundo é pura reação, errática na maior parte das vezes, sem liderança legitimada, que flutua por diversos canais e dificilmente encontrará seu Leitmotiv para estruturar sua unidade e lhe garantir alguma estratégia para o futuro.
Alberto Aggio é historiador e professor titular da UNESP
Fonte: O Estado de São Paulo (13/06/15)